domingo, 8 de janeiro de 2012

ÁGUA MINERAL PARA MALTÊS E LAMA PARA GENTE

por Malu Fontes                                 

Quem tem muito dinheiro, obviamente pode gastá-lo como quiser e, claro, comportar-se como bem quiser e ninguém tem, em tese, nada a ver com isso. Entretanto, quando esse quem decide que vai fazer essas duas coisas em relação ao seu próprio e rico dinheiro em público, ou seja, gastá-lo e comportar-se perante um país inteiro, que potencialmente poderá espiar cenas explícitas de exibicionismo econômico e de consumismo, então não poderá reclamar dos julgamentos que certamente espocarão na mesma velocidade da iluminação dos tubos catódicos da TV.
E é esse tipo de julgamento que vem acontecendo na imprensa, nas páginas de comentários de blogs e sites e nas redes sociais desde a estreia, na semana passada, do reality show da Band, Mulheres Ricas. O programa entrou na ar na última segunda-feira  para ocupar o horário durante a temporada de férias do CQC. A atração reúne cinco mulheres milionárias, seja por herança de família, fruto de trabalho ou por cama, traduzida, neste caso, como casamento, claro. A socialite carioca ‘ai que loucura’ Narcisa Tamborindeguy, a ex-sem terra, capa de Playbloy e atual piloto de Fórmula Truck e rica Débora Rodrigues, a joalheira Lydia Sayeg, a arquiteta Brunete Fraccarolli e a empresária e apresentadora de TV Val Marchiori estão no ar para mostrar ao país como é viver sem limite no cartão de crédito.


TRAVESTI - De saída, se há algo obrigatório quando se vê, analisa ou critica qualquer programa de televisão é não perder a ideia de contexto e de conjunto do fluxo televisivo, do que é o veículo TV e do gênero com o qual determinada atração televisiva dialoga e que veio antes dela. Embora, no Brasil, o gênero reality tenha se consolidado com o Big Brother Brasil, da Globo, que esta semana estreia a sua 12ª edição, o SBT bem que tentou sair na frente com sua Casa dos Artistas. Num paralelo não só com o BBB, mas com a Casa dos Artistas, A Fazenda e coisas que tais, as moiçolas ricas da Band saíram perdendo de goleada na estreia.


Não se fala de audiência, claro, que ninguém de bom senso vai comparar a audiência e o faturamento turbinados de um BBB com os 4 pontos e alguma coisa marcados na estreia de Mulheres Ricas. Fala-se de justificativa para tamanha exposição para quem já tem tanto dinheiro, do potencial empatia com o público e do elemento mais delicado de todos na TV: espontaneidade ou, pelo menos, representação com naturalidade. Para quem achava o povo do BBB esquisito, artificial, que experimente 5 minutos diante do repertório de Val, Brunete e Lygia, diante das quais Narcisa e Debora parecem cool e os BBBs parecem atores capazes de interpretar Hamlet. Algumas das muheres ricas da Band são tão over e caricatas que parecem estar imitando um travesti sem talento num palco.


GUILHOTINA - Como não arregalar os olhos diante de uma uma velhota coberta de botox e surtada ao ponto de exigir ser fotografada para a capa de uma revista segurando uma Barbie, ambas vestidas e maquiadas à imagem e semelhança uma da outra? A tal, com sua autoridade de arquiteta, alfineta diante da casa de Debora Rodrigues, pintada de azul turquesa, que o único jeito para a casa melhorar de aspecto seria a demolição. Sim, mas o que diz seu próprio espelho de Dona Brunete, diante daquele rosto esculpido de silicone e botox e do seu cabelão de Barbie? Um espelho sensato sugeriria a ressurreição da guilhotina de Maria Antonieta para, quem sabe, com algum esforço, tentar aproveitar o que sobrasse ao sul do pescoço com um transplante de cara.


O povo que nunca gostou de livro mas tem uma atração fatal pela pretensão de parecer ilustrado poderá aproveitar mulheres ricas para fazer um curso intensivo de filosofia by Chanel. Sim, depois que a rasize abusou de mandar correntes por e-mail com textos que Pessoa, Veríssimo, Jabor e Borges nunca escreveram e depois que não-leitores de Clarice Lispector e Caio Fernando Abreu resolveram assassiná-los diariamente no Facebook e no Twitter, agora é a vez do povo da TV transformar Chanel em filósofa. Quer uma frase feita sobre elegância? Diga-se qualquer merda, coloque na boca de um personagem e diga que é de Chanel. Até Maria Adelaide Amaral foi longe para promover sua minissérie sobre Dercy Gonçalves. Para ela, Dercy e Chanel tinham a mesma classe, o mesmo brilho e a mesma filosofia de vida. Ah, tá. Val Marchiori and friends não abrem a boca sem citar uma máxima atribuída a Chanel.

PORNOGRAFIA – Entretanto, o melhor personagem da estreia de Mulheres Ricas não fazia parte do elenco. Era um coadjuvante: o jornalista e escritor Guilherme Fiuza, colunista da revista Época e autor de vários livros. Meio sizudo e sempre mal humorado em seus comentários sobre os mal feitos do governo, soa hilário ele achar tudo tao bem feito no comportamento da mulher, a rica e ‘rafinada’(sic) Narcisa. Sim, na estreia de Mulheres Ricas, o seríssimo Guilherme Fiuza lembrou ao país que, indepedentemente do dinheiro do ser amado, sim, o amor parece continuar muito cego.

Outra coisa que deu para aprender com o programa, usando a estratégia de ver TV no fluxo, ou seja, zapeando e confrontando cada cena, programa ou notícia com o contexto do país, foi a extensão do significado do termo pornografia social. Tem coisa mais pornográfica do que ver uma rica mostrando que sua cachorra maltês só toma água mineral, e em taça de cristal, enquanto, logo após, o telejornal da mesma emissora e todos os demais concorrentes mostram milhares de brasileiros desabrigados, afogados, sem socorro, gente literalmente atolada na lama, com casa e família juntas, em avalanches de enchentes diante das quais o país não investe um centavo em prevenção? Vá convencer uma criança pobre que não é melhor ser cachorro de madame... Ah, em tempo: no dia 10 estreia o primeiro reality da TV baiana. Oito pessoas confinadas dentro de um trio elétrio, o Trio Reality, na TV Aratu/SBT. Diz-se que o elenco será formado por semi-famosos que ficaram no meio caminho rumo ao estrelato da Axé Music. Oremos

 Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA.

Texto publicado originalmente em 08 de Janeiro de 2012, no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com

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