domingo, 26 de junho de 2016

QUEM LUCRA COM AS GUERRAS

Tráfico de antiguidades destrói o patrimônio mundial e financia o terrorismo


Ladrões de História estão rapinando nosso passado

A mulher de peruca listada jaz de olhos arregalados sobre uma mesa iluminada. A um palmo de seu rosto ronda a professora, que murmura: “O estado dela ainda é extraordinário... Extremamente bem preservado”. Seu olhar desce pelo corpo da vítima, pintado na tampa do caixão, e ela indica um corte recente na parte superior das coxas, símbolos do deus Amon, uma íbis e palavras de encantamento do Livro dos Mortos. “E aqui está o nome e o título dela: Shesep-amun-tayesher, a “Senhora da Casa”. Quando os leio em voz alta, realizo seu desejo de ser lembrada no além-mundo.”
A nobre egípcia morreu há 2 600 anos. Sarah Parcak, egiptóloga da Universidade do Alabama em Birmingham, está examinando seu sarcófago interno, um de três ataúdes de madeira que, encaixados como bonecas russas, guardavam o corpo mumificado cujo odor ainda persiste no caixão. Saqueadores serraram o sarcófago em quatro pedaços e o remeteram pelo correio, via aérea, aos Estados Unidos, onde um restaurador tornou a montá-lo. Meses depois, funcionários da alfândega descobriram o caixão escondido na casa de um antiquário do Brooklyn. O ataúde agora está em um depósito secreto em Nova York, onde autoridades federais guardam artefatos apreendidos: um Buda indiano de pedra, cavaleiros de terracota da China, esculturas em relevo do Iraque, Síria e Iêmen. São todos órfãos do comércio ilegal de antiguidades, vítimas da batalha internacional pela herança cultural.
(Veja abaixo o trailer do documentário Relíquias de Sangue, do especial Explorer, que estreia no domingo, 26 de junho, às 23 horas, no canal Nat Geo ou baixe o aplicativo Nat Geo Play, disponível para iOS e Android)


Saqueadores – ladrões homicidas de templos na Índia, larápios de igrejas na Bolívia, bandos com uma centena de homens que pilham tumbas na província chinesa de Liaoning – estão rapinando o nosso passado. Como a maioria das atividades ilegais, a pilhagem é difícil de quantificar. Mas imagens de satélite, apreensões e relatos de testemunhas indicam que o tráfico de tesouros roubados está em alta no mundo todo.
No Egito, Sarah foi pioneira no uso de imagens de satélite para medir os danos causados por saques e invasões de sítios arqueológicos. Suas investigações contam uma história medonha: um quarto das 1 100 áreas arqueológicas do país sofreu danos. “Ao ritmo atual de destruição, todos os sítios conhecidos do Egito estarão seriamente comprometidos até 2040”, avisa ela. “É doloroso.”
Nestas duas últimas décadas, uma série de casos e repatriações notórios expôs o lado escuro do comércio de antiguidades e trouxe à luz redes criminosas de saqueadores e traficantes, que vendem artefatos pilhados a galerias e museus renomados. Em 2002, Frederick Schultz, um proeminente negociante de arte de Manhattan, foi condenado a 33 meses em prisão federal por formação de quadrilha para receptar objetos egípcios roubados. Em 2006, o Metropolitan Museum of Art, pressionado pelo governo italiano, concordou em devolver a famosa cratera de Eufrônio, um vaso para misturar vinho que foi roubado de uma tumba etrusca nas imediações de Roma. E, ao longo dos últimos anos, a comoção em muitos países ricos em antiguidades, culminando com o saque da antiga Mesopotâmia pelo Estado Islâmico (Isis, na sigla em inglês), gerou o receio de que o tráfico de antiguidades possa estar ajudando a financiar o terrorismo.
No Camboja, saqueadores decapitam estátuas – cabeças são mais fáceis de exportar - Fotografado em Angkor Conservation, Siem Reap
No entanto, o debate sobre como pôr fim à pilhagem chegou a um impasse. Arqueólogos culpam o tráfico de antiguidades pelos saques e afirmam que muitos artefatos no mercado foram roubados. Colecionadores, negociantes e muitos curadores de museu retrucam que a maioria das vendas de antiguidades é legal. Alguns argumentam que o objetivo supremo de salvaguardar o patrimônio artístico da humanidade os obriga a “resgatar” as antiguidades de países instáveis, mesmo que isso signifique adquiri-las de ladrões.
Reconstituição da jornada do sarcófago de Shesep-amun-tayesher
A HISTÓRIA DE SHESEPAMUNTAYESHER traz uma implacável clareza a essa questão abstrata. Ligarei as pistas de egiptólogos, curadores de museu e agentes federais e reconstituirei a jornada do sarcófago desde uma sepultura em algum lugar do Egito, passando por uma rede de contrabandistas, receptadores e negociantes, até chegar a esse depósito de alta segurança em Nova York.
O primeiro passo é localizar o provável local do sepultamento de Shesepamuntayesher. Com base nos hieróglifos e no estilo artístico do caixão, egiptólogos da Universidade da Pensilvânia concluíram que ela viveu por volta de 600 a.C. Uma pesquisa em livros sobre caixões egípcios e em sites sobre antiguidades na internet revela um sarcófago semelhante, de uma mulher com esse mesmo nome incomum, que parece ter sido encontrado em Abu Sir al Malaq, um lugar a 100 quilômetros do sul do Cairo.
Em tempos remotos, Abu Sir al Malaq, então chamada de Busiris, foi uma cidade próspera defronte à planície aluvial entre o Rio Nilo e o Oásis El Faiyum. Faziam sua fama o templo de Osíris, deusa da fertilidade e da vida após a morte, e as esplêndidas sepulturas de seus 4 mil anos de história. Hoje, à luz enevoada do sol, Abu Sir parece um campo de batalha recém-bombardeado. Incontáveis crateras e valas ferem as areias ondulantes em que saqueadores revolveram o solo com pás, picaretas e dinamite. No processo, violaram incontáveis sepulturas e deixaram um macabro cascalho de crânios e ossos esmigalhados ao redor de muitos locais de saque.
Amal Farag, principal autoridade do Ministério de Antiguidades em Abu Sir e sítios próximos, me conduz pela área acompanhada por cinco guardas armados com fuzis Kalashnikov. Esguia e aprumada aos 49 anos, com uma boca severa e olhos gentis, Amal pega algumas lascas de cedro contendo pregos de madeira e vestígios de pigmento vermelho: fragmentos de sarcófagos milenares. “Os saqueadores só ficam com as peças boas, o resto eles despedaçam ou jogam fora”, explica ela. “Para cada peça interessante, eles destroem centenas de outras.”
Apreendido, um ataúde egípcio está guardado em um depósito secreto em Nova York - Foto: Robert Clark
Vamos a uma tumba em um fosso que desce obliquamente pela encosta até uma câmara escura. Aqui, em abril de 2012, ela confrontou os saqueadores. Durante uma visita de rotina a Abu Sir com uma colega, ela notou um táxi parado perto da tumba. As duas se aproximaram e ficaram face a face com três homens altos e musculosos trajados com djelabas. “Falei para a minha colega: ‘Se tem medo, finja que é muito orgulhosa’”, conta ela. O orgulho deu resultado. Depois de fulminados por olhares silenciosos durante um momento, os homens entraram no táxi e foram embora. Agora, Amal me leva ao interior da tumba e mostra o local no solo em que ela encontrou dois esplêndidos sarcófagos que os saqueadores haviam escondido debaixo de um cobertor. Meus olhos se ajustam à penumbra, e distingo nichos esculpidos nas paredes de rocha e túneis que conduzem a outras câmaras.
Talvez Shesepamuntayesher tenha sido roubada de uma tumba como aquela. Ela estaria em um desses nichos, cercada dos objetos que prezava em vida: joias, uma bengala, papiros contendo encantamentos, arcas decoradas com deuses dos mortos – seriam seus pertences no além. Ancestrais e descendentes ocupariam nichos vizinhos com seus respectivos tesouros. Se fosse encontrada intacta, uma tumba familiar como essa abriria uma iluminada janela para o passado. Mesmo órfã pela pilhagem, Shesepamuntayesher é valiosa por seus hieróglifos e pintura, mas, se tivesse sido escavada apropriadamente, ela seria inestimável: a diferença entre uma página arrancada de um livro e um livro inteiro arquivado em uma vasta biblioteca.
Amal e sua colega conseguiram arrastar os dois ataúdes para fora da sepultura e pô-los no carro. A ordem é levá-los a um lugar seguro. No caminho de volta para a sede do ministério, foram perseguidas por um Peugeot 504, que chegou a poucos centímetros de seu para-choque. Por fim, em um cruzamento, um caminhão as separou de seus perseguidores, e elas escaparam.
Ao sairmos da tumba, os guardas, de fuzil em punho, estão vasculhando os campos e casas vizinhos. Amal explica que os moradores ali não sentem que têm laços com a cultura do Egito Antigo, e saqueiam seu passado para sobreviver no presente. O povo pobre de muitos países arqueologicamente ricos pensa desse modo; são “cavadores de subsistência” mal remunerados.
A pilhagem aumentou depois da revolução de 2011, quando as forças de segurança do governo se desintegraram. Mas a análise das imagens de satélite de Sarah Parcak indica que dois anos antes já havia ocorrido um pico, quando a crise global maltratou a economia egípcia, elevou os preços dos alimentos e do gás. Alguns desempregados recorreram ao saque para sobreviver. Os guardas nos escoltam até a rodovia, e Amal me dá um longo aperto de mão. “Fique fora das estradas depois que escurecer”, recomenda ela.
A pilhagem de sepulturas no Egito é tão antiga quanto os faraós. A tumba de Ramsés V e Ramsés VI no Vale dos Reis, próximo a Luxor, foi saqueada 3 mil anos atrás, durante um período de crise econômica e invasão estrangeira - Foto: Robert Clark
Escavar o passado por lucro tem sido uma profissão há milhares de anos. O mais antigo julgamento de saqueadores no Egito de que se tem notícia aconteceu em Tebas em 1113 a.C. Um bando chefiado por um empreendedor operário de pedreira chamado Amenpanefer pilhou tumbas entalhadas em rochas. O operário e seus cúmplices foram condenados e, provavelmente, executados por empalamento.
Exércitos invasores também levaram embora antiguidades egípcias. Os conquistadores romanos enviaram obeliscos inteiros a Roma em embarcações construídas especialmente para esse fim. Do século 16 até meados do 20, quando o Egito foi dominado por potências estrangeiras, inúmeras peças do seu passado foram parar em centros culturais no exterior por meio de presentes, comércio e coerção. Arqueólogos estrangeiros recebiam uma parcela dos artefatos encontrados em suas escavações graças a um acordo oficial com as autoridades egípcias. Viajantes compravam antiguidades de negociantes autorizados no Cairo, em Luxor e outras áreas. Parte dessas transações não era documentada, pois muitos consideravam as relíquias bens pessoais. Embora já existissem leis para protegê-las, os conceitos modernos de propriedade cultural e pilhagem ainda estavam evoluindo.
A mudança no Egito e em outras terras começou nos anos 1950, quando impérios coloniais se dissolveram e as ex-colônias passaram a ter autonomia de governo. Inspirados por um novo senso de identidade nacional, muitos países reforçaram a legislação existente ou promulgaram novas leis para proteger seu passado, que ainda incluía artefatos enterrados. Em 1983, o Egito decretou que todos os objetos de importância cultural e com mais de 100 anos pertenciam ao Estado. Em 1970, a Unesco adotou a Convenção Relativa às Medidas a Serem Adotadas para Proibir e Impedir Importação, Exportação e Transferência de Propriedades Ilícitas dos Bens Culturais, assinada por 131 países até o presente.
Trinta quilômetros ao norte de Abu Sir, encontro Mohammed Youssef, diretor de Lisht e Dahshur, dois ricos sítios do Médio Império. Nos caóticos meses após a revolução de janeiro de 2011, bandos de saqueadores devastaram os sítios, alguns deles trabalhando de noite, com escavadeiras, à luz de holofotes.
Youssef me mostra a tumba escavada na rocha onde, logo depois de a revolução começar, ele e um de seus inspetores resgataram dois magníficos relevos em calcário roubados de outra tumba. Dois grupos armados com metralhadoras estavam disputando aquelas peças. “Quando nos aproximamos, eles atiraram para o alto. Não tinham o menor medo de nós”, recorda Youssef . Mas a equipe retornou, depois que os bandidos foram embora, e recuperou os relevos.

Redes de pilhagens de antiguidades
Quem tem força sempre leva a melhor nas áreas instáveis, especialmente em tempo de guerra. Durante a guerra civil no Camboja, o Khmer Vermelho e outros grupos militares controlaram muitos dos saqueadores que atuavam em sua região. Da mesma maneira, hoje na Síria o Isis fatura seu quinhão dos lucros com a pilhagem, e o mesmo fazem grupos aliados aos exércitos do presidente Bashar al Assad, YPG curdo e oposição. Youssef diz que importantes figuras locais tiveram papel fundamental em Lisht e Dahshur: “Há gente muito conhecida envolvida nos saques. São ricos, eminentes, intocáveis.” Uma família de um vilarejo próximo comanda uma numerosa milícia privada, diz Youssef.
O general-de-brigada Ahmed Abdel Zaher, atarracado e jovial chefe de operações da polícia de antiguidades do Egito, explica que muitas redes de pilhagem no país são estruturadas como pirâmides de quatro níveis. “Pirâmides, só podia!”, ri. A base, talvez três quartos da força de trabalho, é composta de moradores pobres cujo conhecimento do terreno e dos monumentos é essencial para encontrar o butim. O segundo nível consiste nos intermediários que recolhem os objetos dos cavadores locais e organizam grupos de trabalhadores. Os elementos do terceiro nível escamoteiam as antiguidades para fora do país e, por fim, as vendem aos compradores estrangeiros no ápice da pirâmide da rapinagem.
No Egito, como em outros países, as margens de lucro crescem conforme os artefatos vão subindo nessa cadeia. Dizem que alguns saqueadores do segundo nível revendem os objetos por dez vezes o preço que pagaram aos cavadores. “Eles são criminosos profissionais; e as antiguidades, apenas um tipo de artigo que traficam”, diz Abdel Zaher. Ele descreve várias batidas policiais em busca de drogas nas quais foram encontradas antiguidades além de narcóticos.
Em áreas instáveis, as antiguidades podem seguir as mesmas redes de distribuição usadas por traficantes de armas. “Sempre acho esconderijos de antiguidades junto com RPGs [granadas lançadas por foguete] e outras armas”, diz Matthew Bodganos, promotor público e coronel americano que serviu no Iraque nos anos 2000.
Entre os mais de 50 portos, aeroportos e rotas terrestres usados para contrabandear antiguidades do Egito, escolho visitar Damietta. Os ataúdes de Shesepamuntayesher foram enviados aos Estados Unidos de Dubai, em certa etapa escondidos num contêiner carregado de móveis. Damietta é um dos mais movimentados portos de carga transportada em contêineres, faz muitos negócios com Dubai e é a capital nacional dos móveis – onde recém-casados compram a mobília de seu primeiro lar. Autoridades portuárias apreenderam remessas de contêineres que, além de móveis, levavam antiguidades escondidas.
Do Cairo até Damietta são 240 quilômetros, mas o motorista leva quase cinco horas. Na noite anterior, insurgentes mataram dois policiais do lado de fora do meu hotel perto do Cairo, e nessa estrada têm ocorrido ataques esporádicos com RPGs. A segurança é intensa, com barreiras regulares na estrada. Observo o interminável fluxo de caminhões que passam por elas, abarrotados de cebolas, melões, frangos e fardos de lã. Qualquer um desses veículos pode ter ocultado o caixão de Shesepamuntayesher.
Intermediários limpam moedas antigas na Síria. Os saqueadores do segundo nível da rede de pilhagem compram antiguidades de quem as escava e as vendem a contrabandistas e negociantes, que as revendem com bom lucro - Foto: Matthias Bruggmann, Contact Press Images
ASSIM QUE a nobre egípcia chega a Dubai, sua trilha se torna mais clara. Baseados em e-mails, declarações alfandegárias e manifestos de carga, promotores e investigadores federais dizem que três homens estão envolvidos na remessa da antiguidade de Dubai aos Estados Unidos: Mousa Khouli, um negociante de antiguidades natural da Síria e residente em Nova York, Salem Alshdaifat, um cidadão jordaniano que mora no Michigan, e Ayman Ramadan, um jordaniano que vive em Dubai. (Khouli, por fim, se declarou culpado de contrabandear e prestar falsas declarações a um agente federal, e foi sentenciado a seis meses de prisão domiciliar. Alshdaifat confessou uma pequena transgressão, e foi multado em 1 000 dólares. Ramadan permanece foragido.)
Documentos apresentados durante o processo mostram que Alshdaifat enviou fotos do ataúde de Shesepamuntayesher a Khouli, e que Ramadan e outras partes, no fim, enviaram as peças, com descrições enganosas do conteúdo e valor, a Khouli e a um negociante de moedas antigas em Connecticut. Khouli tentou, então, usar as mesmas fotos para revender os sarcófagos a um colecionador da Virgínia. Investigadores da Fiscalização de Imigração e Alfândega (ICE, na sigla em inglês) alegam que Ayman Ramadan negociava antiguidades pilhadas da Síria, Jordânia e Líbia. Além disso, e-mails entre Alshdaifat e possíveis clientes sugerem que ele tem conhecimentos diretos sobre pilhagens no Egito.
Brenton Easter, um agente especial da ICE, observa que a colaboração mútua das redes internacionais de pilhagem é bem mais eficiente que a colaboração entre as diversas autoridades fiscalizadoras. Ele ressalta que o contêiner que trouxe o sarcófago exterior de Shesepamuntayesher aos Estados Unidos foi remetido pela Amal Star Antiques, uma companhia de Dubai. Segundo Easter, a Amal Star pertence a Noor Sham, da família Sham de negociantes de antiguidades, residente em Mumbai, na Índia. O jornalista investigativo Peter Watson, em seu livro Sotheby’s: the Inside Story, afirma que membros da família Sham dirigiram uma grande operação de pilhagem e contrabando que levou esculturas de templos da Índia ao Reino Unido nos anos 1990, em alguns casos via Dubai, e consignou à Sotheby’s londrina a venda de várias peças proeminentes.
“Não conheço todos os mocinhos, os outros agentes da lei dos vários países”, diz Easter, examinando um mapa-múndi pregado na parede de sua saleta, na sede do Departamento de Segurança Interna em Nova York. “Mas parece que todos os bandidos se conhecem, que têm ligação direta uns com os outros.” Ele conta que recentemente um colaborador do Oriente Médio disse estar sendo seguido por contrabandistas e negociantes de sua região. Franze os lábios e balança a cabeça em aprovação. “Isso deve significar que chamei a atenção deles. Muito bom. Agora sei que estou fazendo o meu trabalho.”
Em contraste com outras mercadorias ilícitas, como drogas e armas, as antiguidades saqueadas começam sujas mas terminam limpas (ao menos na aparência), pois suas origens legais são disfarçadas quando elas passam pelas redes de tráfico. Sem declaração de procedência detalhada – a documentação de todos os sucessivos proprietários –, é impossível saber se um objeto é legal ou não. No entanto, até para muitos artigos que são colecionados legalmente, não há registros confiáveis de procedência, e isso gera um dilema para colecionadores, negociantes e curadores de museu a cada possível aquisição.
Mousa Khouli vendeu Shesepamuntayesher a um empresário da indústria farmacêutica e colecionador de antiguidades chamado Joseph Lewis, que mora na Virgínia. Lewis foi pronunciado, juntamente com Khouli e outros, em maio de 2011, com acusações que incluíam formação de quadrilha para atividades de contrabando e lavagem de dinheiro. Depois de quase três anos de intenso litígio, ele fez acordo com a promotoria e recebeu uma suspensão condicional da pena; por fim, o processo foi extinto. Lewis negou todas as acusações, alegando que comprou que foi o responsável pela importação.
Colecionadores de antiguidade
Se existir um gene de colecionador, Lewis o possui. Sua mãe colecionava galheteiros de vinagre, estatuetas de elefante e iscas em formato de pato; seu pai colecionava armas de fogo. Lewis começou a juntar formigas em frascos antes mesmo de aprender a andar. Hoje, a sua casa de 600 metros quadrados guarda todos os galheteiros, patos e paquidermes de sua mãe, assim como a sua coleção de 30 mil insetos e um importante acervo de antiguidades egípcias. “Me dê duas coisas do mesmo tipo, e eu já começo uma coleção”, diz Lewis, um sessentão em boa forma que fala quase aos berros. Ele me mostra caixas de cerejeira com gavetas e mais gavetas de gafanhotos de asas roxas, borboletas iridescentes e vespas gigantes, mortos e espetados com alfinete. Vemos sua notável coleção egípcia, que inclui vários sarcófagos impressionantes guardados em vitrines climatizadas dignas de um museu.
Enquanto admiramos uma estátua de madeira pintada de Ptah-Sokar-Osiris, com sua solene face dourada e seus olhos hipnotizadores, sinto a mesma atração que já senti ao fitar outras antiguidades egípcias, a mesma sensação misteriosa de um frêmito de vida sob aquela superfície. Entendo o desejo de possuir um objeto assim, de viver por um tempo sob esse olhar calmo, infinito. Meses antes, senti o mesmo arrepio na Sotheby’s diante de um busto em diorito negro de um sacerdote do templo de Karnak, sabendo que, por 500 000 dólares, ele poderia ser meu.
O futuro da atividade de colecionar antiguidades está ameaçado pela ininterrupta intervenção das leis dos Estados Unidos e de outros países, argumenta Lewis. Por isso, recentemente, ele fundou uma associação para educar e defender colecionadores. Ele recita alguns de seus princípios: tais pessoas, assim como os museus, são guardiões da propriedade cultural da humanidade, que muitos países de origem não protegem. Mesmo quando uma antiguidade não é escavada por arqueólogos, ela pode possuir valor científico significativo. Muitos colecionadores contribuem para o conhecimento do público compartilhando suas peças com estudiosos e museus.
Com uma crescente colaboração entre as comunidades de colecionadores e estudiosos, seria possível compilar um catálogo de itens legítimos que constituiria uma poderosa ferramenta contra as pilhagens, acredita Lewis . “Se não constar do catálogo, não poderá ser vendido nem comprado”, diz ele sobre seu hipotético banco de dados. “Não tem registro, é rapinagem. Ponto.”
Lewis não é o defensor mais franco dos colecionadores. James Cuno, presidente e CEO do J. Paul Getty Trust, diz que muitas repatriações recentes foram erros, pois a missão dos museus enciclopédicos é coletar, conservar e partilhar o patrimônio cultural mundial, e muitos objetos que são devolvidos a áreas em conflito sofrem riscos. Por essa razão, diz ele, não se pode excluir a compra de artefatos roubados se isso ajudar a salvá-los da perda ou destruição. “Você concordaria em não negociar com terroristas, mesmo se negociar pudesse salvar reféns?”, argumenta. “Não participar do mercado não vai fazer o mercado desaparecer. Essas não são questões simples, isentas de risco, tipo tudo ou nada.”
Embora o comércio de antiguidades possa ter salvado muitas obras-primas, as áreas cinzentas em que opera deixam-no suscetível às acusações de que ele impulsiona a pilhagem e de que parece encorajar seus participantes a se autoenganar sobre a procedência de seus estimados objetos.
Lewis diz que prefere não falar sobre o caso de Shesepamuntayesher, mas explica que só comprou seus ataúdes depois que Mouse Khouli, o negociante, declarou uma procedência que pareceu plausível. (Khouli afirmou que os caixões provinham da coleção do pai dele.) Eis o xis da questão: a convenção de 1970 da Unesco, as leis de patrimônio e as ações judiciais e repatriações do começo dos anos 2000 deviam ter requerido com mais rigor as comprovações de procedência. No entanto, muitos colecionadores, negociantes, leiloeiros e curadores de museu ainda sentem que têm direito ao mesmo sigilo e anonimato que tradicionalmente encobriram o comércio de antiguidades. As vendas privadas nas principais casas de leilão estão em alta, e permanecem comuns as declarações de procedência vagas, como “coleção privada suíça” ou “por herança”.
Consideremos, por exemplo, a estátua do sacerdote que examinei na Sotheby’s. Uma semana antes de o objeto ir a leilão, Christos Tsirogiannis, arqueólogo forense da Universidade de Glasgow, revelou que o item constava do Arquivo Schinoussa, um banco de dados fotográfico compilado por uma famigerada rede de pilhagem e contrabando. Embora a menção nesse arquivo não prove que um objeto é maculado, o fato de a casa de leilão ter omitido essa informação na declaração de procedência suscita questões preocupantes. (A Sotheby’s chamou de “inacuradas e irresponsáveis” as declarações de Tsirogianni.) “Desde 2007 identifico objetos desses arquivos de saqueadores em quase todo leilão importante”, diz Tsirogiannis. “O fato de as casas de leilão continuarem a vendê-los mostra que não estão preocupadas em melhorar seu comportamento. Só querem saber de continuar a vender.”
Casas de leilão famosas há tempos aceitam declarações de procedência genéricas ou inexistentes, mesmo para obras de arte vindas de áreas assoladas por saqueadores ou de zonas de guerra. Dos anos 1970 até 2011, casas de leilão, inclusive Christie’s e Sotheby’s, venderam obras-primas da estatuaria Khmer, apesar do evidente risco de terem sido roubadas de templos na selva durante e após a feroz guerra civil cambojana. Grandes museus, como o Metropolitan, também compraram ou receberam estátuas Khmer.
“Peças assim deviam ter acendido a luz amarela no mundo todo. Ninguém poderia tê-las comprado ou vendido de boa fé”, diz Tess Davis, advogada e diretora da Antiquities Coalition, um grupo de advocacia de Washington, DC. “Apenas alguns anos atrás os colecionadores lamentavam a ausência de arte cambojana nos Estados Unidos. No entanto, quando eclodiu uma guerra civil genocida, num passe de mágica o mercado foi inundado de obras-primas – sem procedência comprovada, com indícios de roubo, algumas cirurgicamente decepadas nos tornozelos!”
Depois de ter acompanhado os ataúdes de Shesepamuntayesher através da criminosa cadeia de fornecimento que os levou do Egito aos Estados Unidos, tenho dificuldade para considerar a compra de artefatos sem impecável comprovação de procedência como algo além de cegueira intencional. O arqueólogo Ricardo Elia concorda. “É óbvio”, diz ele, invocando as leis básicas da economia. “Se você paga por objetos saqueados, incentiva mais saques.”
A batalha pela propriedade cultural prossegue, mas há sinais de esperança. Em 2010, o Boston Museum of Fine Arts criou um novo cargo, “curador de procedência”, primeira e única função desse tipo nos Estados Unidos. Em 2013, funcionários do Metropolitan repatriaram duas distintivas estátuas Khmer, sendo imitado por outros museus americanos. O Met fez depois uma grande exposição de arte do Sudeste Asiático, com a cooperação do governo cambojano. “Esse tipo de colaboração, que se destina ao empréstimo de longo prazo, e não à aquisição direta, é uma medida poderosa e positiva para os curadores de museu”, observa a professora Patty
Gerstenblith, especializada em herança cultural. Em 23 de abril de 2015, o caixão de Shesepamuntayesher foi mandado de volta ao Egito, e hoje está exposto no Museu do Cairo. Enquanto isso, alguns curadores, além de colecionadores como Lewis, clamam por um banco de dados de antiguidades para ajudar a enfraquecer a pilhagem, e propõem um encontro com arqueólogos.
“Descobrir interesses em comum é crucial, tanto nos países de origem como nos de destino das peças”, diz Sarah Parcak. A pilhagem continuará enquanto os cavadores no Egito e os compradores em outros países não enxergarem as antiguidades como elementos vitais da narrativa do nosso passado. “A história humana é a mais magnífica saga a ser contada”, diz Sarah. “O único modo de podermos compreendê-la por inteiro é se a descobrirmos juntos.”

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