O genocídio contra a Palestina acontece todos os dias – com ou sem mídia
Lara Sartorio
A única coisa que mudou depois do cessar-fogo é que agora é até possível contar nos dedos as mortes diárias
01/10/2014
Lara Sartorio
da Cisjordânia (Palestina)
Passado o momento do espetáculo, em termos midiáticos, dos bombardeios contra a Faixa de Gaza e os assassinatos indiscriminados na Cisjordânia, a Palestina retorna à sua invisibilidade cotidiana.
Na última semana, tanques adentraram diversos pontos da Cisjordânia, prendendo dezenas de jovens e crianças palestinos. Em Hebron, a cidade foi tomada pelo terror, com tanques, bombardeio de gás lacrimogêneo, tiros de balas de borracha e munição letal, além de invasões de casas. A operação na cidade deixou dois jovens mortos e um número não confirmado de feridos.
E o que mudou depois do cessar-fogo?
Certamente as centenas de assassinatos diários promovidos por Israel contra os moradores de Gaza. Agora é até possível contar nos dedos as mortes diárias.
Isso mesmo! O cessar-fogo em Gaza significou o retorno à vida cotidiana palestina, que nada mais é que encarar a morte de frente e todo tipo de restrições e humilhações em seu próprio território.
Somado a isso, os palestinos na região da Cisjordânia enfrentam o maior roubo de terras de sua história e uma repressão nos moldes do holocausto judaico, transformando o território em uma câmara de gás ampliada com o lançamento de gás tóxico contra manifestantes cercados pelo Muro do Apartheid.
A derrota de Israel na operação realizada contra a Faixa de Gaza, levando em conta seu desprestígio na opinião pública internacional e – ainda que mínimas – as concessões realizadas em negociação com a autoridade de Gaza (Hamas), fez com que a reação após o cessar-fogo fosse de intensificar a brutalidade da ocupação militar colonialista.
Histórico
Não vamos esquecer que a injusta partilha, conduzida pela então recém-criada ONU, entregou 53% do território nas mãos da minoria de judeus; restando à época 47% da Palestina para os árabes, que representavam 70% da população total no território.
Do mesmo modo, temos que lembrar que, com o forte apoio de grandes potências, a dizer, o protagonismo dos Estados Unidos na região, Israel estufou o peito e orgulhou seus financiadores ao comprar uma guerra contra o mundo árabe, em 1967.
Posto isso, desde então, Israel mantém uma ocupação militar colonialista naquele pouco território que havia restado para os palestinos. Ao longo dos anos, construiu um muro que tomou mais 10% do território habitado pelos palestinos, isolou Gaza da Cisjordânia e transformou as duas regiões nas maiores prisões a céu aberto do mundo.
Sionismo
Tomando a colonização europeia e o nazismo como espelhos, Israel, lado a lado com os Estados Unidos, promove o mais brutal terrorismo de Estado da história. O sionismo, ideologia nacionalista judaica que fundamenta o Estado de Israel, não para por aí. Quando a sua liderança, Ben-Gurion, afirmou que era necessário arrancar da Palestina todos os árabes, seus súditos levaram bem a sério.
Foi com os acordos de “paz” de Oslo que se legitimou o roubo e controle de toda a água da Palestina, de suas terras férteis e cultivadas por gerações e gerações árabes, o controle total do espaço aéreo e marítimo e o controle militar oficial de mais de 80% do território palestino, que é transformado em 100%, na prática.
Os palestinos foram impedidos de ir à cidade santa, Jerusalém, onde foi delimitada uma pequena área que apenas aqueles que nasceram em Jerusalém poderiam habitar e visitar, com a condição de que perderiam sua identidade palestina – tornando-se israelenses em termos legais, mas sem direitos políticos.
Construções de assentamentos de colonos israelenses, através da expulsão e roubo de casas na região, aprisionamentos e torturas intermináveis fazem com que a pequena região de palestinos tenha cada vez menos palestinos.
Pontos de controle (checkpoints) são instalados por toda a região da Cisjordânia, onde soldados bem armados revistam, humilham e torturam palestinos cotidianamente. Além dos pontos, barreiras de pedra, muros, grades, portões cercas definem a arquitetura de destruição da Palestina, construída por Israel.
Menino palestino e soldado israelense diante do Muro da Cisjordânia. Foto: Justin McIntosh/CC |
Paz para quem?
Fica evidente, com tantas experiências de acordos frustrados, que “soluções de paz” somente significariam paz para Israel.
Essa região de latentes conflitos e esse povo que o Ocidente adora chamar de “balconizado”, pronto para brigar entre si, é, na verdade, o tabuleiro de jogo preferido para as potências globais garantirem seu poder de dominação.
Uma região que detém o futuro energético (maiores reservas de hidrocarbonetos inexploradas do mundo), que ainda sofre os efeitos de uma independência tardia da colonização europeia e é culturalmente estranhada pelo resto do mundo globalizado em processo de ocidentalização se apresenta como o terreno perfeito para os detentores do capital moverem as peças do jogo ao seu bel prazer.
Não é à toa que a limpeza étnica promovida pelos Estados Unidos e Israel contra a Palestina segue seu massacre impune como gritos em mudo. Diferente do que nos fazem crer os meios de comunicação de massas, a questão da Palestina nunca foi uma questão étnica e muito menos religiosa.
Esse povo com história milenar, que conviveu harmonicamente com os judeus até o fim do século 19, foi prejudicado por interesses de dominação claros das grandes potências. A questão que está colocada quando analisamos a situação palestina é uma luta entre opressores e oprimidos, colonizadores e colonizados, exploradores e explorados, capitalistas e trabalhadores.
A colonização e o imperialismo são expressões evidentes e radicais do sistema capitalista. A luta de classes apresentada sem mediações, que transfere para a colônia as mazelas do capital, é o que determina a população palestina hoje: 85% abaixo da linha de pobreza e 56% de desemprego.
O bloqueio realizado por Israel contra a Palestina garante que cerca de 80% dos produtos que chegam à Palestina sejam israelenses, criando ali um grande mercado próprio, além das taxações realizadas por Israel dos palestinos que vivem lá, que representam parte significativa da economia palestina, e que não são repassadas à Autoridade Palestina como deveria ser feito.
E a ANP?
Como criação dos Acordos de Oslo, não poderia ser diferente: a Autoridade Nacional Palestina (ANP) nada mais é que uma extensão do poder colonial na correlação de forças internas da Palestina.
É a elite governante da Palestina que não se importa em fazer o jogo do capital e articular pela manutenção do controle da classe dominante. Não é à toa, por exemplo, que a polícia palestina é treinada pelos Estados Unidos e seus salários são pagos diretamente pelos imperialistas.
Foi chocante observar a postura da polícia palestina que durante as manifestações da Cisjordânia fez um muro humano de proteção do Muro do Apartheid contra a resistência palestina. Seu desserviço ficou ainda mais evidente quando foram iniciados aprisionamentos indiscriminados de palestinos pelo exército de Israel de maneira articulada também pela polícia palestina.
Um ou dois Estados?
A discussão em torno da solução do “conflito” vem sendo promovida de forma a polarizar a questão com a solução de “dois Estados para dois povos” ou de “um Estado palestino para os dois povos”.
A solução de dois Estados já vem sendo arquitetada por debaixo dos panos há algum tempo. Não é à toa que a despeito da discordância dos discursos oficiais dos EUA e de Israel já exista há alguns anos – ao passo que os EUA declaram apoio aos dois Estados.
Há quatro anos, a demanda de dois Estados que se concentrava no discurso da esquerda israelense foi aderida também pela extrema-direita de Israel. O que isso significa? Significa que há uma mudança tática, mas que a estratégia permanece a mesma.
Ou seja, em vez de criar um Estado israelense na Palestina, o projeto sionista é o de arrancar o máximo de território e deixar o mínimo possível de palestinos nele. O objetivo colonizador permanece o mesmo, e é o que vem sendo implementado nos últimos 66 anos, a solução de dois Estados nada mais é que a garantia da realização do projeto sionista.
O sionismo está moldando ao seu interesse mais uma dessas soluções de paz que somente lhes serve. As expropriações de terra, a expansão dos assentamentos ilegais de colonos israelenses na Palestina, a divisão da terra – de maneira que posteriormente não importará se os palestinos chamarem de Estado ou não –, os bombardeios genocidas regulares, as condições de vida palestina e os ataques que fizeram dos palestinos a maior população de refugiados do mundo – tudo isso faz com que a realidade presente seja garantida na realidade futura de uma legitimação internacional da ideia de dois Estados formados.
O teatro da solução de dois Estados está sendo armado de tal forma que Israel se apresentará em breve como o democrático e flexível a propor a solução de dois Estados, e os palestinos serão os que “não querem a paz”. Claro, a paz para o grande capital. Isso se ainda persistir uma maioria na Palestina que não aceite a solução sionista.
Mesmo que não tivermos clara uma solução imediata para o conflito, é preciso ter em mente que não se divide uma terra entre colonos e nativos. Eles continuam sendo colonos e nativos.
Para que velhos dicionários sejam rompidos, é preciso primeiramente debater o fim do Estado sionista, racista e terrorista de Israel. A partir daí, é possível construir novas concepções, tendo em mente os limites de reivindicar um Estado, seja ele qual for.
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