sábado, 7 de setembro de 2013

LEITURA LACANIANA DO FILME

Sensível e delicado, o filme de Bernard Attal interpreta as segundas chances que a vida oferece para quem tolera as surpresas      
                         
Nesta sexta-feira, 6/9, entra em cartaz em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador e Londrina o filme “A coleção invisível”, do diretor Bernard Attal. Tive a oportunidade de assistir a uma pré-estreia seguida de um debate com o diretor e os atores Vladimir Brichta e Clarisse Abujamra. Após o encontro, Attal concedeu uma entrevista exclusiva ao Mundo Visto pela Psicanálise. Família, mentira, morte, cinema e a profissão do cineasta foram as principais temáticas desse bate-bola. 
Seu filme mostra a união de duas mulheres (mãe e filha) que omitem fatos bastante importantes do homem da casa. Em debate, o senhor comparou esta omissão com as “mentiras amorosas”, como, por exemplo, dizer à velha amada que ela está linda como na juventude. Em sua opinião o cinema pode ajudar as pessoas a aumentar o repertório dessas verdades mentirosas? Onde estaria o limite do cinismo?
Por ter passado muitos anos nos EUA, onde a “verdade” é sagrada e a “mentira” diabolizada, eu vi os efeitos da política da “transparência total” nas pessoas: a dificuldade de se comunicar, a solidão, o uso formatado da palavra. Provavelmente, não é por acaso que os americanos gastem tanto dinheiro com psicoterapias. Estou convencido de que a mentira é uma maneira de alcançar o outro, e, às vezes, revela mais sobre si do que a verdade e, mesmo, do que a omissão, que sempre acompanha a verdade. Não se fala a verdade inteira. Então, vejo mais cinismo na omissão parcial da verdade do que na mentira. A mentira ao menos carrega um recado, uma intenção, um desejo, uma fantasia. Claro que não há como negar que a verdade facilita o convívio social. Se todos mentissem o tempo todo, a vida em grupo seria insustentável e as relações se pautariam pela paranoia. Mas por outro lado, sem a mentira não haveria arte e mágica, não haveria possibilidade de romantismo ou sedução. Um mundo onde todos falassem a verdade o tempo todo seria tão absurdo e intolerável quanto um mundo onde as pessoas mentissem sempre. Então, estou de pleno acordo com o cineasta Eric Rohmer: no cinema, não se mente o suficiente.
Sigmund Freud costumava dizer que a diferença entre um neurótico chato e um artista criativo é que o primeiro transforma suas piores fantasias em sintomas e reclamações e o segundo em obra de arte. Chama a atenção que o “olhar” esteja no centro do filme que, aliás, chama “A coleção invisível”. O senhor poderia falar da diferença entre o olhar da pessoa comum e o de um diretor de cinema?
Parece-me que isso também se relaciona com a verdade e a mentira. O olhar “cinematográfico” é um olhar que assume sua subjetividade, sabe que existem muitas maneiras de enxergar a realidade. O olhar “comum”, pelo contrário, procura entender, se orientar, e definir seu posicionamento frente a essa realidade. “A coleção invisível” acompanha a trajetória de um jovem sem rumo em busca de uma coleção de gravuras raras. A viagem e os encontros durante essa viagem vão alterar sua visão do mundo e começar, para ele, um processo de amadurecimento. O tempo todo, a câmera representa o ponto de vista do protagonista. Descobrimos a realidade através do seu olhar. Se assim não fosse, o filme e nossa percepção do mundo ficariam bem diferentes, mas não menos reais.
Nós, psicanalistas, costumamos dizer que os artistas, com suas obras, interpretam a época na qual vivem bem melhor do que nós conseguimos fazer. O senhor conta a história de um jovem que começou de um jeito (nós o chamaríamos de “desbussolado”) e terminou de outro (norteado, com maior facilidade para o contato). No seu filme, esta transformação se deu pelo encontro com várias das facetas da morte (literal, com a dor, com a pobreza, com o silêncio). É uma proposta?
Sim, mas a morte no sentido da perda, não no sentido do fim. No mundo de hoje, estamos solicitados demais, temos possessões em excesso. Hoje, do ponto de vista da juventude, uma pessoa socialmente sucedida tem que ter milhares de amigos no Facebook. Mas quantos amigos “de verdade” temos? Quanto tempo investimos em nossa companhia ou passamos com as pessoas que realmente amamos? Os personagens de “A coleção invisível” se descobrem por meio da perda e da experiência do despojamento. No interior da região Cacaueira, o protagonista Beto nem consegue mais utilizar celular, porque a cobertura é muito fraca. Então, sem celular, ele tem que procurar as pessoas pessoalmente, ir ao encontro delas, mentir na cara delas. Com celular funcionando, talvez ele teria desistido da sua busca. Da mesma forma, Saada, a filha do colecionador, se reapropriou da terra da família porque perdeu quase tudo com a crise da Vassoura-de-bruxa. A geração anterior de fazendeiros nem frequentava mais as fazendas, deixava tudo na mão do administrador. Então, quando Saada cita a frase do Borges, “só é nosso o que já perdemos”, ela resume o filme inteiro.
A relação do protagonista com seus pais difere dos padrões mostrados pelo cinema brasileiro. Ao contrário da maioria dos filmes, no seu existe uma frieza surpreendente entre a mãe e o filho. É o esboço de outro filme ou isso faz parte do processo de transformação do protagonista?
Um escritor francês escreveu que, para um filho, não é necessário matar o pai. A vida cuida disso. O que ele precisa é matar a mãe. Então, já que o pai de Beto morreu antes do início da história narrada, nosso protagonista precisa se livrar da mãe para conquistar sua vida. Sem contar o filme, podemos dizer que ela se antecipa ao filho. Faz um gesto forte para lhe dar sua liberdade, e, assim, revela todo seu amor. Do ponto de visto do protagonista, eu creio que um filho só se torna um adulto a partir do momento que aceita os defeitos dos pais. Isso faz parte do processo de amadurecimento.
Na Universidade de São Paulo, uma das carreiras mais procuradas pelos jovens é a que forma os futuros cineastas. Se, por um lado, os cursos mais tradicionais (medicina, direito, engenharia) continuam a atrair pessoas, por outro, a concorrência para se aprender como se torna um diretor de cinema é muito grande. O senhor teria uma hipótese a este respeito? E o que aconselharia aos seus futuros colegas?
Às vezes, me assusta ver quantas pessoas procuram essa carreira, não só no Brasil, mas no mundo todo. Obviamente, não vai ter oportunidades para todos os formados dessa área. Seremos cada dia mais numerosos na famosa Caverna do Platão, preocupados com a representação do mundo mais do que com o mundo mesmo. Por outro lado, eu me pergunto se essa onda não se compara com a busca das pessoas que, nos anos sessenta e setenta, estudavam filosofia ou psicologia sem perspectiva de uma carreira bem firme. Muitas não se tornaram filósofos ou psicólogos, mas essa formação ficou importante na vida deles. Então, talvez estudar cinema preencha esse mesmo papel. Manifesta um desejo de compreensão do mundo através da diversidade do olhar cinematográfico. “A coleção invisível” é meu primeiro longa metragem e, da minha parte, seria um pouco presunçoso dar conselhos. Só posso dizer que, como o protagonista do filme, mudei o rumo da minha vida bem tarde, e que nunca é tarde demais para isso. Como na coleta do cacau, “a segunda safra” às vezes é a melhor.

Claudia Riolfi é psicanalista, cursou pós-doutorado em Linguística na Université Paris 8 Vincennes-Saint-Denis. Professora na Faculdade de Educação na Universidade de São Paulo. Diretora Geral do IPLA

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