quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Agricultura patenteada

Há cinco anos as plantações de algodão de Burkina Faso, as maiores da África Ocidental, vêm sendo contaminadas por organismos geneticamente modificados. E ao que tudo indica, o país é apenas o ponto de partida para a expansão dessa tecnologia, que traz enormes benefícios a empresas como a Monsanto
por Françoise Gérard
Há algum tempo, o pequeno Burkina Faso, um dos Estados mais pobres do mundo, se lançou discretamente na cultura de organismos geneticamente modificados (OGM). Em princípio, com o algodão BT [1]. Revelada ao grande público em 2003, a parceria do país com a gigante americana de sementes Monsanto suscitou controvérsia entre a população rural e as associações locais, por representar um teste para o desenvolvimento dos OGMs em toda a África Ocidental.
Localização do Burkina Faso
Como Burkina Faso acabou se envolvendo com a empresa famosa por seu herbicida "Roundup" e seu "agente laranja"? [2] A sacrossanta "luta contra a pobreza", para a qual os OGMs trariam sua contribuição, dinamizando a agricultura do país, parece ser apenas um pretexto e as reais motivações dos parceiros estão só começando a aparecer, após muita pressão dos agricultores locais.
Apesar de Burkina Faso ter assinado a Convenção sobre Diversidade Biológica, de 1992, e o Protocolo de Cartagena sobre biossegurança, de 2000, isso não impediu que desse início, em segredo, às primeiras experiências com algodão BT, já em 2001. O desrespeito é evidente: esses tratados internacionais estipulam que os países signatários devem dotar-se de um aparato legislativo e tomar todas as precauções antes de começar a cultura de OGMs. Além disso, comprometem- se a informar a população dos perigos e a não tomar nenhuma decisão sem ampla consulta pública.
No entanto, foi só em 2003, durante uma oficina sobre biossegurança realizada em Uagadugu, a capital, que a Liga dos Consumidores soube da existência dessas experiências e divulgou para a população aquilo que o Instituto do Meio Ambiente e da Pesquisa Agrícola (Inera) tinha dissimulado. A Monsanto sustentou que as experiências estavam sendo realizadas em "espaços confinados". No entanto, omitiu que as redes que protegiam essas plantações estavam rasgadas, possibilitando a contaminação do entorno por meio do ar.
Após quase cinco anos da chegada da cultura de OGMs, o Parlamento de Burkina Faso ratificou, em abril de 2006, o Regime de Segurança em Biotecnologia. A lei tem como objetivo "garantir a segurança humana, animal e vegetal e a proteção da diversidade biológica e do meio ambiente", segundo seu artigo 22, sendo a Agência Nacional pela Biossegurança (ANB) encarregada pela avaliação dos riscos. Ora, segundo seus oponentes, é exatamente porque os riscos são incontroláveis que essas culturas são contestadas... [3]
A Monsanto escolheu Burkina Faso porque o país é o maior produtor de algodão da África Ocidental, à frente do Mali, Benim e Costa do Marfim. Além disso, sua situação geográfica o torna o Cavalo de Tróia da biotecnologia na região. Afinal, as fronteiras na África são porosas, facilitando as trocas involuntárias e a contaminação "acidental" de plantações livres de OGMs, o que traz enormes benefícios às empresas que pregam essa tecnologia. Uma vez infectada uma plantação, não há como voltar atrás. Isso possibilita não só a cobrança de royalties sobre essas plantas geneticamente modificadas, que nem sequer foram adquiridas pelos agricultores, como também condiciona o controle técnico aos produtos daquela empresa específica. Por exemplo: um OGM responde preferencialmente aos herbicidas produzidos pela mesma empresa que o desenvolveu, em geral mais caro.
Burkina Faso era o ponto fraco da região: seu presidente, Blaise Compaoré, tentava reatar os laços com a "comunidade internacional" depois de ter apoiado ativamente Charles Taylor - que agora responde à justiça internacional4 – durante a mortífera guerra civil da Libéria, nos anos 1990. Ele era suspeito de ter alimentado o tráfico de armas e diamantes na sub-região. Em alguns anos, seu país se tornou aluno modelo das instituições financeiras internacionais e da Organização Mundial do Comércio (OMC). A parceria com a Monsanto constituiu, assim, um gesto político de boa vontade com os Estados Unidos, extremamente descontentes com a atitude de Compaoré na Libéria.

A partir de 2003, o ministro da Agricultura, Salif Diallo, fez do algodão OGM sua principal bandeira. A União Nacional dos Produtores de Algodão (UNPCB), dirigida por François Traoré, depois de ter manifestado suas preocupações com a nova tecnologia, mudou de opinião em troca de 30% das ações da Sociedade de Fibras Têxteis (Sofitex), principal empresa de algodão de Burkina, privatizada a pedido do Banco Mundial.

Em seguida, os agricultores dissidentes criaram o Sindicato Nacional dos Trabalhadores do Agropastoral (Syntap) em violenta oposição aos OGMs. O líder rural Ousmane Tiendrébéogo se revolta: “Aqui só existe a agricultura, não temos o direito de jogar roleta russa com nosso futuro”.

À frente da UNPCB encontram-se três empresas de algodão: a Sofitex, na região oeste, a Sociedade de Algodão de Gourma (Socoma), na região leste, e a Faso Coton, na região central, que constituem um cartel que, junto com os produtores, fixa o preço anual. Em 2008, o quilo do algodão estava em 165 francos CFA (R$ 0,80). As empresas fornecem – a crédito – os insumos, os inseticidas e os herbicidas necessários; depois, quando é feita a colheita, elas vêm recolher a matéria-prima.

Essa relação, herdada do sistema colonial, é uma faca de dois gumes, pois não dá autonomia ao produtor. Proprietário de sua parcela, ele pode, teoricamente, abandonar o algodão se considerar o lucro insignificante, e adotar outra cultura rentável, como o gergelim.5 Mas, na realidade, sua dívida e seu baixo nível de instrução, assim como os produtos fornecidos pelas empresas, o tornam dependente do sistema. Yezuma Do, produtor, conta a pressão que sofrem: “Eles vieram com as autoridades e a polícia para nos dizer que, no ano que vem, todos nós produziremos o BT, porque é melhor para nós. Mas eles não nos dizem os preços das sementes. E, se recusarmos, a UNPBC nos avisou que não poderemos descaroçar nosso algodão convencional na região”. Cansado de brigar, Do considera renunciar à cultura do algodão, junto com vários vizinhos.

Propriedade intelectual
A UNPCB e as empresas de algodão constituíram a Associação Interprofissional do Algodão de Burkina (AICB). Em comum acordo com os pesquisadores do Inera e da Monsanto, a AICB supervisiona a formação dos técnicos e dos produtores. É ela quem fixará os preços das sementes BT para 2009. O círculo está fechado.

Em 2008, 12 mil hectares de algodão BT, do tipo Bollgard II, foram cultivados a fim de obter sementes para 300 a 400 mil hectares, tendo a ANB autorizado a produção comercial do algodão BT para 2009.

O que acontecerá realmente? Se a semente do algodão convencional retirada da colheita só custa 900 francos CFA (R$ 4,30) o hectare, por outro lado os direitos de propriedade intelectual (DPI) devidos à Monsanto podem ultrapassar os 30 mil francos CFA (R$ 144) por hectare.6 As empresas de algodão se contentam em tranquilizar os produtores prometendo-lhes que o preço não excederá seus meios.

Uma frente anti-OGM foi constituída pelos agricultores: a Associação para a Conservação do Patrimônio Genético Africano (Copagen). É integrada também por alguns grupos de países vizinhos, como Benim, Mali, Costa do Marfim, Niger, Togo e Senegal. Apesar de suas capacidades financeiras restritas, a Copagen organizou, em fevereiro de 2007, uma caravana pela sub-região a fim de sensibilizar e informar as populações rurais do perigo que elas correm. Essa manifestação foi concluída com uma marcha de protesto nas ruas de Uagadugu. Nos cartazes, podia-se ler: “Não à imposição das multinacionais”, “Cultivar orgânicos é proteger nosso meio ambiente”, “Os acordos de parcerias econômicas [APE]7 e os OGMs não são a solução para a África, eles são é contra nós. Pare – pense – resista”.

Um participante resumia assim o problema: “Se é isso, o OGM, nós não o queremos! Será que os responsáveis trabalham verdadeiramente para o nosso bem? É preciso desde já divulgar a informação e a sensibilização sobre os OGMs. Eles nunca passarão pela África”.

Contudo, a frente pró-OGM não economiza nos gastos; beneficiando-se do apoio do governo, organiza coletivas de imprensa, tem suas viagens de estudo totalmente pagas, faz excursões de campo, divulga filmes “de informação”... Os folhetos impressos em papel brilhante da Monsanto descrevem um mundo idílico com a ajuda das estatísticas do Inera. Eles sustentam que as sementes OGM, Bollgard II, trarão um aumento médio de renda de 45%, uma redução de pesticidas de seis para duas aplicações, uma diminuição de custos de 62% – portanto, uma economia de 12.525 francos CFA por hectare (R$ 62) – e, consequentemente, um benefício para a saúde dos produtores e para o meio ambiente.

Nada parece mais aleatório que a “renda média” em um país submetido a uma pluviometria inconstante. Se não chove, a população rural acaba obrigada a realizar até duas ou três semeaduras sucessivas. Quando o preço das sementes é insignificante, trata-se “apenas” de um aumento de trabalho. Mas, quando se devem quitar os DPIs, quanto renderá um hectare de algodão? Além disso, parece que o gene milagroso é sensível à seca e que degenera à medida que a planta cresce.

Último inconveniente: durante um curso organizado pela União Européia, do qual participava François Traoré, os produtores de algodão foram intimados a guardar um estoque de pesticidas por segurança, em caso de necessidade. O que significa que o recurso aos produtos químicos não diminui, com certeza.

Efetivamente, dois fenômenos podem ocorrer: a aparição de lagartas resistentes ao gene (em quatro ou cinco anos) ou de pragas secundárias não dominadas por essa tecnologia. Os Estados Unidos e a Índia já experimentaram esse problema. E curiosamente, na reunião do Comitê do Conselho Internacional do Algodão (CCIC)8 em Uagadugu, de 17 a 21 de novembro de 2008, ao ser exaltado o êxito espetacular do algodão BT indiano (seis anos consecutivos de rendas crescentes), nenhuma menção foi feita à onda de suicídios entre os pequenos produtores, arruinados por uma produção bem inferior ao que lhes foi apresentado.

Argumentos sedutores
Quanto à redução dos gastos, é bem imprudente calcular um número agora, já que a Monsanto guarda cuidadosamente o segredo do preço dos DPI, que se acrescentará ao dos insumos e herbicidas. Se os rendimentos forem melhores9, a diferença irá para pagar o custo extra dos DPI.

O argumento mais sensível para os produtores continua sendo o da diminuição dos pesticidas, que a Monsanto apresenta de forma sedutora. Frequentemente, durante os dias de semeadura, os agricultores dormem nos campos com toda sua família, se expondo assim à toxicidade agressiva desses produtos. Ora, poder-se-ia utilizar um inseticida natural tirado do neem, uma árvore comum na África Ocidental, como mostram experiências realizadas no Mali, em 10% dos algodoais, pela Companhia Malinesa para o Desenvolvimento dos Têxteis (CMDT).

Em 2001, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) lançou um projeto de gestão integrada da produção e do controle de predadores naturais, visando reduzir, e até suprimir, a utilização de pesticidas. Contudo, nada foi feito para que esse programa passasse do estado de experiência piloto. E mais: “A UNPCB se comporta como uma milícia no centro do mundo rural, reforçando a política da Sofitex, que nos impõe insumos e inseticidas sem nos dar a possibilidade de recusá-los”, protesta Do.

Entre as soluções alternativas aos OGMs existe o algodão orgânico sustentável que a associação Helvetas lançou no Mali, em 2002, e em Burkina Faso, em 2004. Sem produto químico, com adubo orgânico (gratuito) e colheita de primeira qualidade, o solo se regenera em vez de se degradar. O quilo de algodão é pago a 328 francos CFA (R$ 1,60) ao produtor, contra 165 francos CFA (R$ 0,80) para o convencional. A cadeia produtiva já reúne cerca de 5 mil pequenos produtores em cerca de 7 mil hectares divididos em três regiões: a oeste, ao centro e a leste de Burkina Faso.

Mas vários fatores parecem frear sua expansão: além das pressões tonitruantes da Monsanto, aliada às instituições financeiras internacionais, o transporte do adubo orgânico pressupõe, no mínimo, um burro e uma charrete. E raros são os agricultores que dispõem de algum meio de deslocamento.

Segundo Abdoulaye Ouedraogo, responsável pela cadeia produtiva do algodão na Helvetas-Burkina: “Aqui não há futuro para os OGMs. Primeiro, por razões climáticas. Depois, porque os pequenos produtores não seguirão nunca as orientações. Eles se preocupam primeiro em encher os celeiros para alimentar a família: o algodão vem apenas depois. Não é como nos Estados Unidos, onde se pratica a monocultura a perder de vista”.

O furor pró-OGM se explica, então, não apenas pela vontade das transnacionais, mas também pelo enriquecimento que isso gera para uma classe privilegiada, em detrimento dos interesses do país.



Françoise Gérard é jornalista, enviado especial a Ugadugu.

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