Para além da religião
Por Sarah Carneiro*
Em fevereiro, a eutanásia foi autorizada
em crianças na Bélgica, onde desde 2002 é possível em adultos. Os
deputados a aprovaram por 86 votos a favor e 44 contra, e assim o país
tornou-se o primeiro do mundo a permitir a morte assistida sem restrição de
idade – a Holanda admite a medida, mas apenas em pacientes com mais de 12 anos.
Este limite não
entrou como variável no caso belga; o projeto de lei pôs como critério o
“discernimento”. Sendo assim, entende-se que crianças doentes sem
perspectiva de cura, que estejam em estado terminal e passam por insuportáveis sofrimentos
físicos, podem vir a efetuar o pedido, desde que
demonstrem clareza quanto ao que estão solicitando.
No
Brasil, o Projeto de Lei nº 125/96, de autoria do amapaense Gilvam Borges, é o
único sobre a eutanásia que tramita no Congresso Nacional e nunca entrou em
votação. Óbvio que leituras apressadas acerca do debate público irão concluir
que os impeditivos para que o tão complexo assunto jamais tenha entrado na
pauta têm seu combustível na religião.
Interessante que na França, onde o
racionalismo se instalou com veemência, a laicidade é um frequente exercício e
ser ateu não é nada constrangedor, a eutanásia também não tem vez. Aqui, embora
desde 2005 seja permitida a “eutanásia passiva”, ou seja, a
interrupção de tratamentos médicos “inúteis ou desproporcionais” induzindo assim
o paciente a um coma (caso ainda não esteja), pessoas que na prática tentaram
recorrer a este recurso esbarraram em obstáculos jurídicos.
A decisão belga de estender a
permissão da morte assistida às crianças reacendeu a resistência à eutanásia
por aqui. Os franceses entendem que o conceito de “discernimento” não abarca um
senso mínimo de objetividade, e de tão ambíguo nem mesmo um adulto seria capaz
de praticá-lo. Notem, portanto, que a discordância francesa em relação à
eutanásia é movida por um viés prioritariamente existencial.
E esta constatação me levou ao
seguinte questionamento: será que no Brasil não está na hora de se perceber que
os freios para certos debates não se restringem à religião? Assim sendo, em
relação à eutanásia, por exemplo, que outro componente funcionaria como uma
amarra à ideia? Pensando nisso, me veio à memória uma conversa que escutei,
recentemente.
Na fila do embarque de volta para
Paris, ao telefone, um jovem que aparentava ter entre 25 e 30 anos e que estava
acompanhado da noiva e da sogra, com as quais faria uma viagem de férias, dizia
estas frases: “certo, pai, a gente vai sair sempre junto”; “fica calmo, pai, eu
te ligo assim que a gente chegar lá”; “tá bom, providencio um chip logo que eu
puder pra gente ficar se falando, beijo”.
Escutei essas falas sabendo-as nossas.
Afinal, elas ilustram aquele tipo de preocupação que a maioria das famílias
brasileiras tem com suas crias, que mesmo crescidas, continuam sendo vistas
pelos seus genitores como se ainda não tivessem saído da adolescência, e para
quem conhece um pouco das relações entre pais e filhos adultos na Europa, onde
tais elos costumam ser mais impessoais, entende que o grau de proteção vivido
no Brasil tem contornos culturais.
Então, tenho pra mim, que do mesmo
jeito que na França o freio à eutanásia tem um caráter filosófico, a
resistência no Brasil pode vir a estar ligada, por exemplo, ao universo emocional.
É que o modo brasileiro de conduzir com passionalidade as relações familiares
seria um limite à apreciação de temas polêmicos como este; nosso jeito de amar
em família nos impede de levarmos adiante investidas que exijam certo grau de
frieza.
Diante disso, me parece válido problematizarmos
a tendência que há, no Brasil, de sempre se eleger como inibidor para o
desenvolvimento de uma discussão sobre assuntos espinhosos o fato de que a
sociedade é muito atrelada à religião. Não que não seja, mas não perceber
que fora do circuito religioso existem outras fontes de oposição ao cultivo de
um debate, é não só desprezar a enorme extensão que normalmente caracteriza um
campo temático, como abrir mão de uma tarefa que todo povo deve chamar para si:
a do autoconhecimento.
*Sarah Carneiro é jornalista e
doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Atualmente, está ligada à Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3.
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