quarta-feira, 26 de agosto de 2015

MUSEUS ABANDONADOS

Fechados há mais de uma década, museus sofrem com abandono

Dois museus na Bahia se tornaram ícones do abandono, mas têm promessas de investimentos para restaurar seus prédios e acervos
Ele nasceu 428 anos atrás. Ele viu as sinhazinhas tomando banho de sol no pátio superior. Observou a nobreza se empanturrar com banquetes no salão de jantar. Assistiu a senhores de engenho arrotando poder e autoritarismo. Ao mesmo tempo, acompanhou o sofrimento de homens negros na fábrica de açúcar, ouviu seus gritos de desespero no tronco e flagrou sua fuga rumo aos quilombos. 
Ele viu a triste e rica história do Brasil passar sob seus olhos. Hoje, ele mesmo, que nos seus tempos áureos estava de portas abertas para contar toda essa trajetória a quem quisesse ver e ouvir, é açoitado pelo descaso. Ele é o Museu Wanderley de Pinho, na localidade de Caboto, município de Candeias, às margens da Baía de Todos os Santos, fechado à visitação desde o ano 2000.      
Às vésperas da Semana Nacional de Museus, em 18 de maio, o Wanderley de Pinho é o maior símbolo da falta de manutenção desse tipo de patrimônio na Bahia. Mas não é o único. Em estado semelhante, o Museu de Ciência e Tecnologia (MCT),  pioneiro na América Latina, está fechado desde o início da década de 1990 e sofre com o desgaste de seu acervo e prédio, localizado na Boca do Rio.   
Foto: Angeluci Figueiredo
O Wanderley de Pinho é o velho Engenho Freguesia, construído ainda no século XVI, dos mais antigos e importantes patrimônios do país. Tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) ainda em 1944, foi transformado em museu em 1971. Sua degradação chegou a trazer riscos de desabamento da casa-grande e da capela, mas uma reforma emergencial em 2004 manteve o prédio de pé. 
Em visita ao local, o CORREIO constatou que o maior prejuízo é arquitetônico. A fachada da casa-grande está com o reboco completamente comprometido e com rachaduras, as paredes internas desgastadas e a capela com os dois andares seguros por escoras. O cheiro é de madeira podre e mofo. Morcegos voam de um lado para o outro dos quartos. Da fábrica de açucar, bem ao lado, restaram apenas ruínas.  
O lugar é inóspito e cercado de mata atlântica. “Isso aqui era bonito quando as escolas vinham visitar”, disse um dos dois seguranças que protegem o local. A entrada é proibida, mas através das imensas janelas e portas quebradas dá para ver parte da coleção que ainda é mantida no local, como um antigo carro de boi e engrenagens da moenda. Na área externa, há um antigo canhão completamente enferrujado, Uma velha locomotiva, no mesmo estado de degradação, foi colocada no local quando da abertura do museu. 
A Diretoria de Museus (Dimus) do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultutal da Bahia (Ipac), que administra o monumento, garantiu que ao menos o acervo está preservado. Ou pelo menos parte dele, já que um assalto em 1991 fez desaparecer boa parte. “A polícia chegou a recuperar alguns deles”, lembra Fátima dos Santos, museóloga da Dimus e autora de um projeto de revitalização do espaço.      
A museóloga garante que o que não foi roubado está bem guardado em dois lugares: no Solar Ferrão, no Pelourinho, e no Palácio da Aclamação, no Campo Grande. São 167 peças, entre obras sacras, pratarias, telas, tecidos e paramentos litúrgicos. “Essas peças passaram por restauro. Hoje não temos problemas com o acervo”, assegura Fátima, que luta há quase 15 anos para salvar o monumento e está animada com a possibilidade de o projeto, no valor de R$ 16 milhões, sair do papel (ver boxe na página ao lado). 
“Há dez anos, conseguimos uma verba de R$ 500 mil para fazer o telhado, que estava prestes a cair, o assoalho e as salas de visita e jantar. Mas esse foi um projeto provisório”, admite Fátima, que diante dos riscos decidiu transportar o acervo para Salvador. Apenas peças de tecnologia rural e instrumento de suplício (tronco) continuam lá.
Apogeu  O engenho construído em 1586 foi erguido em terras doadas pelo então governador-geral do Brasil, Mem de Sá. O casarão foi alvo das invasões holandesas, em 1624, e vivenciou momentos de apogeu na produção de açúcar até a segunda metade do século 19. Segundo escritos do próprio Wanderley de Pinho, autor de História de um Engenho do Recôncavo, o Freguesia chegou a ter mais de cem escravos. Com as leis abolicionistas, entrou em decadência e, em 1890, as moendas foram desativadas.
Seu conjunto arquitetônico inclui casa-grande, com 55 cômodos, fábrica e capela dedicada a Nossa Senhora da Conceição da Freguesia. “O Wanderley de Pinho é um monumento grandioso, a única casa-grande do país que tem uma capela geminada”. Especialistas divergem se, em caso de ser reaberto, o Wanderley de Pinho deve mesmo receber seu acervo de volta. 
A museóloga Silvia Athaíde, diretora do Museu de Arte da Bahia (MAB), vê como única saída a entrega do Wanderley à iniciativa privada. “Deveria ser um museu monumento. O que interessa é o que ele representa arquitetonicamente. Não tem condições climáticas e de localização para ter um bom recheio ali”, acredita Silvia, que se declara apaixonada pelo museu de Caboto. 
“Certa vez, mandamos um piano com dois candelabros em prata para lá. O piano voltou um escombro. Sem falar na    segurança. Quer dizer, não tem condições. Aquilo ali daria era uma boa pousada”, aponta Silvia, que guarda uma pasta de recortes de jornais com notícias do assalto. 
Fátima dos Santos discorda da colega. “O museu funcionando, com segurança eletrônica e climatização, não vejo problema. E tudo isso o projeto contempla”, argumenta Fátima, contrária à entrega completa do Wanderley a empresas. “Se você coloca uma pousada ou hotel ali, a comunidade baiana e os turistas não teriam acesso a essa rica história”. 
ciência  Enquanto o Wanderley de Pinho aguarda investimentos, um impasse envolve o Museu de Ciência e Tecnologia (MCT), na Boca do Rio. Igualmente escravo da falta de atenção do poder público, o MCT vê algumas de suas peças pouco a pouco serem destruídas. A grande locomotiva, o avião, a primeira prensa automática da Bahia e o relógio de sol do artista plástico Jamison Pedra, além de outras peças que ficam na parte externa do museu, estão corroídos pela ferrugem. 
Fundado em 1979 pelo governador Roberto Santos, o MCT é pioneiro nesse tema na América Latina. “É a primeira edificação específica para museu de ciência. Um conjunto arquitetônico de ciência e tecnologia de grande importância”, define o professor Nelson Pretto, secretário Regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
Depois de viver o auge no início da década de 1980, o MCT passou a ser de responsabilidade da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Acontece que a instituição transferiu setores administrativos da pró-reitoria de extensão para as salas do museu. O acervo que restava foi então recolhido no início da década de 1990. De lá para cá, restaram apenas as peças pesadas que ficam na área externa.
Em agosto do ano passado, o museu deixou de ser da Uneb e passou à Secretaria de Ciência e Tecnologia (Sect). Mas a universidade mantém ali sua pró-reitoria de extensão e agora de gestão de pessoal. Estava criado o impasse. 
Inicialmente, pensou-se em transferir o acervo para o Parque Tecnológico da Bahia, na Avenida Paralela.  Mas, diante da importância do prédio, a comunidade científica reclamou. “Não somos contra a criação de outro museu de tecnologia na Paralela. Pelo contrário. Mas não faz sentido acabar com o espaço anterior”, diz Nelson Pretto. A Sect então recuou e recentemente disponibilizou R$ 2 milhões para a reconstrução do MCT.  
“O objetivo é fazer com que o museu retorne às atividades com suas funções originais”, afirma o diretor de tecnologia da Sect, Ernesto Carvalho. 
O problema é que a Uneb reivindica o espaço. “Queremos o prédio, onde investimos inclusive na infraestrutura. Mas estamos em entendimento”, diz o assessor especial da reitoria da Uneb, Antônio Azevedo. 
O que ninguém sabe explicar é como o museu chegou a esse ponto de abandono. “Aí é com as gestões anteriores”, finalizou o assessor.

Projeto prevê restaurante e até centro de convenções
Um contrato de R$ 190 milhões assinado na quarta-feira entre o governo do estado e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) pode mudar a vida do museu Wanderley de Pinho e outros monumentos na Baía de Todos os Santos. É que, desse montante, R$ 16 milhões seriam destinados para o projeto da museóloga Fátima dos Santos, que luta para revitalizar o museu. 

O plano bancado pelo BID visa recuperar estruturas históricas e atracadouros da baía. Tudo com o conceito de turismo sustentável e participação das comunidades. Tanto que o projeto do Wanderley visa não só a recuperação física da casa-grande, capela e fábrica, mas também o desenvolvimento da região.
Um restaurante, um alambique, uma casa de farinha e até um centro de convenções seriam construídos. “Tem que pensar a sustentabilidade do lugar. É preciso fazer parcerias com empresas da comunidade”, diz Fátima.  

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