terça-feira, 19 de janeiro de 2016

UM BANHO DE SHOPPING NA CIDADE

Salvador criado com vó: um banho de shopping na cidade

Por Igor Adorno*
“Salvador odeia suas curvas!”, eis a conclusão a que cheguei. Você deve estar intrigado, se perguntando, entre as colheradas de danoninho, sobre o que estou falando. Ora, meu bem nutrido, pálido e entediado leitor, estou falando de você. Minto. Não só de você. Vou me explicar. Salvador está passando por um processo de reabilitação arquitetônica. Diriam as más línguas, como a minha, que, na verdade, é um processo de deterioração arquitetônica.
Vejam a Barra. A depender de sua sensibilidade, o resultado pode ter agradado muito. Eu diria, de você que gostou, que sua sensibilidade foi regada a danoninho. A Barra, meu querido amigo amante de espaços abertos e linhas retas, se tornou um espaço anódino, com tanta sensualidade quanto a Clarice Falcão ou a Mallu Magalhães. A perspectiva arquitetônica que vem transformando a cidade, não apenas a Barra, odeia o corpo, odeia o sensual, em suma, odeia Salvador. E tal perspectiva, não se enganem, é expressão de um modo de conceber a vida que é também o seu, leitor.
sensualidade não é meramente um predicado sexual, como você e seu vocabulário pré-escolar pode supor. Ela diz respeito a aspectos da vida que, no limite, são o que nos fazem mais do que corpos brancos e empapuçados de comida industrializada. A nossa classe-média tem horror ao sensual, ao corpo, ao toque, à gordura, ao sangue, ao suor. É um horror à vida disfarçado de precauções contra a morte, uma perspectiva sobre a saúde e o que é saudável que é um misto de comodidades que o dinheiro pode comprar e uma intolerância quase alérgica a qualquer coisa que exija do corpo alguma abertura pro novo e “forte”. São meninos e meninas com cara de gripe eterna, alimentados à base de steak de frango, pizza, sucos de caixinha e danoninho, ou seja, tudo o que não tem gosto. Diante de um prato de sarapatel teriam vertigens. Feijoada, apenas se Jucicleide (nossa empregada hipotética) não puser as carnes. Ah! Já contei que, dentre eles, a nova moda é a tal comida vegana? É a fraqueza de espírito travestida de superioridade moral.
A beleza que cultuam é uma tentativa de enaltecer supostos dons intelectuais, uma negação do corpo em nome de uma inteligência “tipo assim”. A música que ouvem não se dança, a comida que comem não tem gosto, o sexo que fazem não tem gozo. Imagino os rapazes e moças nus, com luvas de látex, uma garrafinha de álcool gel na cabeceira, preocupados com o penteado e a maquiagem. O ponto, meu querido (e agora espumante) leitor, é que as feições que a cidade vem tomando no âmbito arquitetônico tem sua cara. Espaços abertos, simetria, limpeza. Tudo insípido e inodoro como um playground de condomínio de luxo, voltado para um tipo de sensibilidade que acha que cenouras e batatas nascem em saquinhos de supermercado.
Obviamente que tais escolhas estéticas e vitais compõem um panorama que pode ser bem explicado se pensarmos em distintivos de classe. A classe-média é a negação acrítica da pobreza, descartando uma beleza que não pode brotar do dinheiro. São a personificação do“não vou me misturar”, são o “NÃO”. A prefeitura de nossa cidade entendeu o recado e está dando na cidade um “banho de shopping”, tornando-a apresentável para qualquer grã-fino do Leblon, modelando e remodelando de modo a ocultar o que há de barroco em nome das linhas retas. Sempre fui muito mais Gaudí que Le Corbusier, muito mais Alpha Blondy que Los Hermanos, muito mais Camila Pitanga que Mallu Magalhães. Salvador está tomando um caminho, uma cara, que é a negação de cada uma sua ladeira. Prefiro Salvador com linhas tortas, como Deus escreveu.
A propósito, vocês viram como vai ficar a ‘nova Lapa’? Precisa dizer mais alguma coisa?
*Igor Adorno é mestrando em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), encrenqueiro profissional, filósofo nas horas vagas. Gosta de ver o circo pegar fogo porque não vai com a cara do palhaço.

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