terça-feira, 8 de setembro de 2015

A IMAGEM DO MENINO SÍRIO

 afogado 

e os juízes 

da compaixão alheia

A imagem do corpo do menino curdo Aylan Shenu, 3 anos, morto afogado num bote cheio de refugiados sírios e levado pelo mar até a praia turca de Bodrum, correu o mundo e se transformou na ilustração da tragédia humanitária que varre a Europa. A fotografia de um bebê morto na areia sendo lambido pela marola está para a tragédia dos refugiados que pedem socorro ao mundo assim como a foto da menina correndo nua, queimada de Napalm pelos americanos, está para a Guerra do Vietnã.
Em 2015, a agonia dos refugiados fugindo de guerras e de perseguição religiosa por parte de governos e grupos fundamentalistas no Oriente Médio e na África já matou 2.600 pessoas, todas buscando chegar a algum país da Europa. Hoje, são cerca de 370 mil pessoas driblando a morte em campos de refugiados que pouco se diferenciam dos campos de concentração da Segunda Guerra. Entretanto, a compaixão gerada pela fotografia insuportável do menino curdo, que parece dispensar argumentos para ser um sentimento consensual no mundo, gerou, no Brasil, críticas e debates surreais.
Claro, ninguém é imbecil o suficiente para minimizar a morte do menino cujo pai enfiou-se num bote fugindo da irmandade muçulmana e da guerra em seu país, a Síria. O que boa parte dos brasileiros criticou, minimizou e desqualificou nas redes sociais foi a compaixão em si gerada por aquela fotografia específica. Os argumentos para as críticas vão desde a acusação de sensacionalismo à imprensa até a defesa de um imperativo excludente que não se sustenta. A tese é oca: a fotografia só chocou porque se trata de um menino branco, morto num país rico e porque a imagem é asséptica. Não tem ferida nem sangue.
As circunstâncias para a legenda da foto: Aylan era curdo e sírio. Os curdos são considerados menos humanos na Síria e em outros países do Oriente Médio e, por isso, perseguidos e expulsos de suas casas e países. A Turquia, país onde seu corpo foi parar, não está exatamente no grupo de países mais ricos do mundo. Aylan não era branco. Em nenhum país do mundo, um sírio curdo é considerado branco e, portanto, não se trata de um menino privilegiado ao ponto de ser uma escolha moral torta a de quem se compadece com sua morte ao invés de se concentrar na dor pela morte de outros mais pretos e mais pobres. E mesmo que o menino fosse branco, o contexto de sua morte justifica a comoção. Já quanto a feridas e sangue, a mutilação humana não precisa necessariamente ser rombos literais no corpo.
Um bebê morto não deve jamais valer menos como motivo de sofrimento alheio por não ter marcas de sangue. Símbolos de uma tragédia são parte da história oficial e da iconográfica do mundo e não é com moralismo e interpretações classistas e raciais que se combaterá a tragédia cotidiana da humanidade. Por esses imperativos que ninguém determina, senão o acaso da hostilidade do mundo, a tragédia da vez e as formas como o jogo político internacional é jogado, ninguém tirará da iconografia da história imagens como a do bebê curdo morto na praia, da menina nua queimada de Napalm no Vietnã, nem do menino negro esquálido espreitado por um abutre disposto a transformá-lo em alimento com uma bicada no meio da guerra e da fome no Sudão. 
O que irá pelas cabeças de pessoas que parecem querer impor às outras as razões certas e as erradas para o compadecimento de cada um? Quem se enfileira nessa patrulha argumenta que negros e pobres morrem às centenas todos os dias e ninguém sabe sequer seus nomes. Sim, mas o combate a essa indiferença não se faz determinando que a classe social ou a cor da pele da vítima dê ou não legitimidade à compaixão humana. Chocar-se por uma estudante de Medicina morta por um ladrão é tão legítimo quanto chocar-se pela morte de Joel, uma criança negra e pobre que sonhava em ser mestre de capoeira e morreu por uma arma policial. Por que fatos como estes devem obedecer a uma hierarquia da compaixão? O fato é que, após Aylan, o roteiro da tragédia dos refugiados será outro.
Malu Fontes é jornalista e professora de Jornalismo da Ufba

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