segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

A CALÇADA DO PORTO DA BARRA


PARECER SOBRE PROJETO 
DE REFORMA DA CALÇADA 
DO PORTO DA BARRA

Ordep Serra

Vamos começar nosso arrazoado por uma consideração básica. Uma paisagem urbana que alcança reconhecimento de sua beleza e de sua significatividade, não apenas em âmbito local,mas ainda além, conferindo a um sítio amplo prestígio, integra o patrimônio de um povo; deve ser protegida, jamais adulterada pelos governantes. Os elementos que compõem a paisagem urbana se organizam em uma sintaxe que é decisiva para a apreciação do conjunto. Considerar o Forte de São Diogo, o Forte de Santa Maria e o Farol da Barra (Forte de Santo Antônio) como
monumentos isolados, como “ilhas” em um vazio, esquecendo seu entorno, contradiz o espírito da legislação pertinente ao patrimônio cultural.


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Desrespeitar os componentes do arranjo espacial que os liga um ao outro é tirar-lhes o valor de monumentos, é degradá-los. Um monumento vem a ser degradado não apenas quando se compromete sua visibilidade ou se descuida de sua manutenção; também é desqualificado quando o espaço que os emoldura ou flanqueia sofre intervenção desfiguradora, como está acontecendo. O conjunto formado por esses fortes e a linha de calçada que os interliga na orla construída, com a correspondente balaustrada, é um conjunto monumental. Esse conjunto deve ser respeitado: há que levar em conta o valor estético da paisagem como um todo. O passeio que limita a orla construída na Barra, dando acesso à praia através de escadarias, tem inegável importância estratégica para a composição da paisagem. A alteração das balaustradas ou do piso pode afetar o conjunto de maneira negativa,como está sucedendo. Elevando-se o piso, as balaustradas evidentemente “diminuem”, pois uma proporção é quebrada. E o piso do passeio, no trecho entre o Farol da Barra e o Forte de SãoDiogo, também tem um valor pictórico que afeta o conjunto. Tirar-lhe esse valor pictórico, que é garantido pelo arranjo das pedras portuguesas compondo um desenho característico, é subtrair qualidade estética à composição da paisagem da orla da Barra. Mais do que isso: o arranjo tradicional da calçada é um componente estilístico do conjunto. Merece a proteção devida à memória arquitetônica do mesmo. Desfigurá-la é atentar contra a integridade de bens reconhecidos como significativos para o patrimônio nacional.


Que a calçada em pedra portuguesa integra conjuntos monumentais harmonizando-se com a arquitetura desta mesma tradição pode-se ver facilmente contemplando logradouros famosos em Setúbal, Santarém, Tomar, Vila Do Conde (para citar só alguns exemplos) em terras lusitanas;
este elemento característico também é um componente ineludível e inseparável de conjuntos arquitetônicos e urbanísticos em Angola (Lobito, Lubango) e em Macau, onde sua presença compõe uma marca histórica. No Brasil, a pedra portuguesa confere um valor estético e um caráter memorável a sítios famosos como Copacabana e Ipanema, no Rio de Janeiro; sua remoção ou substituição evidentemente descaracterizaria tais sítios.


Os argumentos com que se tem procurado desqualificar a composição do piso com pedra portuguesa na Barra são infantis, como é o caso da alegação de que as pedras aí empregadas não são efetivamente portuguesas. Quando se fala em pedras portuguesas, não se faz referência à simples origem do material: a expressão designa uma modalidade de calceteria que se reporta a um modelo lusitano.


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A tese de que as pedras portuguesas provocam necessariamente terríveis traumas ortopédicos não é menos bisonha. Nos muitos lugares, no Brasil, na Europa, na África e na Ásia, em que os calçamentos em pedra portuguesa têm conservação cuidadosa e constante, esses acidentes não acontecem. Não há registro de queixas dessa ordem com relação, por exemplo, ao Calçadão de Londrina ou ao logradouro chamado de Bosque Portugal, em Curitiba, onde os poderes municipais têm tido cuidado de conservar bem o piso. De resto, nenhum calçamento resiste ao
descuido e à negligência na manutenção: haja vista o mau estado do piso de granito na Praça da Piedade, em Salvador, colocado há pouco tempo. O piso de cimento do trecho Farol da Barra –Clube Espanhol, refeito antes e depois do último carnaval, evidentemente foi posto e reposto de forma tão precária que agora já o estão recompondo — sabe-se lá com que durabilidade.


Substituir o piso da calçada no trecho Farol da Barra – Forte de São Diogo, onde as pedras portuguesas o enriquecem com um desenho agradável, por um piso de granito que evoca lápides de cemitério, é desfigurar a orla construída, apagando o movimento e o colorido da linha pontilhada que faz a ligação entre elementos significativos com que ela se harmoniza. A substituição por granito e concreto, além de elevar extraordinariamente o custo da intervenção,desfaz um componente da memória paisagística. Quem o ignora não leva a sério o patrimônio da cidade.


Já foi sugerido o asfaltamento do Pelourinho para viabilizar o trânsito de cadeirantes. Mas nesse caso, o cadeirante teria garantido o direito de transitar em algo que não seria mais o Pelourinho.
O trânsito de pessoas em cadeiras de rodas na (projetada) nova calçada cemiterial da Barra,numa orla desarborizada, seria o passeio por um espaço adulterado e desprovido de um componente não desprezível de sua beleza natural. (A largura mínima do passeio para permitir o trânsito dos cadeirantes é de um metro e meio. Para atender a esse imperativo, nenhuma árvore aí poderia subsistir). Não é possível que os técnicos da Prefeitura não encontrem uma solução que não seja predadora para viabilizar o projeto alegadamente inclusivo.


Salvador sofre hoje um sério dano ecológico com a perda cada vez mais acentuada de cobertura vegetal, com a devastação do verde, sem um trabalho sério de reposição das árvores, que são tratadas como obstáculos para a “urbanização” mutiladora. Na calçada praiana da Barra,tivemos de uma vez seis árvores de grande porte eliminadas. Tempestivamente? Cabe a dúvida,até pela simultaneidade do abate. A oportunidade coincide de forma curiosa com o ritmo apressado de uma dispendiosa obra eleitoreira, por iniciativa de uma administração municipal que até o momento nada tinha feito, no período de quatro anos, para a restauração urbanística da Barra: nenhuma conservação, nenhuma provisão de equipamento necessário. Mas pode-se falar em “restauração urbanística” ou “cuidado urbanístico” quando se atenta contra a integridade de um conjunto monumental e se despreza a consideração do ambiente?


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Sem ponderar o impacto ambiental, a sumária derrubada de árvores, na calada da noite,dificilmente se justifica. O laudo apresentado não é convincente. No mínimo, seria necessária a consulta a botânicos especializados que verificassem, com os competentes exames a respaldarlhes o diagnóstico, a imperiosa necessidade de abater de uma vez todas essas árvores, por insuscetíveis de tratamento e pela iminência de sua queda (simultânea?) em curtíssimo prazo. A alegação de que as árvores estariam “obstacularizando” o novo meio fio apenas mostra que o projeto de implantação desse novo meio fio se pretende um imperativo superior a qualquer outra consideração, sobrepondo-se aos cuidados ambientais e ao bem estar dos usuários da área. A desarborização implica em desconforto e a proposta de substituir cada árvore abatida na Barra por cinco outras em outro local é cruelmente irônica. Pesquisas recentes têm confirmado e reiterado a importância da arborização para conforto dos moradores em espaço urbano. O desconforto coletivo (térmico, antes de mais nada) será fatal com a desarborização da Barra, que sem dúvida acarretará outros prejuízos ambientais.


É também irônico falar em “revitalização da Barra” com um projeto que não contempla a necessária implantação de banheiros públicos no local, não inclui o conserto das escadas que dão acesso à praia, não prevê medidas de conservação, não contempla a segurança e se mostra omisso no tocante a iluminação.


Esse projeto precisa ser divulgado e discutido amplamente. Seus custos devem ser expostos com toda a transparência e justificados item por item, pois é o povo que vai arcar com os gastos e o interesse do povo deve sobrepor-se ao dos empreiteiros. Convém esclarecer se havia previsão orçamentária para essa obra executada a toque de caixa em período de eleições e porque razão ela não foi inscrita no Projeto Orla de financiamento do Governo Federal. A imagem da Barra é um bem público e sua modificação não pode ser assunto secreto. 


desfiguramento da cidade implica em subtração da qualidade de vida dos cidadãos.
Ordep Serra
Antropólogo- professor da FFCH/UFBA

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