Biografia polêmica diz que o mais importante artista alemão do pós-guerra nunca se afastou do passado nazista, tendo retocado dados de sua vida
GRAÇA MAGALHÃES-RUETHER -
CORRESPONDENTE EM BERLIM
Ele foi o artista mais importante da Alemanha do pós-Segunda Guerra, renovador e descobridor de novos caminhos que fizeram de materiais perecíveis como o sebo valiosas obras. Mas a história do conceitual Joseph Beuys (1921-1986) precisa ser reescrita. Como revela o polêmico “Beuys — Die biographie”, de Hans Peter Riegel (editora Aufbau, 600 páginas) o intelectual de esquerda, pacifista e cofundador do Partido Verde alemão gostava de “embelezar” dados da sua vida e nunca teria se distanciado inteiramente do regime nazista, que defendeu como soldado na guerra.
Beuys contava ter se formado em ciências naturais, mas não concluiu nem o curso médio. Mais importante ainda é o fato de que Beuys teria sido um nazista convicto, quando era soldado da Wehrmacht, e que cultivou até pouco antes da sua morte amizade com os antigos camaradas nazistas — seus principais financiadores no início da carreira artística.
Segundo Riegel, a infância humilde e o trauma da guerra, na qual começou a lutar aos 19 anos, influenciaram o artista na manipulação da sua biografia. Para ele, sua vida era um complemento de sua arte, e por isso mudava o que não achava interessante. Muito cedo começou a demonstrar interesse em ações do regime, como em uma queima de livros em maio de 1933, no pátio da escola, seguindo eventos semelhantes em toda a Alemanha contra autores de esquerda ou judeus.
— Beuys contava ter salvo alguns livros da fogueira mas isso não era possível diante da observação de membros da Juventude Hitlerista — diz o autor.
Ele também mentiu sobre a cidade natal (nasceu em Krefeld, e não em Kleve, como dizia) e sobre o próprio pai, Joseph Jacob Beuys, um trabalhador simples — o artista dizia ser filho de Hubert Beuys, bem-sucedido comerciante, na verdade seu tio.
Que Beuys não tenha contado tudo sobre o seu papel na guerra não causa surpresa. O escritor Günter Grass, prêmio Nobel de Literatura de 1999, só revelou em 2006 que havia integrado as SS, sangrentas tropas do regime nazista. Mas o que chama a atenção nas novas revelações é que Beuys, ao contrário de Grass, preservou contatos e ideias dessa época. Grass passou a lutar por minorias — doou parte do dinheiro do Nobel para uma associação de ajuda a ciganos — enquanto Beuys continuou defendendo o papel especial do povo alemão.
No livro, Riegel cita um discurso proferido por Beuys em Munique um ano antes de morrer, em que o artista fala sobre o “gênio alemão” e a capacidade de reerguimento do povo germânico.
— Os integrantes da esquerda dos verdes sabiam que Beuys era perigoso(para o partido) não por ser um maluco, mas pelas ideias nacionalistas — diz Riegel, também artista, observando que escreveu não para derrubar a imagem de Beuys, mas para injetar, com sua biografia, algum senso crítico às já existentes — que, basicamente, o bajulavam.
— Até agora, os textos sobre Beuys são produto de seus admiradores, não têm distanciamento crítico — observa ele, que está sendo processado pela viúva do artista, Eva Beuys.
Riegel diz que Beuys não era antissemita ou racista, mas o fato é que nunca teria se distanciado devidamente do regime nazista. Ele nunca admitiu ter tomado conhecimento do holocausto quando lutava, mas o autor argumenta, com base em documentos, que era impossível um soldado alemão na Polônia, nos últimos anos da guerra, ficar alheio ao que se passava, pois o assassinato corriqueiro de judeus fazia parte do cotidiano da guerra no leste europeu.
Nova versão para o chapéu
Riegel, que estudou arte com Jörg Immendorff, aluno de Beuys, questiona ainda a lenda com a qual o artista explicava a inspiração para usar sebo e feltro em suas obras.
Beuys contava que sobrevivera, gravemente ferido, a uma queda de avião na Crimeia, na época (1944) parte da União Soviética, e fora curado com a ajuda de moradores locais, que o trataram envolvendo-o em gordura animal e feltro. Riegel diz que Beuys foi realmente ferido, mas a queda do avião teria sido apenas um pouso de emergência. E o chapéu, que segundo Beuys esconderia uma placa de metal implantada em consequência de uma fratura, servia mesmo para disfarçar a careca.
No livro, escrito como uma investigação policial, Riegel conta como o artista lutou com unhas e dentes para obter reconhecimento, tendo provocado intrigas entre galeristas para promover melhor a sua obra. Sua arte, na qual se iniciou para preencher as feridas deixadas pelo horror da guerra, acabou conhecida internacionalmente.
Que efeitos terão as revelações sobre o artista para a sua obra? Segundo Riegel, já quando começou a pesquisa sabia que terminaria o trabalho derrubando a imagem do herói:
— De certa forma, fico até triste com isso. É possível que no futuro alguns diretores de museus reflitam antes de expor as obras de Beuys.
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