sábado, 17 de janeiro de 2015

O CHUTE NA SANTA

MARCELO TORRES

Este ano "o chute da santa" completa duas décadas. Trata-se de um fato ocorrido no Brasil e que diz muito sobre liberdade expressão - ou sobre os limites dessa liberdade. Sobre o fato, a posição da imprensa brasileira foi bem diferente da posição adotada agora no caso da revista francesa.

No dia 12 de outubro de 1995, feriado nacional da padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida, um bispo da Igreja Universal do Reino de Deus apareceu de manhã na TV Record xingando e chutando a imagem da santa.

Foi um escândalo.

A imprensa - de maioria católica - ficou indignada. E o Brasil, segundo essa mesma imprensa, ficou "chocado" (a imprensa sempre sabe que o fato X "chocou" o Brasil...).

Até que eram plausíveis os dois questionamentos que moviam o bispo: (1) questionar o culto de uma imagem; e (2) criticar a existência de um feriado oficial religioso.

Embora os dois questionamentos fossem legítimos, o modo como ele opinou, em sua liberdade de expressão (xingando e chutando um símbolo sagrado da religião dos outros) foi um desastre. Ou "um atentado".

As cenas patéticas do pastor (que parecia estar com um santo ou o diabo no corpo) viraram, no dizer da mídia, um "atentado contra os católicos, um ato de intolerância religiosa", requerendo que o Estado brasileiro punisse aquele "crime".

Naqueles dias, o chute na imagem da santa foi o prato da semana, todos os jornais, todas as revistas, todas as rádios e TVs falavam no "atentado à imagem de Nossa Senhora Aparecida". O fato suscitou, também, ataques de católicos a templos sagrados evangélicos pelo país afora.

Em nenhum momento, em nenhum jornal ou rádio ou TV sequer foi lembrado que o bispo estava (bem ou mal) exercendo a liberdade de expressão. Sim: liberdade de expressão, mesmo que "chocasse" a mídia e os católicos.

Lembrando que liberdade de expressão é o direito que todo cidadão (seja jornalista ou bispo evangélico) possui de manifestar sua opinião, sua arte, seus credos - mesmo que não concordemos com ele.

No Brasil, naqueles dias, crescia a audiência da TV Record, comprada pela Igreja Universal. Coincidência ou não, a Rede Globo exibia uma minissérie intitulada "Decadência", cujo antagonista era um bispo corrupto.

Todo mundo sabia que aquele personagem era baseado em Edir Macedo, até porque muitas frases da obra de ficção haviam sido ditas pelo líder da Igreja Universal. Além disso, os evangélicos eram retratados na minissérie como um rebanho de pobres, cegos, fanáticos e manipulados.

O bispo doidão, quando chutou e xingou a imagem da santa, estava movido por dois sentimentos: 1) a reação à minissérie da Globo (que ele achava desrespeitosa) e 2) o questionamento à estátua e ao feriado.

Restava saber se ele podia ou não fazer o que fez. Para toda a imprensa brasileira (cheia de católicos nas redações), não, ele não podia - e deveria ser punido com o rigor da lei (ninguém lembrou que era "liberdade de expressão").

Em tempo recorde, o bispo que chutou a santa foi processado, julgado e condenado pela Justiça brasileira. Foi condenado a dois anos e dois meses de cadeia - por "incitar o preconceito religioso", segundo o juiz católico.

Lembremos que a Constituição diz que "é livre a manifestação do pensamento". Para a imprensa brasileira, essa liberdade tem uma ressalva: "desde que não atinja a nossa religião e a nossa ideologia".

(A Folha de São Paulo, por exemplo, processou humoristas brasileiros que a satirizaram, chamando-a de "Falha de São Paulo". Por outro lado, será que a Rede Globo exibiria a imagem de Roberto Marinho nu, sendo chamado de "merda" e molestado no ânus?)

Vejam os senhores como existe uma diferença da água pro vinho sobre a posição da imprensa brasileira nos dois casos. Eles defendem que a revista Charlie xingue Maomé e faça caricaturas agressivas às figuras sagradas. Mas julgam e condenam quando um bispo evangélico xinga e agride a estátua religiosa católica.

É claro que um caso era de humor em jornal e o outro era de programa religioso na TV, mas ambos estão no âmbito da liberdade de expressão (a expressão artística da charge e a expressão de pensamento do bispo).

Os dois casos podem ser tratados sob a égide da livre manifestação do pensamento, ou seja, da liberdade de expressão.

Só que não...

Nestes casos, um pode xingar e agredir e é permitido e exaltado. Mas o outro xingar e chutar é grave ofensa, julgada e condenada.

Um tinha como alvo os outros, os muçulmanos (apesar de a Charlie fazer sátira com todo mundo).
O outro tinha como alvo o símbolo católico. E aí é outro tratamento...

(Vou abrir um parêntesis para esclarecer: não sou evangélico, não gosto de Edir Macedo nem da TV Record, e acho que a ação do bispo chutador foi ridícula e saiu dos limites.)

Eu poderia, aqui, lembrar um outro fato revelador de dois pesos e duas medidas: a manifestação de estudantes brasileiros e baianos contra uma blogueira cubana.

A blogueira, que veio ao Brasil para falar de liberdade de expressão, foi vaiada por cerca de 80 estudantes, simpatizantes do PC do B, em Feira de Santana-BA. Neste caso, a mídia brasileira não defendeu a liberdade de expressão dos estudantes; muitíssimo pelo contrário, julgou e condenou a liberdade de expressão dos "jovens fascistas".

Assim como os chargistas teriam direito de avacalhar religiões, os estudantes (certos ou errados) também teriam o direito de vaiar uma blogueira. Ou não teriam?

De resto, eu pergunto a qualquer pessoa o seguinte:

1 - O jornal O Globo publicaria uma charge ridicularizante do seu dono?

2 - A Folha de S. Paulo aceitaria ser satirizada como "Falha de S.Paulo"?

3 - A Veja publicaria texto em que alguém a chamasse de "merda"?

Qualquer pessoa sabe que a resposta a essas três perguntas acima é NÃO. Não na pergunta 1, não na 2 e não na 3.

Na eleição de 2010 o Estadão demitiu uma jornalista porque ela elogiou Dilma e criticou o jornal. Onde estaria a liberdade de expressão defendida (hipocritamente) pelo Estadão?

Agora, em 2014, o jornalista Xico Sá pediu demissão porque foi proibido - pela Folha de S Paulo - de declarar voto em Dilma. E onde estava a liberdade de expressão tão defendida pela Folha (quando é para atingir seus alvos)?

Se eles não são capazes de respeitar a liberdade de expressão dos outros contra eles, significa que a liberdade que eles defendem é unicamente aquela em que eles atacam, não admitindo serem contestados, questionados, satirizados.

Se for para satirizá-los, o buraco é mais embaixo, a conversa muda, ou seja, se for usada contra eles, a liberdade de expressão que vá à merda.

Essa história vai dar sempre no mesmo ditado: "Pimenta no cu dos outros é refresco", com o perdão da liberdade de expressão que me permite baixar o nível e soltar um palavrão.

Para a Rede Globo, pimenta no cu de Maomé é liberdade de expressão. Mas pimenta no cu de Roberto Marinho seria um atentado, um crime, e o autor deveria ser preso sob os rigores da lei.

É este o conceito de liberdade de imprensa (e liberdade de expressão) que essa hipócrita e tendenciosa imprensa brasileira outorga a si mesma - e nunca permite que a exerçam para satirizá-la.

Com esses "intérpretes",com essa imprensa, estamos feitos.

Por fim, já dizia Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, num de seus poemas:

"Ora, porra!
Então a imprensa portuguesa é
que é a imprensa portuguesa?
Então é esta merda que temos
que beber com os olhos?
Filhos da puta! Não, que nem
há puta que os parisse."

Qualquer semelhança...


Marcelo Torres é jornalista.

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