quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

DE ARGEL A PARIS

Batalha de Argel e os atentados em Paris*

Raul Moreira
Jornalista e cineasta

Vencedor, em 1966, do Leão de Ouro do Festival de Veneza, Batalha de Argel, de Gillo  Pontecorvo  (1919-2006), além de ser um marco do cinema político, tornou-se, após os recentes acontecimentos em Paris, um importante documento histórico para se compreender a natureza de uma ferida civilizatória difícil de cicatrizar.
Sim, porque, se o colonialismo europeu naufragou após a Segunda Guerra Mundial, a exemplo do fim do domínio francês na Argélia, hoje, como nunca se sente os desdobramentos de tais ações geopolíticas, as quais se fazem ainda mais complexas do que as próprias lutas anticoloniais.


Vale ressaltar que os recentes atos de terrorismo em Paris, ainda que associados à onda jihadista, de uma alguma forma encontram suas raízes no desconforto e nas privações que sofrem as populações originárias das ex-colônias. Para tanto, basta recordar os protestos e incêndios a carros que varreram a capital da França e outras cidades nos últimos anos, atos realizados por jovens que se diziam fora do sistema, maioria dos quais muçulmanos.
Tal opressão socioeconômica na França contemporânea é a mesma que se registrava na Argélia retratada por Pontecorvo. Aliás, o estilo “realista soviético”, com sua pegada documental, em preto e branco, é um dos méritos de Batalha de Argel, que mostra os “nativos” argelinos vivendo de forma oprimida em seu próprio país, como se dá hoje com os milhões de cidadãos franceses de origem não europeia que estão na rabeira da pirâmide social na terra da Bastilha.

                                 

Atualizando: Paris tornou-se uma Argel de outrora, com o seus subúrbios simbolizando Kasbah, a região onde os argelinos da capital viviam confinados, sem a mesma infraestrutura e as boas condições nas quais habitavam os pied-noirs, os colonos franceses e europeus que se apossaram gradativamente dos territórios e gozavam de todas as regalias.
Assim, é difícil para quem vislumbra os 121 minutos de Batalha de Argel não fazer associações entre ontem e hoje. Mais: é como se os irmãos Kouachi, responsáveis pelo massacre à redação do jornal Charlie Hebdo, fossem “agentes” da Frente de Libertação Nacional, a famosa FLN, que matavam em nome da causa, a sangue frio, partindo-se do ponto que não havia inocentes, pois, tudo era válido para se alcançar o objetivo primordial.

Não é à toa que Batalha de Argel, no seu tempo histórico, foi um filme que comungou, queira ou não, com os escritos/bulas do psiquiatra e ensaísta Frantz Fanon, autor do clássico Pele Negra, Máscaras Brancas. Na época, Fanon, que colaborou com a FLN quando esteve na Argélia servindo ao exército francês, justificava a utilização de meios violentos para derrubar o colonialismo e enxergava na violência anticolonial uma práxis totalizante que libertaria o colonizado de suas alienações.
Judeu de gestos refinados e de formação esquerdista, Batalha de Argel caiu nas mães do italiano Gillo Pontecorvo por via do argelino Saadi Yacef, que fora militante da FLN e, após escapar da guilhotina, escreveu um roteiro que retratava as agruras do colonialismo francês. 
O cineasta o rejeitou e propôs escrever, ao lado de Franco Solinas outro roteiro, aceitando a colaboração de Yacef, que foi importante para situar e reproduzir os fatos com extrema verossimilhança e, inclusive, selecionar conterrâneos que se fizeram atores no filme e locações onde se deram alguns conflitos.
No seu recorte, Pontecorvo distanciou a obra do panfleto, fazendo-a escapar das armadilhas fáceis da época e de possíveis maniqueísmos. No final, independentemente das qualidades cinematográficas, Batalha de Argel se constituiu em um documento impressionante, capaz de elucidar de maneira clara as aspirações dos dois lados, no bem e no mal.
Com Pontecorvo estive pelo menos três vezes na Itália. Na última, em 2002, em Roma, onde gravei entrevista com imagens em sua casa, ele já intuía que a Europa enfrentaria dias difíceis por conta da complexidade dos novos fluxos migratórios. Na época, estava assustado  com os efeitos da “ditadura Berlusconi”, período  no qual cresceu a xenofobia contra imigrantes da África e do leste europeu.
Vítima do preconceito, pois ao lado de sua família deixou a Itália escapando do fascismo de Mussolini e refugiou-se  em Paris, Pontecorvo, que também é autor do clássico Queimada (1969), com Marlon Brando, talvez não pudesse imaginar que Batalha em Argel  continuasse tão atual. E, em tempos de ódios e conclusões apressadas, vê-lo ou revê-lo torna-se importante para compreender a complexidade de um conflito civilizatório difícil de apaziguar.

Publicado no Caderno 2 de A Tarde em 22/01/2015

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