quarta-feira, 23 de setembro de 2015

O BRASIL MOSTRA A CARA

 e ela é medonha

MALU FONTES

A menos de um ano das Olimpíadas e durante o Rock in Rio, o maior evento musical brasileiro, fatos, cenas e imagens de arrastões nas praias e assaltos nas ruas do Rio de Janeiro chocaram quem as viveu como vítima, quem as viu incrédulo pela TV e nas capas de jornais e, claro, os turistas brasileiros e estrangeiros que sonham ou planejam uma viagem para a cidade maravilhosa. Entretanto, infelizmente, o buraco é muito mais embaixo. O poço parece cada vez mais sem fundo quando se trata da imperativa violência urbana brasileira e a ocorrência de arrastões, agressões e assaltos nas ruas e no transporte público no Rio é apenas uma das várias ilustrações do esgarçamento da civilidade e da guerra civil não oficial que cada vez mais caracterizam todas as grandes cidades brasileiras. 
A repetição das  teses  segundo as quais o Brasil passou por uma onda de desenvolvimento e crescimento jamais vista nos últimos tempos esconde um paradoxo que poucos ousam abordar e menos ainda conseguem explicar. O que o país assistiu foi um fluxo de desenvolvimento econômico associado a uma explosão dos índices de consumo, mas sem jamais associar isso a um equivalente avanço no comportamento cidadão da população e a uma melhoria nos índices de civilidade do povo. Embora muita gente confunda e torne equivalente a condição de cidadão e a de consumidor, há, no caso brasileiro, um abismo entre ambas. 
Brancos e Pretos
O que se viu no Rio no final de semana e que não é, diga-se, um “privilégio avessado” da capital fluminense, foi o retrato do aprofundamento do apartheid no qual a sociedade brasileira investe sem sequer se dar conta da velocidade com que o faz. Entraram em cena até mesmo personagens e cenários novos: jovens brancos de classe média, malhados, quebrando vários ônibus na orla da zona sul carioca para arrancar de dentro e espancar os pretos da periferia, todos tidos e havidos como integrantes das gangues que arrastavam literalmente tudo nas praias, no calçadão e nas ruas internas dos bairros da zona sul. Era o lado de fora contra o lado de dentro, e vice-versa, não mais tendo como limite o muro do condomínio ou a cerca de arame eletrificada, mas um ônibus. 
Antes, o que se via era a periferia quebrando os ônibus, revoltada contra um abuso ou uma injustiça do poder público ou da sociedade cometida contra os mais pobres ou contra um dos seus. Agora  é, como se diz no Rio, o asfalto barbarizando contra o buzu, mas do lado de fora, para linchar o morro e a periferia que está dentro dele. Turistas estrangeiros urravam de choro pronunciando a palavra “horrible” e “never more”, após serem agredidos na areia do Arpoador e perderem tudo o que carregavam, passaporte incluído. Se isso não é uma guerra civil que a hipocrisia governamental e política não ousa pronunciar o nome, como classificar a coisa, como nomeá-la? Do lado do exército dos arrastões, literalmente crianças, de tão novos que são os meninos que integram as gangues. Rastros explícitos da incapacidade brasileira de cuidar de suas crianças, de tirá-las da rua antes que elas tivessem passado a considerá-la como sinônimo de sua casa. 
O Rio é tão somente a metáfora do país, que nunca foi tão dividido, tão violento, tão esgarçado socialmente, tão tolerante e tão ignorante. Costurando tudo, infelizmente, está não um governo ou um projeto de país, mas um poderoso e visível exército paralelo da droga, uma narco-sociedade assombrosa produzindo cidades culturalmente raquíticas e exterminadora de gente e de futuro. Quando, em cenários como esses, se fala em alavancar o turismo, o discurso soa além do esquizofrênico. Quem quer frequentar a praia Brasil, nadar nessas águas turbulentas de medo? Um país trevoso sai da toca, cada vez mais mostra a sua cara e ela é medonha.  
Malu Fontes é jornalista e professora de Jornalismo da Ufba

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