quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

DO LADO DE DENTRO, COM AR CONDICIONADO



Fui convidado na semana passada para discutir Salvador, cultura e futuro na oitava mesa de debate da Academia da Crise, do MAM, onde estiveram presentes os participantes da websérieproduzida pelo Urban Arquitetura sobre o futuro da cidade. Tentei ali tratar do tema não pelo aspecto da produção cultural (através do qual o gargalo que sufoca a arquitetura é tão conhecido como intocado) e sim pela cultura espacial da cidade, lançando a pergunta sobre a cultura espacial do presente – aqui sobre os modos culturais de como as pessoas se relacionam com o seu espaço na cidade – para esboçar alguma perspectiva de futuro para esta cultura específica.
É bem provável que os últimos 20 anos tenham consolidado uma radical alteração nos modos de usar o território da cidade, estabelecendo uma nova cultura espacial a partir de transformações que tomaram uma forma clara há mais ou menos 40 anos. Neste processo, dois bastiões até então essenciais para a compreensão do genius loci da cidade perderam completamente a importância e tornaram-se reminiscências, nostalgias ou meros resíduos pouco funcionais: os elementos naturais e o patrimônio histórico.
Não sobrou rio que não tenha sido “refuncionalizado” em canal de esgoto para depois ser coberto por lajes de concreto, como não vai sobrar árvore qualquer no entorno da Avenida Paralela, seja para dar lugar a condomínios, novas vias ou linhas de transporte coletivo; o coqueiro de Itapoan é hoje tão somente uma imagem numa canção de Caymmi, assim como os coqueirais que não tenham conseguido um lugar cânonico entre os poucos cartões postais da cidade; entre as árvores que sobreviveram às pragas naturais das últimas temporadas talvez somente as do zoológico ainda não tenham sucumbido à implacável motosserra aniquiladora de sombras nas ruas; não há quase traço nenhum de vida marinha nas costas da baía e atlântica, pois as praias, impróprias para o banho, são aquelas onde desaguam os rios cobertos por lajes de concreto. E se um dia for executada a ampliação do aeroporto, a eliminação do que restou das dunas, consumidas por loteamentos de terríveis condomínios de residências unifamiliares, já é dada como certa. A cota 100 nunca foi apenas uma visão de futuro apocalíptica.
O patrimônio histórico passou por sina semelhante: depois de lajes de concreto armado terem dominado o interior das casas e a paleta completa das cores do catálogo de tintas as fachadas do Pelourinho, com suas inventadas “fachadas de fundo” nos quintais transformados em “largos e praças”, as imediações da Conceição da Praia já passaram por dois ciclos de arruinamento (o deste ano, que levou alguns casarões abandonados na Montanha, chegou às manchetes dos jornais), a Estrada da Rainha foi eliminada do mapa e 1500 casarões encontram-se sem uso no Centro. Os bairros da Saúde e Santo Antônio são o reino dos puxadinhos horrorosos e o palácio arquiepiscopal disputou durante anos com as obras de Lina Bo Bardi a posição número um de abandono e destruição emblemáticos; mas nada se compara ao claustro de São Francisco que, com o conjunto dos azulejos, está virando pó.
Desprovida de sua arquitetura histórica e dos elementos naturais como valor e elemento determinante, Salvador desenvolveu uma cultura espacial fortemente marcada pela interioridade e pela artificialidade, cujo elemento constituinte fundamental é o ar condicionado. Inaugurado em meados dos anos 70, o Shopping Iguatemi representa arquitetonicamente o ponto de partida desta mudança, sendo por isso também o marco de despedida da arquitetura moderna na Bahia. Se esta prezava pela integração entre o interior e o exterior (através de cobogós e brises de edifícios tanto públicos como privados, como na Escola Politécnica da UFBA, e, nesta tradição, as escolas pré-fabricadas de Lelé) e pela expressão plástica escultórica forte no país de Niemeyer (tanto o TCA como a “Balança do CAB” são exemplos deste aspecto modernista), o Iguatemi, com seu ambiente totalmente climatizado, cascatas artificiais e mesmo um cheiro artificial que podia ser comprado e virou mania no interior dos automóveis da cidade, era uma nova e radical celebração extrema de um espaço interior completamente artificializado em um edifício de uso coletivo, que ainda teve a capacidade de ancorar uma nova centralidade e redefinir todo o padrão de uso do centro antigo.
E se o terraço aberto original do Iguatemi (há muito inexistente) pode ser visto à época como uma concessão à cultura dos espaços abertos, a arquitetura dos outros shoppings, inaugurados em sequência, demonstram muito bem como a hegemonia do espaço interior se estabeleceu e pavimentou a esteira de uma nova cultura espacial: na fachada do Shopping Itaigara, inaugurado no início dos anos 80, com um interior de vidros escuros, à semelhança de uma boite, faixas horizontais de vidro à frente de uma parede de alvenaria pintada de preto ainda simulam aberturas, com se fossem grandes janelas em fita indicando o número de pavimentos do edifício; já a arquitetura do Shopping Barra, da segunda metade dos anos 80, não tem pudor nenhum em ser simplesmente um bunker completamente fechado: as únicas aberturas em suas paredes cobertas integralmente por revestimento cerâmico são as portas para pedestres e garagem, sensivelmente pequenas diante da massa edificada; ali apenas a claraboia do hall principal abria uma concessão à promessa da realização da fantasia de uma interioridade absoluta. Não é por acaso que desta mesma época data o ponto de partida para o declínio das festas de largo, consagração máxima da cultura anterior, dos espaços exteriores.
Estes grandes equipamentos de uso coletivo alavancaram, portanto, uma cultura de espaços interiores, que, partindo dos templos de consumo, alcançou progressivamente uma ampla vulgarização, apoiada no aparelho de ar condicionado. Se em meados dos anos 80 a presença das tenebrosas caixas para o aparelho de ar condicionado nas fachadas dos edifícios residenciais na cidade era um índice claro de uma moradia de classe média sem risco de escorregar na pirâmide social, a partir de meados dos anos 90 o ar condicionado foi sendo incorporado primeiro a quase todo espaço de trabalho na cidade, aos espaços do comércio e restaurantes, a uma série de espaços de uso coletivo, mesmo os de repartições públicas, aos elevadores (incluindo o Elevador Lacerda!), às igrejas, para ultimamente superar as últimas barreiras de consumo e começar a potencialmente substituir os famosos ventiladores de teto em um grande número de residências e escolas, nas salas de aulas e nos quartos de dormir, desconectando do espaço exterior uma parcela cada vez maior de espaços interiores.
Desta perspectiva, Guima, a figura central do filme Tropykaos, dirigido por Daniel Lisboa, deixa de ser um deslocado na cidade, um excêntrico representado na figura de um artista, que vive com as janelas cobertas para evitar a luz do sol e que se desestabiliza quando o seu aparelho de ar condicionado deixa de funcionar, para passar a ser o cidadão quase típico de Salvador, o homem comum desta nova cultura urbana local. Como ele, a grande maioria da população não está preparada geneticamente para viver nesta cidade: as bases da nova cultura urbana são tão radicalmente artificiais como o é o aparelho de ar condicionado, afinal ela é uma radical cultura de espaços interiores. Ao fazer Guima carregar como Atlas o seu aparelho de ar condicionado quebrado em plena Praça Castro Alves – espaço aberto, exterior, síntese da cultura urbana do momento anterior, a do carnaval de rua – Daniel Lisboa sintetiza violentamente em uma única imagem esta transposição cultural, mesmo que incompleta, da cidade dos espaços exteriores para a cidade dos espaços interiores.
Daí que, considerando como válida a busca por estabelecer a relação entre base material e cultura através da compreensão das fontes e da forma de utilização de energia de cada organização social, o que efetivamente retira de Guima a capacidade de concluir seu livro é menos o dinheiro do edital do governo (assim mais simbólico que funcional) e mais propriamente a capacidade de manutenção de seu ar condicionado em funcionamento. É o que resta de inadequação da relação entre interior e exterior (explorado na obra de arte como a possibilidade de um interior total autossuficiente e completamente hermético em relação ao exterior) que surge como uma interpretação possível do fracasso da personagem. O espaço interior, o espaço de reflexão e criação intelectual, desestabiliza-se porque se fragilizam as condições do suprimento de energia, bases (dinheiro/aparelho de ar condicionado) que garantem sua existência.
Aqui onde a possibilidade de uma recente cultura do espaço interior, com a promessa de transformar as condições dos espaços não somente do comércio e serviços, mas também dos espaços de reflexão e educação – cada cômodo doméstico destinado a leitura, cada biblioteca e cada sala de aula transformada para oferecer condições que garantam a introspecção e a reflexão, em oposição ao imperativo do lazer praieiro, fazendo uso aqui, para uma melhor compreensão, de uma imagem radicalmente nítida e esquemática, constante de Tropykaos – encontra uma junção de elementos que impedem a sua propagação plena, já que as limitações orçamentárias somam-se ao calor exasperante de uma cidade como poucas tropical, quente e úmida, o momento histórico acena com um movimento contrário, ironicamente paradoxal: com a rasante queda do preço dos cada vez mais eficientes painéis de células fotovoltaicas, exatamente uma cidade que “sofre” tanto com o calor do sol tem muita chance de conseguir completar sua particular aventura do estabelecimento pleno de uma cultura de espaços interiores, garantindo através da potencial massificação destes painéis a completude desta particular transformação de nossa cultura espacial. Afinal, diante de um verdadeiro desafio cultural, diante de uma radical transformação dos modos de se viver em conjunto em uma cidade – e cada cidade em última instância é um desafio por si cultural, artificial – qualquer um estará quase sempre despreparado geneticamente. E não há caminho para respostas a estes desafios que não passe por mais artificialidade.

Márcio C. Campos

Márcio Correia Campos é Professor de Projeto, Teoria e Crítica de Arquitetura na UFBA, formado por esta universidade e Mestre em Arquitetura pela TU-Vienna.


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