sexta-feira, 4 de setembro de 2015

O MENINO MORTO


 Tati Bernardi
  
 Eu estava em casa, comendo uma maçã, pensando se continuava a escrever o
 livro  apesar da dor nos ombros ou se saía um pouco com a minha cachorra, quando vi a imagem mais triste do ano. A imagem que invalidou maçã, rejeitou cachorro, anulou livro e ignorou dor nos ombros. Acabou 2015, pensei. Nunca mais seremos felizes em 2015. O menino  sírio, de três anos, com sua camisetinha vermelha, sua
 bermudinha azul, seus sapatinhos intactos, morto, encerrou qualquer chance de sermos felizes este ano.
 Por que sua vida foi perdida se os sapatinhos continuaram agarrados aos seus
  pés? Dava vontade de ajeitar a camiseta tão pequena, vermelha, pra ele não se resfriar. Suas costas estavam descobertas. Aquele mar tão gelado, aquela praia tão sem sol, aqueles homens tão sérios e vestidos, aquela vida tão sem mãe e ele com as costas descobertas.
 Vontade de pedir ao policial turco que não demore mais aqueles segundos o
 observando,  um misto de dor com "respeito por uma cena de crime". Por favor, arrume a camiseta dele agora ou vai dar pneumonia nessa criança! Devaneios, escape, apenas porque a realidade "não adianta mais, acabou" como legenda para uma criança e o mar (duas das melhores  coisas do mundo!) é miséria humana demais até para um brasileiro.
 Por que amigos de bom gosto expunham aquele vídeo tão terrível em suas redes
  sociais, por que mídias tão sérias pareciam sensacionalistas com a repetição exaustiva e bem clara da mais triste imagem do ano? Porque, eu acho, é preciso que
 doa. Mas se tantas crianças brasileiras morrem, todos os dias, de fome, de bala perdida, de violência  doméstica, de saúde precária, por que eu estava tão devastada e impactada como se nunca tivesse visto nadaigual?
 Acontece que, na foto, Aylan Kurdi e toda a sua inocência interrompida, toda  a sua fofura calada de pequenos bracinhos e mãozinhas, toda a sua esperança arrasada, estava justo na linha entre a areia e o mar, esse lugar tão divertido e seguro para
 brincar quando se tem a idade dele. Ele estava em uma praia badalada do verão europeu,  uma praia em que tantas família já foram felizes, brincaram de construir castelos na areia, enquanto a sua tinha acabado de ser destruída. Vestiram ele tão
 bonitinho, tão camiseta vermelha com calça azul e sapatinhos com solas um pouco puídas, para uma vida  nova. E nem deu tempo de pisar em terra firme.
 Ele não era só uma criança morta e devolvida pelo mar, ele era todas as crianças
  que sofrem, ele era todas as famílias despedaçadas por extremismos religiosos e xenofobias gananciosas, ele era todas as desgraças do mundo, ele era todos os refugiados que trocam a morte certa por uma morte provável. Sem saber e tão pequeno. Sem ter conseguido  e tão entregue àquela areia dura, Aylan Kurdi e seus
 sapatinhos que não se perderam se tornou, ao lado daquela garotinha síria que levantou suas mãozinhas "para se entregar" ao achar que a câmera fotográfica do
 jornalista era uma arma, o símbolo maior desse  terrível 2015. Comer maçãs, passear com cachorros, ter dores nos ombros, escrever esta coluna, fazer ou furar bonecos do Lula com camiseta de presidiário, tudo isso ficou muito pequeno perto da grandiosidade daqueles sapatinhos.


COMENTÁRIO DO BLOGUEIRO.
ESCOLHI NÃO COLOCAR A FOTO DO MENINO,

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