quinta-feira, 30 de junho de 2016

O QUE HÁ DE ERRADO COM...

...COM OS EDITAIS CULTURAIS DA BAHIA?
PAULO DOURADO

O clima da cultura baiana oscila entre o semi-árido e o quase desértico. Pouco sobrou do ambiente rico e vibrante q se anunciava na Bahia da década de 90. “Políticas Culturais” grosseiramente equivocadas transformaram as intervenções governamentais locais em distorções truculentas que começaram por desfigurar e por fim destruíram o delicado tecido do organismo cultural que aos poucos aqui se estabelecia. O prestígio, a visibilidade, o reconhecimento e outras importantes conquistas profissionais dos artistas, técnicos e produtores baianos do final do Século XX foram agressivamente destroçados. Como o próprio nome diz, “cultura”, (de arte, vegetais, bactérias ou costumes – tanto faz), requer uma conjunção complexa de fatores como clima, tempo, estímulos adequados em suma, de um ambiente favorável e propício. É óbvio que apenas “dar dinheiro” não basta pra se fazer cultura. E muito menos dar dinheiro a esmo, sem pensar em continuidade, sedimentação ou processo de desenvolvimento. Aliás, é o claro desprezo dos governos pela relevância cultural (e até pelo seu sentido social), em favor de ações politiqueiras e demagógicas, que tem dado farta munição aos inúmeros equívocos dos recentes debates na mídia sobre os cachês de cantores famosos e sobre as leis de incentivo fiscal. Em contraste, quase ninguém critica os esportes e entre eles o futebol (o primo rico da família) que consomem muito mais dinheiro público do que a cultura e ainda gozam de leis semelhantes de apoio e incentivo fiscal. Isso, a despeito das remunerações astronômicas dos jovens atletas e do custo estapafúrdio dos estádios, arenas, ginásios, equipamentos etc. Aparentemente e ao contrário do que acontece na cultura, o público reconhece o sentido político desses investimentos. Político quer dizer, econômico, existencial, lúdico isto é, real em todos os sentidos. 

Como “para quem não sabe pra onde vai não existe vento favorável” (Sêneca Séc I dC), no “mundo real” da Bahia, a guerra da cultura está sendo perdida. Basta olhar em torno para se ter a certeza disso. A idéia de “democratização da cultura” tão presente nos discursos políticos não passa de um sofisma primário e demagógico. Não existe povo sem cultura. O que existe sim, é uma clara retração do espaço da cultura dita “de qualidade” em favor de uma cultura massificada e industrializada que, aliás, cresce visivelmente e de forma poderosa. Também pudera, o espaço está praticamente vazio de alternativas e de intervenções “reguladoras” dos governos, aliás, como ocorre com a produção agrícola ou as oscilações do dólar. Essa hegemonia da indústria e do mercado produz prejuízos irreversíveis no reconhecimento e recepção do nosso “PIB” cultural. Assim, perdemos terreno não só em relação à excelência artística e auto-estima mas, também, nos quesitos tolerância, aprendizagem, ética, aceitação do outro, não-violência e, em suma, numa compreensão mais aprofundada do mundo e seus processos. 

É claro que em relação à identidade (individual e coletiva) das pessoas, sem arte-cultura haverá sempre pouco avanço. A economia da cultura não pode se restringir a números. Seu valor fundamental pertence ao espaço do simbólico e da subjetividade. Mas, atividades artísticas profissionais, se bem estruturadas, podem gerar também empregos estáveis, renda e crescimento econômico em volumes significativos. A cultura é assim um valor público altamente singular e como nos casos da saúde, segurança e agricultura cabe aos governos o seu cuidado. Onde há cultura (e educação) há menos violência e miséria é o que mostram todas as estatísticas. E não precisamos de especialista para perceber que a Bahia possui um tesouro de tradições e mananciais culturais alem da vocação e da predisposição da população. É por isso que as instituições culturais têm de funcionar para alem dos “belos” (?!) discursos e planos. Por tudo isso, precisamos urgentemente de resultados e de mudanças efetivas no ambiente cultural do nosso estado.

Resumo da ópera: cabe às secretarias de cultura (do estado e município) basicamente o fomento à atividade cultural. Tudo começa com o total (e incrível) desconhecimento da produção, circulação e consumo de bens culturais. Faltam estatísticas, indicadores, números. E se hoje o ambiente cultural da Bahia está visivelmente esvaziado, perde o brilho, vê minguar sua criatividade, perde gradualmente o seu incipiente diálogo com o turismo e, está dominado (na real saturado) por uma cultura de massa repetitiva e grosseira, é imprescindível e urgente, que esses órgãos se mobilizem para encarar, de forma realista e concreta, essa aí que é a nossa realidade. 

Uma boa oportunidade se apresenta no momento. Certamente em função dos equívocos que resultaram na interdição judicial promovida nos editais do ano passado pelo Sindicato dos Artistas e Técnicos (SATED), a Secretaria da Cultura do Estado da Bahia abriu uma “consulta pública” sobre os modelos de editais para uma eventual seleção de propostas do corrente ano. Eventual sim porque se, já no mês de julho, ainda estamos discutindo o modelo de seleção, na prática isso significa que o presente ano está perdido e que só haverá patrocínio para as produções culturais de 2017. Visto isso, vamos aos modelos de edital sob consulta:

1 – Edital Modelo 2016 Setorial (27 pgs); 2 – Edital Eventos Calendarizados 2017 – 2019 (23 pgs); 3 – Edital Manifestações Tradicionais da Bahia 2016 (27 pgs); 4 – Edital Modelo 2016 Ações Continuadas (23 pgs); 5 – Edital Bahia Suprocult Dimas (43 pgs). TOTAL – 143 páginas. A Constituição Brasileira tem 136 páginas. 

Aí está, visível, o primeiro e mais grave problema dos editais. A burocracia excessiva ou, burrocracia. A burrocracia ocorre sempre que um detalhe técnico e sem importância impede a realização daquilo que ele justamente pretende assegurar. Exs (reais): precisar de uma carta para a cessão de uma folha de papel; ou, pedir os desenhos do figurino de uma peça que não começou a ser ensaiada e não tem ainda o elenco definido etc. Quem nunca entrou não faz idéia da quantidade de documentos, (certidões, atestados, declarações, certificados, contratos, currículos, comprovações de endereço, de identidade, de não possuir imóvel etc, etc) requerida nestas 143 páginas para a admissão de um projeto em um edital cultural. Pelo esvaziamento do ambiente cultural da Bahia, esse procedimento está mais atrapalhando do que ajudando. Aquilo que eles chamam de “análise documental” exclui a grande maioria dos projetos que pretendem inscrição e isso é evidentemente um tiro no pé. Eu já tive um belo projeto (modéstia à parte) rejeitado porque (pasmem!) faltou a digitalização do comprovante do endereço da produtora. Era, aliás, uma produtora extremamente ativa e uma das principais do nosso estado. Ou esqueceram (no corre-corre precário que é vida normal do produtor cultural baiano) ou foi “o sistema” - plataformas de péssimo desempenho – que “caem”, travam ou simplesmente não aceitam anexos e que transformam uma simples inscrição em tortura.
 Nada que não pudesse ser resolvido depois. Portanto a nossa proposta é simples:

Que o edital funcione em duas etapas sendo que na primeira seja analisado apenas o MÉRITO INTRÍNSECO do projeto. O projeto terá um responsável e/ou proponente que será o seu criador, seja ele artista, técnico, produtor, pesquisador etc. Toda a documentação normal (de pessoa jurídica ou física) para assinatura do contrato deveria ser requerida apenas dos projetos aprovados. Na primeira etapa seriam entregues os formulários com o projeto cultural, contendo as descrições, metas, orçamento e planos de praxe, além é claro dos currículos dos seus realizadores.
Na segunda etapa, apenas depois de selecionados os projetos que efetivamente possuam interesse público isto é, que sejam capazes de enriquecer o nosso ambiente cultural, motivar o interesse do público, estabelecendo assim uma relação custo-benefício responsável para o dinheiro público, só então é que seriam resolvidos os problemas burocráticos, dentro de todas as normas e salvaguardas legais. Se para assinar contrato faltar um documento a uma produtora, ela pode ser facilmente substituída. O que não pode ser substituído é o teor cultural de um projeto importante. Não se faz um show de Caetano sem Caetano; nem um filme de Glauber sem Glauber, nem um livro de Jorge Amado sem o próprio. A produtora (ou editora) pode variar, sem problema. O que a Bahia precisa é assegurar a aprovação dos melhores projetos e das idéias com maior chance de realmente fazer cultura.

A Bahia possui hoje os editais culturais mais burocratizados do Brasil e é certamente uma forte candidata a pódio no mundo. Evidentemente não é com leis e mais leis, normas e decretos que se faz cultura. Se, cabe às nossas secretarias fazer acontecer, estão visivelmente falhando na sua missão e é a burrocracia que está fazendo o maior estrago. Há ainda outros pontos, sempre decorrentes da burrocracia: porque, p.ex., um proponente pode inscrever apenas um projeto? À ênfase na burrocracia e na análise prévias corresponde uma total falta de avaliação dos resultados. Mas, deixo aqui o espaço a outros debatedores. Alem da burrocracia a Bahia atual dança entre a demagogia e a politicagem. Com prazer e preocupação vemos a “Operação Boca Livre” investigando desvios de conduta na Lei Rouanet. Toda a discussão cultural precisa ser redefinida no Brasil e isso é responsabilidade de todos nós.

 Principalmente no que diz respeito ao fundamento ético e à função social da aplicação de recursos públicos na área. Acredito que a busca de qualidade artística, de profissionalismo e de um diálogo aberto com a sociedade, podem ser argumentos convincentes para as pessoas. O baiano é extremamente sensível à cultura e ama seus artistas desde que veja neles qualidade e respeito. Nessa perspectiva a desburocratização dos editais pode ser um forte aliado para enfrentarmos o esvaziamento atual. Afinal como ensina o Mestre Gil: o povo sabe o que quer, mas, também quer o que não sabe. Só.

P
aulo Dourado (Professor da UFBA, diretor e produtor de teatro).

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