sexta-feira, 24 de outubro de 2014

UM ALMOÇO NO YALI

Com o passar dos anos, as datas vão se esquivando. Quando foi a inauguração da primeira ponte sobre o Bósforo? 1967? Mais tarde? Deve estar algures no Google. Qualquer dia mergulharei nesta pesquisa...

Tinha sido convidado para este evento ou, melhor, levado a tiracolo por quem podia se permitir acompanhantes: a ex-rainha Giovanna da Bulgária, cujo marido, o rei Boris, fora sido assassinado pelos capangas do Hitler.
Assistir a uma apresentação do Rapto no Seralho de Mozart, a porta principal do Topkapi Sarayi como pano de fundo é algo difícil de esquecer... E mais: nas primeiras filas!

O dia seguinte, o barco da otomana sultana Neslisha deslizava pelo Bósforo para atracar, em Beikoz, do lado oriental, junto a um dos mais belos yalis (pronunciar “ialë” com biquinho no “ë”, a francesa). Esta aristocrática construção do final do século XVIII, toda de madeira como mandava então a tradição, parece deitada preguiçosamente ao longo do famoso estuário com cara de rio.
Quase ao nível da água, um amplo portão emoldura a húngara condessa Ostrorog cujo marido herdará a casa mantida na família por mais de cem anos. 

Por acaso encontrei no Google o yali da Condessa Ostrorog
que, meio-século mais tarde, parece desabitado...

Minha iniciação a Ásia. Piso em tapetes raros jogados com desenvoltura calculada por vários salões. Poltronas Biedermeier ou vitorianas, livros antigos, cortinas de seda beije ou rosa, vasos chineses. Pelas largas janelas, a européia Istambul e suas elegantes mesquitas. Atravessando o antigo harém, nossa anfitrioa nos conduziu até um jardim, longo e estreito, imprensado entre o morro coberto de altas árvores e, sempre, o Bósforo, sempre riscado por mil barcos de pesca, ferry-boats, veleiros e cargueiros. 

 Algumas mesas espalhadas à volta de uma fonte de mármore foram armadas para um almoço primaveril. Porque me escolheram para sentar junto ao violinista Yudi Menuhin é uma pergunta que nunca terá resposta. Sem demora encontraremos um terreno de interesse comum: a cultura popular. Dos outros convidados tenho vaga lembrança, não mais de uns quinze... Também não consigo lembrar do menu, mas suponho uma diversidade de mezze, um frango com yaourt, sorvetes?

Onde estou? Numa página de Proust, chez la princesse de Laumes? Ou num conto de Fitzgerald?  O ar é leve, de uma transparência azulada. O silêncio é, raramente, sublinhado por algum riso feminino, pela sirena de um barco ou por um pássaro apaixonado. Os rostos são abertos, discretamente alegres. Por causa, quem sabe, do precioso Tokay servido na sobremesa?

O sol se escondeu por trás das árvores. As conversas, adivinhando o fim da reunião, soam mais alto nesta tarde que se dilui. De repente uma imensa sombra invade o jardim. Os convidados, surpresos, amedrontados, levantam os olhos para uma gigantesca e deslavada muralha de ferro deslizando a pouca distancia do jardim, dois metros, talvez, ou menos até?

É um cargueiro soviético rumo ao Mediterrâneo. Os convívios silenciaram. Lá encima uma dúzia de cabeças observam a cena. Um punhado de culposos capitalistas pegos nas suas quotidianas farras. Lentamente, o cargueiro passa, levando... o quê? Petróleo? Vigas, cimento, armas, trigo, máquinas agrícolas? Em poucos minutos terá desaparecido, bandeira vermelha agitada ao vento do crepúsculo. 

A festa acabou. Tempo de despedidas.


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