quarta-feira, 22 de outubro de 2014

FRANÇOIS, O INCOMPREENDIDO








Trinta anos atrás,  no dia 21 de Outubro de 1984, François Truffaut faleceu de um câncer do cérebro com cinquenta e dois anos.  A Cinemateca Francesa está comemorando esse aniversário com uma grande exposição e uma retrospectiva sobre esse cineasta que durante muito anos foi mal amado por uma boa parte da critica francesa. 

Depois de “Os Incompreendidos” (prémio de Melhor Direção no Festival de Cannes de 1959), a crítica parecia querer puni-lo  por esse extraordinário sucesso conseguido por um diretor de apenas vinte sete anos. Entretanto, é difícil descrever a emoção que prendeu muitos cinéfilos e aspirantes-cineastas quando a sua morte foi anunciada. Muitos ficavam com uma forma de culpa e a sensação de ter mal apreciado o François, sua humanidade, sua generosidade e sua contribuição à sétima arte. Em uma entrevista nos Estados Unidos,  um país que o considerou como o maior cineasta francês e um dos maiores do mundo, Truffaut atribuiu essa falta de reconhecimento na terra dele ao fato de que ele era um contador de histórias, no modo dos grandes escritores do século 19, enquanto o século 20 era o século dos filósofos. 

Nos anos sessenta, quando o público começou a se dividir entre o cinema comercial e o cinema autoral, Truffaut ficou com a nostalgia do cinema da sua infância, quando os filmes eram feitos para todos e vistos por todos sem preconceito nem expectativa particular. Por uma ironia cruel do destino, Truffaut sofreu dessa Politica dos Autores, que ele idealizou com André Bazin e seus colegas do Cahiers du Cinema. Ele percebeu que a critica americana tinha pervertido seu discurso, usando o conceito, originalmente criado pelo dramaturgo Jean Giraudoux que proclamou que não existiam peças de teatro, somente autores, para segmentar a produção cinematográfica quando, na verdade, “La Politique des Auteurs” era uma proposta de celebrar todos os filmes de um mesmo cineasta, os melhores como os menores, e de aprender a identificar seu estilo, sua linguagem, suas qualidades e seus defeitos. A Politica dos Autores era um gesto de amor antes de ser uma ferramenta para discriminar a produção cinematográfica.

Como cinéfilo e como cineasta, sempre fui apaixonado pelos filmes do François Truffaut. Durante a gravação do meu primeiro longa, “A Coleção Invisível”, na angústia de acertar a cena do primeiro encontro entre o protagonista (interpretado pelo Vladimir Brichta) e o colecionador Samir (Walmor Chagas), eu pedi para Vladimir escutar uma trilha musical de Georges Delerue, o compositor dos filmes de Truffaut. Eu gostava em particular da sua teoria do cineasta como advogado dos seus personagens:  o protagonista não precisa ser simpático mas deve ser defendido pelo diretor para torná-lo uma figura senão amável pelo menos digna de respeito. Grande leitor, ele se recusava a opor a literatura ao cinema e foi um dos cineastas que mais adaptou obras literárias (Henry James, Ray Bradbury, Henri-Pierre Roché), e mais explorou as possibilidades da voz narrativa e das cartas escritas entre seus personagens para nutrir o drama.

Como acontece as vezes quando se ama um grande artista, a vida me proporcionou momentos nos quais me aproximei um pouco do François Truffaut. Ator mirim, eu participei de um filme (“Les Turlupins”) escrito e dirigido pelo Bernard Revon, roteirista de “Beijos Proibidos” e “Domicilio Conjugal” do conjunto de obras sobre a jornada sentimental do personagem de Antoine Doinel. Não tive o privilegio de conhecer pessoalmente o Truffaut mas soube que ele elogiou a atuação dos atores mirins desse filme. Porém, a lembrança mais forte que ficou comigo foi o enterro do François Truffaut.  Pulei as aulas da faculdade para não perder esse momento. Quando cheguei no cemitério, o enterro estava para acabar e vi a turma da família e dos amigos do Truffaut afogados em uma tristeza indescritível. Como aceitar a morte de um artista que parecia tão jovem com seu sorriso e seu olhar maliciosos, e com tantos projetos ainda para realizar? Na saída do cemitério, bem transtornado, eu fui tomar um café em um pequeno bistrô e quando levantei a cabeça, a meu lado estava, sorridente,  Jean-Pierre Léaud,  o ator do personagem de  Antoine Doinel, e alter ego do François no cinema.  Interpretei esse encontro silencioso como um sinal e voou minha tristeza.

Como artista, minhas influencias são várias, não somente os filmes de Truffaut. Mas eu sei que ele me deixou um legado importante: o desejo de amar todos os filmes sem nenhuma fronteira, e o reconhecimento de que qualquer obra cinematográfica se avalia melhor depois da passagem do tempo. Como muitos cineastas, eu posso também fazer minhas as palavras do François quando dizia que fazia filmes para realizar seus sonhos de adolescente, para se fazer bem e, na medida do possível, fazer bem aos outros.


Bernard Attal, cineasta.

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