quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

QUANDO O REFUGO É HUMANO

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Quais dentre as pessoas consideradas inteligentes diriam, com convicção, serem contra a globalização? Quantas, das pessoas que conhecemos, não compram, compraram, usam, usaram, uma peça sequer de roupa, um eletrodoméstico, um enfeite de corpo ou de casa, um objeto de utilidade doméstica que não tenham passado pela mão de obra farta e barata de países pobres das Américas ou da Ásia, a serviço muitas vezes dos conglomerados espalhados no mundo pelos gigantes do G8? Enfim, boa parte do que se consome no mundo, hoje, da roupa íntima ao carro, passando pelo xampu e pelos brinquedos, dos infantis aos eróticos, tem a marca da globalização, fenômeno irreversível.

O capitalismo não existe mais sem a globalização, o que faz lembrar a tese de que, nos países ricos, os carros podem ser alemães, japoneses, americanos, etc. Os perfumes podem ser franceses, a seda, asiática, os relógios, suíços, e quase tudo o que é americano é bem-vindo..., mas o vizinho, ah, esse, não, esse não pode conter em si o pecado irreparável de ser estrangeiro. O ano de 2015, com todas as suas mazelas, foi o  que elegeu como a maior delas o escancaramento da xenofobia, contra os refugiados de guerras e guerrilhas, por parte dos países mais ricos da Europa e até dos nem tão ricos assim. Moral da história: estrangeiros ricos estão ávidos em seus solos para consumir o que de melhor vier de fora de suas fronteiras, desde que com o selo do capitalismo, ou seja, sob a forma de produto no mercado. Sob a forma humana, gente, aí, não. Aí, sai-se rapidamente da esfera da globalização, inclusive da cultural, e entra-se na seara da intolerância. 

NEM, NEM

Hoje, no mundo, tudo o que vem de fora é bem-vindo. Exceto gente. Sim, o maior refugo do capitalismo é o ser humano. E isso vale tanto internamente quanto externamente, quando se fala de fronteiras. No caso do Brasil, por exemplo, o refugo começa a ser produzido internamente muito cedo e já boi batizado com um substantivo entre o infantiloide e o onomatopeico: os "NEM, NEM". Assim os cientistas sociais batizaram os brasileiros que formam um contingente gigantesco, mais de cinco milhões de jovens, aqueles que, desde muito cedo, por circunstâncias sociais, como pobreza, ingresso no crime, gravidez precoce ou evasão escolar, nem estudam, nem trabalham. E como não estudaram lá atrás, não trabalham e não trabalharão jamais, pois sequer são ou têm uma mão de obra precária. São a não mão de obra. Nada sabem fazer e são literalmente o refugo do capitalismo. Da perspectiva econômica e social, a engrenagem do mundo lhes dirá pelo resto de suas vidas: vocês não têm serventia, já que não sabem fazer nada.
Não se sabe quando, como e se acabará o flagelo dos refugiados que zanzam hoje em trajetórias intercontinentais rumo à Europa, paradoxalmente morrendo para fugir da morte, mas tendo como meta o mito de dar aos seus núcleos familiares o direito de correr o risco de morrer, sim, mas cruzando um rito de passagem literal que possibilite algo elementar: a sobrevivência em algum país europeu, onde possam encontrar um trabalho e não ser alvo das balas religiosas, tribais e fratricidas. Embora a maioria deles esteja a anos luz de ser enquadrado na categoria dos "nem, nem" brasileiros, por terem, em seus países de origem, educação formal e profissão definida, as cercas de arame e a polícia das fronteiras lhes dão um diagnóstico muito próximo, a mesma equivalência de refugo humano. Essa condição é ainda piorada por se tratar de milhões de estrangeiros, precisando de espaço e oportunidade em lugares onde só os objetos usufruem os benefícios e o privilégio de vir de fora e ter a nacionalidade outra transformada em algo positivo. A marca mundial de 2015 tem cara e ela é horrível. É a cara da dor de quem bate na porta da Europa e a cara da intolerância de quem não quer ouvir as batidas.
* Malu Fontes 
 Jornalista e professora de Jornalismo da Ufba

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