sexta-feira, 27 de setembro de 2013

O DISCURSO DE UM POETA

Academia de Letras da Bahia

CENTENÁRIO DE RUBEM NOGUEIRA

Luís Antonio Cajazeira Ramos

Salvador, 26 de setembro de 2013

Há cem anos, em 13 de setembro de 1913, em Serrinha, cidade baiana surgida de uma fazenda de mesmo nome fundada por Bernardo da Silva no século XVIII, um descendente do fundador nasceu e foi batizado de Rubem. Como era comum até meados do século XX, ele cresceu em uma família numerosa. Era o quinto dos onze filhos de Luís Osório Rodrigues Nogueira e de Áurea Hermínia Ribeiro Nogueira. Os pais tinham sobrenomes tradicionais, porém adversários, vinculados a grupos de poder opostos na política municipal. O casal apaixonado, como se fora um Romeu e Julieta sertanejo, terminou por contradizer a tragédia shakespeariana com um casamento de mais de meio século. O Sr. Luís Nogueira abraçou inicialmente a atividade de comerciante, rapidamente bem sucedida, e por duas vezes seria um operoso e prestigiado intendente municipal, vindo a aposentar-se como fiscal do consumo após mais de vinte anos no exercício do cargo. Já dona Áurea Nogueira não se resignou à vida doméstica: primeira serrinhense a ser diplomada professora primária, manteve no maior cômodo da ampla residência, a qual até hoje se destaca na praça da cidade, uma escola para meninos, onde mais de uma geração de pequenos varões conheceu as letras e cursou o ensino básico.
O menino Rubem passou a infância em sua terra natal. Aprendeu a ler e a escrever com a própria mãe, que àquela altura chegava aos últimos anos de magistério primário. Mas nos escritos de reminiscências que o hoje centenário Rubem nos legou, ele afirma categoricamente que foi a professora Astrogilda Paiva Guimarães quem lhe proporcionou os primeiros e decisivos estímulos para que viesse a desenvolver seu amor às letras, ao tempo em que inoculava em seu espírito infantil uma admiração biográfica por grandes vultos históricos brasileiros, como Duque de Caxias, Santos Dumont, Osvaldo Cruz e, muito acima de todos, Rui Barbosa, o grande político baiano, jurista maior do Brasil e membro da dinastia dos imperadores da língua portuguesa, de quem Rubem viria a ser um fecundo estudioso. Foi também essa querida professora quem lhe proporcionou a primeira manifestação de júbilo intelectual, ao conceder um prêmio literário escolar à sua incipiente e promissora trajetória de escritor pela composição “Um batalhão em marcha”, texto que viria a ser publicado na edição dominical do jornal O Serrinhense, trazendo orgulho e alegria para seus pais e marcando de forma inesquecível os anos escolares.
Mas a infância não se faz apenas no manuseio do lápis, do caderno, da cartilha e da tabuada. Foi o próprio Rubem Nogueira que, ao completar a oitava década de vida, disse lembrar-se de ter sido desde a mais tenra idade, desde sempre, um menino feliz e ter feito “tudo que uma criança costuma e deve fazer, sob pena de quando adulto sentir nostalgia das coisas próprias da idade que não foram feitas”. E o que não faltava era divertimento infantil em uma cidade interiorana do sertão baiano, com seus dias de sol tórrido e céu sempre azul, com suas noites esfriadas e silenciosas, com suas matas retorcidas e suas águas barrentas, suas árvores frutíferas e seus pequenos animais de caça, seus pastos catingueiros e seus currais, suas roças rasteiras e seus chãos batidos, sua arquitetura simples e sua vida pacata, suas brincadeiras de bola e corrida e suas festas comunitárias, suas histórias fantasiosas e suas assombrações. Nem mesmo a asma tiraria a alegria desses anos que não passaram nunca. Noites de crise asmática eram, sim, intermináveis, insones, sofridas, mas o dia se alternava entre a sala de aula e os jogos e piculas, entre as lições de gramática e os banhos na fonte, entre as operações de aritmética e os pulos sobre muros alheios à cata de diversão.
Tudo se transformou em 1928, quando o jovem Rubem Nogueira veio a se mudar para Salvador, a capital do estado, a cidade da Bahia, a fim de fazer o curso ginasial no Colégio Antônio Vieira em regime de internato. Até a asma acabou, talvez devido aos banhos frios logo de manhã cedo, aos quais se viu obrigado diariamente. E foram muitas as obrigações na rotina escolar jesuítica. Havia hora para acordar, hora para tomar banho, para fazer refeições, para assistir às aulas, para estudar, para brincar, para conversar, para fazer silêncio, para dormir. Se, para alguns, principalmente hoje em dia, isso tudo poderia ser um imenso sacrifício e grande sofrimento, para nosso ilustre serrinhense foi um precioso aprendizado de hábitos de disciplina e um benefício para sua vida inteira, contribuindo para sedimentar sua personalidade, que já vinha talhada pelo caráter. Assim como Rubem Nogueira, muitos se beneficiaram do sistema educacional dessa secular instituição católica de ensino. Só de sua turma, ele mesmo destaca as figuras de José Antônio do Prado Valadares, Fernando Jatobá da Silva Teles, Dermival Costalima, Jorge Calmon, Newton Vacarezza Cordeiro de Almeida e Mário Risério Leite.
“Um batalhão em marcha” foi a composição de sua autoria que marcara os anos impúberes com os brios de escritor e o ingresso precoce no mundo editorial, mas outros dois textos gravaram sentimentos que se opunham e eram igualmente intensos no coração ainda adolescente. Um deles, “Descrição do Farol da Barra”, foi elaborado na prova de português do exame de admissão ao ginásio. O concursando seria reprovado, porque na redação teria iniciado com a letra cê a palavra quociente, a qual, naquela época, admitia grafia única, com a letra quê. Mas tal palavra, com cê ou com quê, não havia sido usada pelo jovem Rubem no texto que escrevera. Assim, com a mesma determinação que o acompanharia por toda a vida, ele foi reclamar perante o diretor do Ginásio da Bahia, o doutor Aristides Maltez, e reverteu a situação vexatória, vendo seu nome publicado no dia seguinte na lista dos aprovados. O outro texto marcante foi “Almanaque”, redigido em uma prova mensal de português, no terceiro ano ginasial, na classe do professor Guilherme Azevedo. Ao devolver as provas aos alunos, o jesuíta sacou a redação de Rubem e leu-a em voz alta para todos como exemplo de texto de qualidade na forma e no conteúdo.
Em 1933, Rubem Nogueira ingressou na Faculdade de Direito da Bahia, na qual iria dar vazão e leito ao manancial de sua vocação, para trilhar pelos caminhos da advocacia, do magistério, do ministério público e da política. Seu espírito de liderança rapidamente se pronunciou no meio acadêmico. Já no primeiro ano letivo, em nome da turma, juntamente com Nelson de Sousa Sampaio, foi o orador da saudação de despedida ao professor de introdução à ciência do direito, Aloísio de Carvalho Filho, que havia sido eleito para a Assembleia Constituinte. Ainda naquele ano, nas férias juninas, em companhia de estudantes veteranos, como Agostinho Pinheiro, Nathan Coutinho, Ulisses Brito e Rômulo Almeida, ele foi um representante dos calouros nas excursões realizadas pelo interior da Bahia em busca de donativos para uma almejada estátua de Rui Barbosa. E logo formou com José Mariani, Oldegar Franco Vieira, José Calasans, Reginaldo Santana e outros colegas um grupo atuante no debate político. Nos anos seguintes, enquanto absorvia os fundamentos da ciência jurídica nas aulas da faculdade, nos códigos de leis e nos livros doutos, crescia em sua consciência crítica um modo próprio de ver e de compreender as relações sociais e as ideias políticas do mundo de seu tempo.
E o mundo de seu tempo de estudante de direito era um admirável mundo novo, contraditório, aturdido com a velocidade das mudanças políticas, econômicas e sociais, com a revolução científica, tecnológica e industrial, com as transformações no comportamento, no entretenimento e nas artes, com a imensa onda da virada cultural em voga. Os Estados Unidos mergulhavam na Grande Depressão, da qual emergiriam como a mais rica e poderosa potência mundial. E a Europa via naufragar a utopia da Liga das Nações, enquanto utopias à direita e à esquerda marchavam para o totalitarismo. No Brasil, a República Velha estava morta. O golpe militar de 1930 veio entornar a política café com leite de paulistas e mineiros e trazer ao poder o gaúcho Getúlio Vargas, que iria consolidar-se ditador após derrotar os revoltosos de 1932 e abortar os ventos liberais constitucionalistas. À Bahia, Getúlio impôs o tenente cearense Juraci Magalhães. Mesmo naquela Salvador provinciana, a explosão urbana e a cultura de massa tinham pressa de chegar. A poesia, a literatura e as artes assumiam sua modernidade. A música popular das estações de rádio invadia todos os lares. Estrelas do cinema americano ditavam modas, gestos, caras, bocas e sentimentos. As beldades desfilavam de maiô. O futebol lotava os estádios. A nova cidade de concreto armado derrubava a Igreja da Sé. E as propagandas comerciais começavam a ser veiculadas para as multidões.
O menino de boa família do interior, o adolescente do colégio interno de padres jesuítas e o acadêmico de direito permaneceram unidos e inseparáveis naquele mundo em turbilhão. A maioria de seus contemporâneos foi sendo cooptada por valores burgueses, pelas locações familiares e pela vida comum. Alguns outros, indignados com as injustiças sociais e a disparidade entre os privilégios da classe dominante e o sofrimento do povo, aderiram ao marxismo em suas variantes socialistas e comunistas. Os horizontes de Rubem Nogueira descortinaram-se em outra direção. Formado numa disciplina severa, senhor de uma personalidade austera e grave e de um caráter firme e honrado, desde aqueles tempos da juventude assumiu suas convicções políticas, seus valores éticos, suas ideias sobre o homem, a família, a sociedade, o estado, a religião e os mais diversos aspectos da vida humana dentro da ordem social, sob um prisma civilizatório de cunho nacionalista, que encontrou seu porto seguro no pensamento e na ação do movimento integralista.
Seu contato inicial com o integralismo foi ainda no primeiro ano do curso de direito. Plínio Salgado, líder nacional do movimento, tinha vindo à Bahia em meados de 1933 para divulgar suas ideias, mas Rubem Nogueira estava em caravana pelo interior do estado em prol da estátua de Rui Barbosa. No final do ano, ele pôde ouvir as palestras de outros integralistas na sede da Associação Universitária da Bahia. As palavras de Miguel Reale, Gustavo Barroso, José Loureiro Júnior e Aristóbulo Soriano de Melo ressoaram no íntimo do jovem de vinte anos. No início de 1934, leu o “Manifesto de Outubro de 1932”, texto basilar do integralismo, que o influenciou por toda a vida. Sabia de cor seu conteúdo e admirava sobremaneira alguns trechos, que diziam da criação de uma cultura brasileira genuína e de um governo de garantia da unidade federal e da harmonia das classes sociais, do incentivo às iniciativas individuais e da construção nacional, sob o primado de Deus, que dirigia o destino dos povos. Ainda em 1934, filiou-se à Ação Integralista Brasileira, de que foi um militante entusiasmado até 1937, quando o golpe getulista tornou proscritos os partidos e implantou a década de totalitarismo personalista do Estado Novo.
Na vida adulta, Rubem Nogueira se destacou em diversas áreas, sendo reconhecido notadamente por três ângulos de seu multifacetado perfil: o jurista, o político e o escritor. Iniciou a carreira de advogado antes mesmo de receber o diploma de bacharel, inscrevendo-se na Ordem dos Advogados do Brasil como solicitador acadêmico, entrando para a atividade forense desde o penúltimo ano do curso, em 1936. Advogado brilhante e respeitado pelo saber jurídico e pela cultura geral, exerceu a profissão durante a vida inteira, inclusive no cargo de procurador efetivo do município de Salvador, chegando a procurador-geral. Em 1951, foi nomeado procurador-geral da justiça durante o governo de Régis Pacheco, destacando-se pela independência em relação ao executivo e pela promoção do 1º Congresso Estadual do Ministério Público. Abraçou a docência em 1956, dedicando-se à introdução à ciência do direito, tendo sido um dos fundadores da Faculdade Católica de Direito da Bahia, da qual se formou a Universidade Católica do Salvador. Em 1979, assumiu o cargo de consultor jurídico do Ministério da Justiça, a convite de Petrônio Portela, tendo chefiado uma delegação brasileira que foi a Paris negociar cooperações na área jurídica. Depois, até aposentar-se, retornou à advocacia e ao magistério.
Sua carreira política, abortada pelo golpe de 1937, deslanchou em 1945, após a queda da ditadura Vargas, que não se sustentaria no novo cenário do pós-guerra. Ao lado de velhos parceiros integralistas, lutou pela organização do Partido de Representação Popular no território baiano. Em 1947, foi eleito para a Assembleia Legislativa Constituinte, na qual votou duramente pela cassação dos deputados do Partido Comunista do Brasil e fez um mandato em defesa do ensino público, da criação de ginásios estaduais e da formação de uma polícia civil. Após quatro anos no Ministério Público, voltou à legislatura estadual em 1955, tendo, então, as iniciativas da criação das escolas normais e técnico-profissionais e da estruturação da carreira do magistério primário. Em 1959, foi o segundo suplente à Câmara Federal em sua coligação partidária. Assumiu o cargo de deputado federal em 1961, sendo eleito para mandatos sucessivos até 1971. Esses foram anos de crise política e institucional: a renúncia de Jânio Quadros, a deposição de João Goulart, o golpe militar de 1964, a promulgação do Ato Institucional nº 5, a cassação de mandatos e partidos e a perseguição feroz aos opositores do regime. O experiente parlamentar, que a vida tratara de calejar e amaciar a tolerância, não somente buscou viabilizar conquistas para Serrinha e outras cidades da Bahia, mas também se revelou um audacioso e firme defensor da legalidade e dos direitos e garantias constitucionais.
O escritor Rubem Nogueira, inescapavelmente, terminaria por denunciar em seus textos a erudição de sua formação filosófica, científica e técnica e seu conhecimento jurídico, político e literário. Trouxe à luz artigos, ensaios e livros de assuntos diversos, com ênfase na teoria geral do direito, em tópicos de direito civil e, sobretudo, em direito constitucional, com destaque para o Curso de Introdução ao Estudo do Direito. Exímio memorialista, seu livro O homem e o muro percorre a história política brasileira do século XX. Como biógrafo, traçou o perfil de autores e personalidades da história brasileira. Mas foi de sua dedicação ao estudo da vida e da obra de Rui Barbosa que surgiu sua maior contribuição à história, ao direito e às letras nacionais. Na saudação pela posse de Rubem Nogueira neste silogeu, Nelson de Sousa Sampaio comparou o estudo da atividade de Rui traçado por Rubem em O Advogado Rui Barbosa ao imenso fôlego biográfico de Luís Viana Filho e à profundidade investigatória de Pinto de Aguiar sobre o pensamento econômico do Águia de Haia.
Nas diversas áreas em que decidiu atuar, Rubem Nogueira acumulou vários títulos científicos, associativos e honoríficos. Bacharel pela Faculdade de Direito da Bahia e professor catedrático da Universidade Católica do Salvador, foi membro da Ordem dos Advogados do Brasil, do Instituto dos Advogados da Bahia e do Instituto Bahiano do Direito do Trabalho. Foi membro fundador do Instituto dos Advogados Brasileiros, honraria que Gerson Pereira dos Santos, no laudatio em celebração à passagem dos oitenta anos de idade do confrade, chamou de consagração, pois se tratava do mais alto órgão cultural da classe. Pela produção intelectual em ciências do direito, foi eleito para a Academia de Letras Jurídicas da Bahia. E por toda sua produção literária de inquestionável valor e de amplo alcance, bem como por sua estatura de homem notável, foi conduzido à Cadeira 35 desta Academia de Letras da Bahia.
Este é o esboço aligeirado e canhestro que me vejo capaz de fazer da vida pública de Rubem Nogueira. Da vida privada, sei muito pouco. Do primeiro casamento, na juventude, nasceu o primogênito, mas foi precoce a viuvez. Em 1948, veio o casamento definitivo com sua Gilka, a quem chamou de “metade verdadeiramente cara e essencial de minha vida”. E mais seis filhos e os netos e os bisnetos. E nada mais sei. Não nos conhecíamos. Em 1997, o saudoso poeta Gerardo Mello Mourão veio a Salvador para uma récita e convidou-me para um drinque na varanda do hotel. Lá estavam também dois de seus ilustres amigos baianos: Oldegar Franco Vieira e Rubem Nogueira. O afável Oldegar veio a ser aquele amigo mais velho que a gente visita em fins de semana. Já Rubem Nogueira, porte ereto, gestos contidos, sorriso discreto, olhar seletivo, eu não creio que ele tenha notado minha presença. Agora, calhou de sermos ambos imortais e ocupantes da mesma cátedra neste sodalício, sentados lado a lado na Cadeira 35, mirando o vazio do horizonte, vendo secar tudo a que chamávamos de mãe, vendo ruir tudo a que chamávamos de pai. Não há como contornar a evidência de que somos irmãos, com a eternidade para chegarmos a um acordo. Haverá o dia em que, às escondidas e cúmplices, escaparemos deste orfanato para ganhar o mundo, mergulhar nas águas salobras da fonte, correr pelas ruas sem atentar à poeira grudando na pele úmida e, furtivamente, pular o muro da vizinhança para roubar mangas-rosas.

Muito obrigado.

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