sexta-feira, 24 de junho de 2016

O CACHÊ DE SAFADÃO

A festa de São João, o cachê de Safadão e a cultural revolução


Ao circular pelo interior da Bahia, mais precisamente por Buerarema e Prado, com os espetáculos Os javalis e Os males do casamento, do meu grupo Teatro NU, mais uma vez me vieram pensamentos sobre políticas públicas para a cultura que pudessem transformar uma cidade e suas redondezas. A carência é violenta, preocupante e prejudicial; e isso é visto ao anoitecer nas praças e tvs ligadas.
Polêmica recente indicou que apresentação de Wesley Safadão em Caruaru seria cancelada, devido a valores, à crise, etc. Parece que a apresentação ocorrerá, pelo valor de R$575.000, segundo diversos portais de notícias.
Essa será apenas uma das apresentações do São João da cidade, que não conseguiu odesconto que a Prefeitura de Salvador conseguiu, pagando apenas R$300.000 para ele ser uma das cinco atrações de um dos cinco dias de réveillon. Haverá mais gastos com estrutura, palco(s?), outras atrações durante o São João de Caruaru que vai durar sete dias com diversos artistas cujo cachê não deve ser tão barato assim.
Na Bahia, não é diferente. Prefeituras reservam um montante expressivo, perfazendo quase a totalidade do orçamento da cultura e turismo, muitas vezes, para ter as atrações mais populares, gerando uma disputa de artistas, cachês, agendas e, principalmente, para mostrar quais cidades têm a melhor festa junina.
No entanto, concentremo-nos apenas no cachê de Safadão, dentre as quase 30 atrações da festa em Caruaru.
Ao contrário de diversas pessoas que não entendem a cultura e a arte como eixo fundamentais de formação do ser humano, e que seguidamente querem criticar orçamentos da cultura cotejando-os com falta de leitos em hospitais ou superlotação do sistema penitenciário, penso que um investimento maciço em cultura e arte é mola propulsora da economia e capital simbólico que interfere diretamente na estrutura psicossocial de uma cidade, transformando sensibilidades, valores, comportamentos e relações.
Dito isso, façamos uma breve conta: R$575.000 dividido por 12 meses dá R$48.000 por mês, arredondados. Os gastos em estrutura da festa, que são locados, podendo ser investidos na estrutura de um teatro municipal. Um espaço para 200, 300, 500 pessoas que, estruturado com salas de ensaio, possibilidade de projeção cinematográfica, um pequeno museu ou galeria, espaço recreativo e um café-livraria, poderia funcionar como um coração da cidade, lugar com praça em volta que concentrasse também bares e lanchonetes e, por que não, um coreto ou pequeno anfiteatro para apresentações do lado de fora.
Com o investimento de estrutura para uma festa de 7 dias, mais alguns cachês desses quase 30 artistas contratados, ainda contando com apoios estaduais, federais, doações de espaço, material, financiamentos, a cidade teria um Teatro Municipal, modesto, talvez, mas um teatro.
Nesse espaço, a prefeitura poderia ter o museu de sua cidade, mostrando sua história, sua cultura popular, sua arte, exposições itinerantes, poderia fazer parcerias com instituições que viajam o Brasil com mostras de grandes artistas. Poderia fazer mostras cinematográficas, parcerias com festivais, exibições regulares de filmes com seu projetor e uma tela à frente do proscênio. No espaço recreativo e no anfiteatro, atividades de final de tarde para crianças e adultos, espetáculos de rua, circos, bandas, palhaços, performances, o que ocorresse. Um café teatro de qualidade, com possibilidade de um piano-bar, para apresentações de trios, duos, voz e violão, piano e voz, ou só piano, ou o que fosse. E o teatro sendo teatro.
O teatro sendo teatro, basicamente, podendo receber espetáculos de dança, teatro e música. Para isso, a prefeitura poderia apenas isentar pauta e fornecer funcionários, que ganhariam já da prefeitura. E de onde a prefeitura tiraria dinheiro para pagar funcionários, quebrada que sempre está e com salários atrasados?
Bem, é aí que entram os R$48.000, 1/12 do cachê de Safadão.
Desses quarenta e oito mil reais, poderia se tirar os salários dos funcionários. Uns R$20.000, pra ser bem generoso, pensando técnicos, limpeza, administração. Mas não só. Garanto que por R$8.000 por mês, conseguiria-se um diretor artístico para esse teatro municipal que, além de gerir o espaço, junto a um administrador, poderia ser, por exemplo, o diretor da companhia de teatro da cidade: cinco atores ganhando R$3.000 (que pra realidade de uma cidade do interior sem acesso a nada é um razoável salário; visto que atualmente boa parte dos profissionais de Salvador sequer ganham isso por mês em projetos que duram no máximo quatro meses, ficando sem remuneração findo esse período).
Bastava pegar mais um cachê de outra atração e teríamos gente de dança e de música, ministrando oficinas e, porque não, fazendo um quarteto de cordas da cidade, ou uma formação básica de um quarteto mais piano, que assim poderia executar parte relevante do que melhor oferece a música de câmara ao longo dos séculos, de Bach a Paulo Costa Lima? E uma companhia de dança? Cinco bailarinos e alunos avançados das oficinas completando elencos de coreografias? Mais R$50.000, por mês, tirados de duas atrações de um dia só no ano, no São João, e teríamos um teatro municipal com tudo isso.
Ao invés de sete dias de festa, a cidade teria dois, três dias, sem atrações megafamosas. E a cidade teria o ano inteiro com peças teatrais, oficinas, cinema, coreografias, concertos, exposições, etc. Mesmo que essa perspectiva parasse nos R$575.000 de orçamento anual, o teatro municipal conseguiria, dentre as alternativas acima, fervilhar e ter ótimas opções.
Esse centro cultural poderia virar fundação. Poderia conseguir recursos da iniciativa privada. Poderia ser adotado por alguma empresa que explora recurso naturais da região, ou tem fábrica na localidade, ou bancos que, com seus lucros gigantescos, ainda dão as costas ao interior.
A população poderia rejeitar por um ano, essa opção de não trazer artistas famosos para o São João e fazer essas “maluquices de maconheiros, bichas e coisas cabeção”. Poderia rejeitar por 5 anos, talvez. Mas duvido que, bem gerido, sem desvios de verba excessivos, tramoias, perseguições e apadrinhamentos excessivos, aparelhamentos, nepotismo e mau gosto excessivos (sim, o Brasil ainda vai demorar algumas eras para fugir disso tudo), duvido mesmo que isso tudo não tenha um impacto violentamente positivo na cidade.
Naturalmente, a indústria criativa seria aquecida, alimentada, gerando a famosa economia da cultura com fonte de renda local. A cidade atrairia turistas culturais, não só aqueles que vão em busca de belezas naturais e festejos. A população teria um enriquecimento cultural e perceberia o valor de outras artes que não aquelas que passam no rádio e na TV, e passaria a se interessar por outras percepções e sensibilidades.
Precisamos de revoluções culturais e há recursos públicos para isso. Medidas a princípio impopulares poderiam modificar uma população inteira e suas redondezas. Espaços para isso, muitas cidades já têm. Artistas pra isso, as que não tem foi porque migraram em busca de melhor oportunidade, e muitas vezes trazer um olhar de fora é bom pra gerar um atrito que produz a faísca criativa.
Amo São João. Muitas cidades têm sua tradição ligada ao São João (muitas delas, inclusive, veem suas tradições serem preteridas e/ou obnubiladas pela atrações famosas). Mas aquecer a cultura e a arte locais, potencializar uma cidade com cultura e arte o ano inteiro, fortalecer identidades, criatividades, sensibilidades, tudo isso, com certeza, mexeria com a estrutura econômica e social da cidade. Mais possibilidades de investimentos, desonerando a prefeitura, inclusive.
Há que se investir em São João, em réveillon, em carnaval, mas há que se pensar uma cidade que tenha sua cultura e sua arte voltadas o ano inteiro para seus cidadãos. As melhores cidades são aquelas que são boas para sua população. Automaticamente, atraem gente de fora que quer viver aquilo. A cultura do evento, problema recorrente na Bahia, não aquece a economia local nem fortalece sua cultura de forma duradoura e constante.
Sempre dizem que quem quer faz, quem não quer manda fazer. Recebo sempre provocações para entrar na política. Mas sabe quando eu, ou qualquer um bem intencionado vai conseguir ser eleito ou convidado a exercer um cargo de confiança, e quando vai ter orçamento, boa-vontade dos superiores e liberdade para agir?
Eis a questão. Safadão é o que mais se tem, por aí.

Cultura e Cidade

  • Gil Vicente Tavares

    Encenador, dramaturgo, compositor e articulista. Doutor em artes cênicas, professor da Escola de Teatro da UFBA e diretor artístico do Teatro NU.

 

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