terça-feira, 20 de maio de 2014

DA EUTANÁSIA

Para além da religião

Por Sarah Carneiro*

Em fevereiro, a eutanásia foi autorizada em crianças na Bélgica, onde desde 2002 é possível em adultos. Os deputados a aprovaram por 86 votos a favor e 44 contra, e assim o país tornou-se o primeiro do mundo a permitir a morte assistida sem restrição de idade – a Holanda admite a medida, mas apenas em pacientes com mais de 12 anos.

Este limite não entrou como variável no caso belga; o projeto de lei pôs como critério o “discernimento”. Sendo assim, entende-se que crianças doentes sem perspectiva de cura, que estejam em estado terminal e passam por insuportáveis sofrimentos físicos, podem vir a efetuar o pedido, desde que demonstrem clareza quanto ao que estão solicitando.

No Brasil, o Projeto de Lei nº 125/96, de autoria do amapaense Gilvam Borges, é o único sobre a eutanásia que tramita no Congresso Nacional e nunca entrou em votação. Óbvio que leituras apressadas acerca do debate público irão concluir que os impeditivos para que o tão complexo assunto jamais tenha entrado na pauta têm seu combustível na religião.

Interessante que na França, onde o racionalismo se instalou com veemência, a laicidade é um frequente exercício e ser ateu não é nada constrangedor, a eutanásia também não tem vez. Aqui, embora desde 2005 seja permitida a “eutanásia passiva”, ou seja, a interrupção de tratamentos médicos “inúteis ou desproporcionais” induzindo assim o paciente a um coma (caso ainda não esteja), pessoas que na prática tentaram recorrer a este recurso esbarraram em obstáculos jurídicos.

A decisão belga de estender a permissão da morte assistida às crianças reacendeu a resistência à eutanásia por aqui. Os franceses entendem que o conceito de “discernimento” não abarca um senso mínimo de objetividade, e de tão ambíguo nem mesmo um adulto seria capaz de praticá-lo. Notem, portanto, que a discordância francesa em relação à eutanásia é movida por um viés prioritariamente existencial.

E esta constatação me levou ao seguinte questionamento: será que no Brasil não está na hora de se perceber que os freios para certos debates não se restringem à religião? Assim sendo, em relação à eutanásia, por exemplo, que outro componente funcionaria como uma amarra à ideia? Pensando nisso, me veio à memória uma conversa que escutei, recentemente.

Na fila do embarque de volta para Paris, ao telefone, um jovem que aparentava ter entre 25 e 30 anos e que estava acompanhado da noiva e da sogra, com as quais faria uma viagem de férias, dizia estas frases: “certo, pai, a gente vai sair sempre junto”; “fica calmo, pai, eu te ligo assim que a gente chegar lá”; “tá bom, providencio um chip logo que eu puder pra gente ficar se falando, beijo”.

Escutei essas falas sabendo-as nossas. Afinal, elas ilustram aquele tipo de preocupação que a maioria das famílias brasileiras tem com suas crias, que mesmo crescidas, continuam sendo vistas pelos seus genitores como se ainda não tivessem saído da adolescência, e para quem conhece um pouco das relações entre pais e filhos adultos na Europa, onde tais elos costumam ser mais impessoais, entende que o grau de proteção vivido no Brasil tem contornos culturais.

Então, tenho pra mim, que do mesmo jeito que na França o freio à eutanásia tem um caráter filosófico, a resistência no Brasil pode vir a estar ligada, por exemplo, ao universo emocional. É que o modo brasileiro de conduzir com passionalidade as relações familiares seria um limite à apreciação de temas polêmicos como este; nosso jeito de amar em família nos impede de levarmos adiante investidas que exijam certo grau de frieza.

Diante disso, me parece válido problematizarmos a tendência que há, no Brasil, de sempre se eleger como inibidor para o desenvolvimento de uma discussão sobre assuntos espinhosos o fato de que a sociedade é muito atrelada à religião. Não que não seja, mas não perceber que fora do circuito religioso existem outras fontes de oposição ao cultivo de um debate, é não só desprezar a enorme extensão que normalmente caracteriza um campo temático, como abrir mão de uma tarefa que todo povo deve chamar para si: a do autoconhecimento.


*Sarah Carneiro é jornalista e doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Atualmente, está ligada à Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3.


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