terça-feira, 18 de agosto de 2015

UMA NOVA BERLIM

O momento Marilyn 

de Lisboa

José Eduardo Agualusa
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A crise, paradoxalmente, trouxe futuro; trouxe sangue novo e novas ideias. A cidade vive hoje um momento de invulgar vigor

No momento de crise e algum pânico que o Brasil vive, talvez seja útil olhar para o caso de Lisboa. Antes do gravíssimo surto de depressão que ainda sufoca Portugal e uma boa parte dos países europeus, a capital portuguesa era uma cidade bonita e com um passado glorioso, mas voltada quase inteiramente para esse passado, como uma estrela de cinema em plena decadência. A cidade sofria de uma deficiência de futuro, e isso explicava a melancolia elegante, mas um pouco opressiva, que pesava no ar.
A crise, paradoxalmente, trouxe futuro; trouxe sangue novo e novas ideias. A cidade vive hoje um momento de invulgar vigor. Jovens criativos vêm recuperando áreas antes degradadas para lançarem projetos irreverentes e inovadores. A queda dos preços do imobiliário e nova legislação mais favorável permitiram que empresários sem grande poder econômico conseguissem alugar espaços para a criação de bares e lojas alternativas.

O Largo do Chiado voltou a ser, como no século XIX, o coração pulsante da cidade. Sento-me por quinze minutos a uma das mesas, n’A Brasileira, e logo aparecem amigos, conhecidos, simples leitores, para dois dedos de conversa. É quase como estar em casa, mas sem o tédio de estar em casa. Mesmo ao lado, no Camões, há um quiosque do tempo de Eça de Queirós, que vende refrescos típicos da Lisboa daquela época, como a orchata (à base de leite de amêndoa) e o mazagran (limonada com café). A empresária que deu nova vida aos antigos quiosques lisboetas é também a proprietária da loja preferida por nove em cada dez turistas brasileiros, A Vida Portuguesa, que comercializa produtos vintage tipicamente lusitanos.

Para este ambiente contemporâneo e cosmopolita contribui o fato de Lisboa ter sabido acolher gente proveniente de todos os territórios do antigo império colonial. O Presidente da Câmara, António Costa, é filho de um escritor moçambicano de origem indiana. As duas maiores fadistas portuguesas, Mariza e Ana Moura, são mulatas, uma moçambicana e a outra angolana. A banda com mais reconhecimento internacional, os Buraca Som Sistema, toca kuduru, e é constituída por portugueses e angolanos. Há cada vez mais músicos e artistas plásticos a trocar Paris ou Londres por Lisboa.

A minha filha, Vera, que completou há pouco onze anos, gosta do Chiado, porque numa das passadeiras há uma grade de metrô para a saída de ar quente. Ela adora colocar-se em cima da grade, com a cabeleira a esvoaçar. Um dia viu um homem a insuflar sacos de plástico e a lançá-los aos céus a partir dali, e desde essa altura passou a insistir comigo para que fizéssemos o mesmo. No último domingo acordei-a de madrugada, muito cedo, e fomos para o Chiado. A cidade estava quase deserta. Havia três rapazes sentados no Largo de Camões, junto à estátua do poeta, como náufragos da noite. Um deles dormia, com a cabeça pousada nos joelhos. Os outros dois olhavam para nós, atordoados, enquanto a primeira luz da manhã inaugurava as calçadas. Trazíamos cinco sacos de diferentes cores. Três deles subiram muito alto. Dançavam no azul vibrante do céu, enquanto nós corríamos, ao longo das ruas tortas, para os recuperar.
 Vera disse-me, já em casa, que aquele fora um dos dias mais divertidos de toda a sua vida; da minha também.

Por vezes sentamo-nos os dois n’A Brasileira, voltados para a estátua de Camões, a assistir ao momento Marilyn das jovens turistas, vestidas com saias leves, apropriadas a este verão de calor intenso, as quais, inadvertidamente (ou não), com superior elegância (ou nem tanto), cruzam a grade. Há moças que vão de propósito ao Chiado para caminharem sobre a saída de ar quente, e se fazerem fotografar, segurando a saia, com um sorriso falsamente surpreendido.

Os melhores momentos das nossas vidas são quase sempre simples. A felicidade raramente chega de Ferrari. Pode chegar, sim, através de uma grade de metrô para a saída de ar quente.
Afinal de contas, Lisboa está, também ela, a viver o seu Momento Marilyn. Avança, ousada, provocadora, ainda, e sempre, menina e moça, mostrando o que tem de melhor, e o melhor que tem é a mistura entre a tradição e uma modernidade criativa e exuberante. A agenda cultural compete hoje com a de Paris, Berlim ou Barcelona, sobretudo no que respeita a música. As noites são uma festa. As ruas fervilham de gente.
“Lisboa é a nova Berlim” — diz-se, e é verdade, com a vantagem enorme de ser uma Berlim quase tropical.


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