CRÔNICA DE UMA DEMOLIÇÃO
Alejandra Hernández Muñoz e Luiz Alberto Ribeiro Freire
A demolição criminosa que a construtora Liwil empreendeu no dia 28 de janeiro comprova o processo de demolição do patrimônio cultural baiano inaugurado com a demolição - derrubada da antiga Sé ocorrida em 1933. Na época, três ingredientes contribuíram para a derrocada da Sé: a justificativa do "progresso", a ganância das autoridades eclesiásticas e a ausência de legislação sobre o patrimônio.
Esta última foi suprida algum tempo depois com a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN, atual Instituto IPHAN). Deste marco em diante, outros ingredientes, tão ou mais nocivos, associaram-se na destruição das referências de nosso passado mais antigo e recente, como o descumprimento das leis específicas, o descaso, a prepotência econômica, a ausência de autoridades, a burocracia intencional, a corrupção e a defesa da "modernidade".
Em 2005, o IPHAN tombou provisoriamente a Igreja de Nossa Senhora da Vitória e o seu entorno, compreendendo uma poligonal que abrange ambos os lados do Largo da Vitória, partindo do antigo Hotel Colonial (atual Aliança Francesa), passando pela clínica médica (CATO), na esquina, e por todas as edificações vizinhas até a Mansão Wildberger, inclusive, e, no lado oposto do Largo, por todos os edifícios desde a residência universitária da UFBA até a esquina com a avenida Sete de Setembro.
Esse tombamento, segundo a Portaria nº10, de 10/09/1986, implica que qualquer alteração, seja por demolição ou acréscimo de qualquer elemento (desde um cartaz publicitário até um edifício), não pode ser feita sem a análise e a aprovação do IPHAN. Via de regra, os tombamentos provisórios têm evoluído para definitivos.
Portanto, o caso da Mansão Wildberger repete, em terras baianas, a estratégia criminosa adotada no caso da Mansão Matarazzo em São Paulo. A consciência da ilegalidade é evidenciada pelo dia, horário e condições escolhidas para a demolição: em uma tarde de domingo, destroçaram a casa com parte do seu recheio, aquele que não foi retirado na madrugada anterior. O ruído das máquinas chamou a atenção da vizinhança, levando-a a denunciar o barulho excessivo à Superintendência de Uso e Controle da Ocupação do Solo do Município (SUCOM); alguns vizinhos apareceram para pilharem, enquanto outros lamentavam.
Por parte da sociedade, há dois comportamentos que comprometem a luta pela preservação do patrimônio: por um lado, a prática do roubo de antiguidades, da privatização dos bens públicos, e, por outro lado, a postura passiva das pessoas, na maioria das vezes indiferentes, ou a lamentação sem conseqüências.
A história do Largo da Vitória e da Mansão Wildberger
A primeira Igreja de Nossa Senhora da Vitória foi construída ainda no século XVI, com sua fachada principal para o poente. O modesto edifício original, em barro e palha, como a maioria das primeiras capelas baianas, foi substituído por outro de alvenaria (possivelmente no século XVII ou XVIII), reorientado "para o lado da terra", com seu acesso principal desde o antigo Caminho do Conselho (atual avenida Sete de Setembro).
Em 1915, mantendo-se a caixa dos antigos muros, a Igreja foi modernizada com a atual fachada eclética, enquanto o Largo da Vitória recebia iluminação, trilhos de bondes e arborização. Ou seja, o valor histórico e artístico da Igreja é inquestionável, não apenas pela sua relevância arquitetônica como pela sua decoração interior em talha, obra-prima do grande entalhador baiano, o Capitão Cipriano Francisco de Souza, realizada no século XIX, assim como a pintura de seu forro.
Até os anos 1930, no terreno do fundo do Largo, atrás da Igreja, havia um casarão do século XIX, com o Hotel Bom Sejour, que alojava principalmente suíços e alemães. Em 1937, o Hotel deu lugar à Mansão Wildberger, inspirada na arquitetura medieval alemã, com exteriores evocando um jardim inglês. Com a gradativa verticalização do Corredor da Vitória, desde os anos 1960, a área do Largo começou a ser rodeada de edifícios altos. Porém, o entorno da Igreja, mesmo com a construção dos arranha-céus, que não superam os 10 andares, conseguiu manter uma relação de escala harmônica, já que, volumetricamente, representa o dobro da altura do volume da igreja, enquanto o afastamento deles do monumento não comprometem a sua legibilidade.
Historicamente, portanto, a Igreja, vista desde o Largo, tem sido percebida contra o céu, com o fundo limpo, sem qualquer elemento que interfira em sua leitura. Assim, desde a ladeira da Barra, apesar de todas as transformações das vizinhanças, há mais de 450 anos que toda a área do fundo do templo se conserva praticamente com as mesmas características: edificações baixas e vegetação densa. E, precisamente, a Mansão Wildberger passou a ser o único espaço que manteve seu ar discreto naquela paisagem, permitindo o destaque da Igreja, principal monumento do lugar. Ou seja, a conservação de toda a atual relação volumétrica, tanto desde o Largo como da ladeira da Barra, revela-se de fundamental importância para a adequada legibilidade monumental da Igreja.
O principal problema, portanto, que envolve o projeto Mansão Wildberger (a destruição da casa para a construção de um arranha-céu de 35 andares), está na relação volumétrica desta monstruosidade com a Igreja, com os edifícios do entorno e com a paisagem verdejante da encosta sobre a Baía de Todos os Santos.
A relevância do entorno da Igreja da Vitória
As primeiras políticas de conservação de inícios do século XX referiam-se apenas ao elemento construído, sem considerar o contexto das edificações e monumentos. Essa foi a linha de atuação dos primeiros tombamentos do SPHAN (atual IPHAN), que estabeleciam graus de proteção de edifícios isolados, no início das campanhas de preservação no Brasil. Porém, com o aprofundamento das discussões e após resultados díspares, percebeu-se que tão importante quanto o próprio objeto era o entorno do bem patrimonial, isto é, a sua ambiência.
A partir da Carta de Veneza, de 1964, então, a proteção começou a ser estendida ao entorno do edifício tombado e, também, a adotar-se como critério de valor a presença de uma edificação na paisagem, a partir do conceito de tecido urbano como elemento monumentalizável. Ou seja, tratava-se de reivindicar o aspecto constitutivo de um ambiente determinado por um edifício, mesmo que esse não fosse relevante desde o ponto de vista histórico ou artístico. Esse é o caso da Mansão Wildberger, como parte integrante do entorno da Igreja da Vitória.
Daí a importância do tombamento da Igreja e, sobretudo, a preocupação existente diante da iminente torre que se pretende construir a poucos metros de seus muros. Não é uma discussão, apenas, do direito à propriedade privada, mas do direito que teria uma reduzida parcela da sociedade de destruir um patrimônio público que não lhe pertence - neste caso, a legibilidade monumental da Igreja da Vitória e, pior, o impacto de tal torre naquele lugar para a feição da cidade.
Os autores são Professores de História da Arte da Escola de Belas Artes da UFBA. Luiz Alberto Ribeiro Freire é museólogo, doutor em História da Arte, vencedor do Prêmio Clarival Prado Valladares de 2006, publicou recentemente "A Talha Neoclássica na Bahia". Alejandra Hernández Muñoz é arquiteta e doutoranda em Urbanismo sobre o tema dos Espaços Públicos de Salvador.
COMENTÁRIOS DO BLOGUEIRO
FOI EXATAMENTE NUMA TARDE DE DOMINGO. ALGUÉM ME TELEFONOU, FOI COM O TAXI DO BETO, UM VIZINHO E AMIGO. TELEFONEI PARA O EUGÊNIO D´ÁVILA LINS, ENTÃO SUPERINTENDETE DO IPHAN. ESTE COMEÇOU POR AFIRMAR QUE NÃO ESTAVAM SOMENTE RETIRANDO OS MÓVEIS. INSISTI, INFORMANDO QUE EU ESTAVA NO LARGO FRENTE A MANSÃO E ESTAVA ASSISTINDO A DEMOLIÇÃO.
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