Academia de Letras da Bahia
CENTENÁRIO DE RUBEM NOGUEIRA
Luís Antonio Cajazeira Ramos
Salvador, 26 de setembro de 2013
Há cem anos, em 13 de setembro de
1913, em Serrinha, cidade baiana surgida de uma fazenda de mesmo nome fundada por
Bernardo da Silva no século XVIII, um descendente do fundador nasceu e foi batizado
de Rubem. Como era comum até meados do século XX, ele cresceu em uma família numerosa.
Era o quinto dos onze filhos de Luís Osório Rodrigues Nogueira e de Áurea
Hermínia Ribeiro Nogueira. Os pais tinham sobrenomes tradicionais, porém adversários,
vinculados a grupos de poder opostos na política municipal. O casal apaixonado,
como se fora um Romeu e Julieta sertanejo, terminou por contradizer a tragédia shakespeariana
com um casamento de mais de meio século. O Sr. Luís Nogueira abraçou inicialmente
a atividade de comerciante, rapidamente bem sucedida, e por duas vezes seria um
operoso e prestigiado intendente municipal, vindo a aposentar-se como fiscal do
consumo após mais de vinte anos no exercício do cargo. Já dona Áurea Nogueira não
se resignou à vida doméstica: primeira serrinhense a ser diplomada professora
primária, manteve no maior cômodo da ampla residência, a qual até hoje se
destaca na praça da cidade, uma escola para meninos, onde mais de uma geração
de pequenos varões conheceu as letras e cursou o ensino básico.
O menino Rubem passou a infância em
sua terra natal. Aprendeu a ler e a escrever com a própria mãe, que àquela
altura chegava aos últimos anos de magistério primário. Mas nos escritos de reminiscências
que o hoje centenário Rubem nos legou, ele afirma categoricamente que foi a
professora Astrogilda Paiva Guimarães quem lhe proporcionou os primeiros e
decisivos estímulos para que viesse a desenvolver seu amor às letras, ao tempo
em que inoculava em seu espírito infantil uma admiração biográfica por grandes
vultos históricos brasileiros, como Duque de Caxias, Santos Dumont, Osvaldo
Cruz e, muito acima de todos, Rui Barbosa, o grande político baiano, jurista
maior do Brasil e membro da dinastia dos imperadores da língua portuguesa, de
quem Rubem viria a ser um fecundo estudioso. Foi também essa querida professora
quem lhe proporcionou a primeira manifestação de júbilo intelectual, ao conceder
um prêmio literário escolar à sua incipiente e promissora trajetória de
escritor pela composição “Um batalhão em marcha”, texto que viria a ser
publicado na edição dominical do jornal O Serrinhense, trazendo orgulho e
alegria para seus pais e marcando de forma inesquecível os anos escolares.
Mas a infância não se faz apenas no
manuseio do lápis, do caderno, da cartilha e da tabuada. Foi o próprio Rubem
Nogueira que, ao completar a oitava década de vida, disse lembrar-se de ter
sido desde a mais tenra idade, desde sempre, um menino feliz e ter feito “tudo
que uma criança costuma e deve fazer, sob pena de quando adulto sentir
nostalgia das coisas próprias da idade que não foram feitas”. E o que não faltava
era divertimento infantil em uma cidade interiorana do sertão baiano, com seus
dias de sol tórrido e céu sempre azul, com suas noites esfriadas e silenciosas,
com suas matas retorcidas e suas águas barrentas, suas árvores frutíferas e seus
pequenos animais de caça, seus pastos catingueiros e seus currais, suas roças rasteiras
e seus chãos batidos, sua arquitetura simples e sua vida pacata, suas brincadeiras
de bola e corrida e suas festas comunitárias, suas histórias fantasiosas e suas
assombrações. Nem mesmo a asma tiraria a alegria desses anos que não passaram
nunca. Noites de crise asmática eram, sim, intermináveis, insones, sofridas,
mas o dia se alternava entre a sala de aula e os jogos e piculas, entre as lições
de gramática e os banhos na fonte, entre as operações de aritmética e os pulos
sobre muros alheios à cata de diversão.
Tudo se transformou em 1928, quando o
jovem Rubem Nogueira veio a se mudar para Salvador, a capital do estado, a
cidade da Bahia, a fim de fazer o curso ginasial no Colégio Antônio Vieira em
regime de internato. Até a asma acabou, talvez devido aos banhos frios logo de
manhã cedo, aos quais se viu obrigado diariamente. E foram muitas as obrigações
na rotina escolar jesuítica. Havia hora para acordar, hora para tomar banho,
para fazer refeições, para assistir às aulas, para estudar, para brincar, para
conversar, para fazer silêncio, para dormir. Se, para alguns, principalmente
hoje em dia, isso tudo poderia ser um imenso sacrifício e grande sofrimento,
para nosso ilustre serrinhense foi um precioso aprendizado de hábitos de
disciplina e um benefício para sua vida inteira, contribuindo para sedimentar sua
personalidade, que já vinha talhada pelo caráter. Assim como Rubem Nogueira,
muitos se beneficiaram do sistema educacional dessa secular instituição católica
de ensino. Só de sua turma, ele mesmo destaca as figuras de José Antônio do
Prado Valadares, Fernando Jatobá da Silva Teles, Dermival Costalima, Jorge
Calmon, Newton Vacarezza Cordeiro de Almeida e Mário Risério Leite.
“Um batalhão em marcha” foi a
composição de sua autoria que marcara os anos impúberes com os brios de
escritor e o ingresso precoce no mundo editorial, mas outros dois textos
gravaram sentimentos que se opunham e eram igualmente intensos no coração ainda
adolescente. Um deles, “Descrição do Farol da Barra”, foi elaborado na prova de
português do exame de admissão ao ginásio. O concursando seria reprovado,
porque na redação teria iniciado com a letra cê a palavra quociente, a qual, naquela
época, admitia grafia única, com a letra quê. Mas tal palavra, com cê ou com
quê, não havia sido usada pelo jovem Rubem no texto que escrevera. Assim, com a
mesma determinação que o acompanharia por toda a vida, ele foi reclamar perante
o diretor do Ginásio da Bahia, o doutor Aristides Maltez, e reverteu a situação
vexatória, vendo seu nome publicado no dia seguinte na lista dos aprovados. O
outro texto marcante foi “Almanaque”, redigido em uma prova mensal de português,
no terceiro ano ginasial, na classe do professor Guilherme Azevedo. Ao devolver
as provas aos alunos, o jesuíta sacou a redação de Rubem e leu-a em voz alta
para todos como exemplo de texto de qualidade na forma e no conteúdo.
Em 1933, Rubem Nogueira ingressou na
Faculdade de Direito da Bahia, na qual iria dar vazão e leito ao manancial de sua
vocação, para trilhar pelos caminhos da advocacia, do magistério, do ministério
público e da política. Seu espírito de liderança rapidamente se pronunciou no
meio acadêmico. Já no primeiro ano letivo, em nome da turma, juntamente com
Nelson de Sousa Sampaio, foi o orador da saudação de despedida ao professor de
introdução à ciência do direito, Aloísio de Carvalho Filho, que havia sido
eleito para a Assembleia Constituinte. Ainda naquele ano, nas férias juninas, em
companhia de estudantes veteranos, como Agostinho Pinheiro, Nathan Coutinho,
Ulisses Brito e Rômulo Almeida, ele foi um representante dos calouros nas excursões
realizadas pelo interior da Bahia em busca de donativos para uma almejada
estátua de Rui Barbosa. E logo formou com José Mariani, Oldegar Franco Vieira,
José Calasans, Reginaldo Santana e outros colegas um grupo atuante no debate
político. Nos anos seguintes, enquanto absorvia os fundamentos da ciência
jurídica nas aulas da faculdade, nos códigos de leis e nos livros doutos, crescia
em sua consciência crítica um modo próprio de ver e de compreender as relações
sociais e as ideias políticas do mundo de seu tempo.
E o mundo de seu tempo de estudante
de direito era um admirável mundo novo, contraditório, aturdido com a
velocidade das mudanças políticas, econômicas e sociais, com a revolução científica,
tecnológica e industrial, com as transformações no comportamento, no entretenimento
e nas artes, com a imensa onda da virada cultural em voga. Os Estados Unidos
mergulhavam na Grande Depressão, da qual emergiriam como a mais rica e poderosa
potência mundial. E a Europa via naufragar a utopia da Liga das Nações,
enquanto utopias à direita e à esquerda marchavam para o totalitarismo. No
Brasil, a República Velha estava morta. O golpe militar de 1930 veio entornar a
política café com leite de paulistas e mineiros e trazer ao poder o gaúcho Getúlio
Vargas, que iria consolidar-se ditador após derrotar os revoltosos de 1932 e
abortar os ventos liberais constitucionalistas. À Bahia, Getúlio impôs o
tenente cearense Juraci Magalhães. Mesmo naquela Salvador provinciana, a
explosão urbana e a cultura de massa tinham pressa de chegar. A poesia, a
literatura e as artes assumiam sua modernidade. A música popular das estações
de rádio invadia todos os lares. Estrelas do cinema americano ditavam modas,
gestos, caras, bocas e sentimentos. As beldades desfilavam de maiô. O futebol lotava
os estádios. A nova cidade de concreto armado derrubava a Igreja da Sé. E as
propagandas comerciais começavam a ser veiculadas para as multidões.
O menino de boa família do interior,
o adolescente do colégio interno de padres jesuítas e o acadêmico de direito permaneceram
unidos e inseparáveis naquele mundo em turbilhão. A maioria de seus
contemporâneos foi sendo cooptada por valores burgueses, pelas locações
familiares e pela vida comum. Alguns outros, indignados com as injustiças
sociais e a disparidade entre os privilégios da classe dominante e o sofrimento
do povo, aderiram ao marxismo em suas variantes socialistas e comunistas. Os
horizontes de Rubem Nogueira descortinaram-se em outra direção. Formado numa
disciplina severa, senhor de uma personalidade austera e grave e de um caráter
firme e honrado, desde aqueles tempos da juventude assumiu suas convicções políticas,
seus valores éticos, suas ideias sobre o homem, a família, a sociedade, o
estado, a religião e os mais diversos aspectos da vida humana dentro da ordem
social, sob um prisma civilizatório de cunho nacionalista, que encontrou seu
porto seguro no pensamento e na ação do movimento integralista.
Seu contato inicial com o
integralismo foi ainda no primeiro ano do curso de direito. Plínio Salgado, líder
nacional do movimento, tinha vindo à Bahia em meados de 1933 para divulgar suas
ideias, mas Rubem Nogueira estava em caravana pelo interior do estado em prol
da estátua de Rui Barbosa. No final do ano, ele pôde ouvir as palestras de outros
integralistas na sede da Associação Universitária da Bahia. As palavras de Miguel
Reale, Gustavo Barroso, José Loureiro Júnior e Aristóbulo Soriano de Melo ressoaram
no íntimo do jovem de vinte anos. No início de 1934, leu o “Manifesto de
Outubro de 1932”, texto basilar do integralismo, que o influenciou por toda a
vida. Sabia de cor seu conteúdo e admirava sobremaneira alguns trechos, que
diziam da criação de uma cultura brasileira genuína e de um governo de garantia
da unidade federal e da harmonia das classes sociais, do incentivo às
iniciativas individuais e da construção nacional, sob o primado de Deus, que
dirigia o destino dos povos. Ainda em 1934, filiou-se à Ação Integralista
Brasileira, de que foi um militante entusiasmado até 1937, quando o golpe getulista
tornou proscritos os partidos e implantou a década de totalitarismo personalista
do Estado Novo.
Na vida adulta, Rubem Nogueira se
destacou em diversas áreas, sendo reconhecido notadamente por três ângulos de
seu multifacetado perfil: o jurista, o político e o escritor. Iniciou a
carreira de advogado antes mesmo de receber o diploma de bacharel,
inscrevendo-se na Ordem dos Advogados do Brasil como solicitador acadêmico,
entrando para a atividade forense desde o penúltimo ano do curso, em 1936. Advogado
brilhante e respeitado pelo saber jurídico e pela cultura geral, exerceu a
profissão durante a vida inteira, inclusive no cargo de procurador efetivo do
município de Salvador, chegando a procurador-geral. Em 1951, foi nomeado
procurador-geral da justiça durante o governo de Régis Pacheco, destacando-se
pela independência em relação ao executivo e pela promoção do 1º Congresso
Estadual do Ministério Público. Abraçou a docência em 1956, dedicando-se à introdução
à ciência do direito, tendo sido um dos fundadores da Faculdade Católica de
Direito da Bahia, da qual se formou a Universidade Católica do Salvador. Em
1979, assumiu o cargo de consultor jurídico do Ministério da Justiça, a convite
de Petrônio Portela, tendo chefiado uma delegação brasileira que foi a Paris
negociar cooperações na área jurídica. Depois, até aposentar-se, retornou à
advocacia e ao magistério.
Sua carreira política, abortada pelo
golpe de 1937, deslanchou em 1945, após a queda da ditadura Vargas, que não se
sustentaria no novo cenário do pós-guerra. Ao lado de velhos parceiros integralistas,
lutou pela organização do Partido de Representação Popular no território baiano.
Em 1947, foi eleito para a Assembleia Legislativa Constituinte, na qual votou
duramente pela cassação dos deputados do Partido Comunista do Brasil e fez um mandato
em defesa do ensino público, da criação de ginásios estaduais e da formação de
uma polícia civil. Após quatro anos no Ministério Público, voltou à legislatura
estadual em 1955, tendo, então, as iniciativas da criação das escolas normais e
técnico-profissionais e da estruturação da carreira do magistério primário. Em
1959, foi o segundo suplente à Câmara Federal em sua coligação partidária. Assumiu
o cargo de deputado federal em 1961, sendo eleito para mandatos sucessivos até
1971. Esses foram anos de crise política e institucional: a renúncia de Jânio
Quadros, a deposição de João Goulart, o golpe militar de 1964, a promulgação do
Ato Institucional nº 5, a cassação de mandatos e partidos e a perseguição feroz
aos opositores do regime. O experiente parlamentar, que a vida tratara de
calejar e amaciar a tolerância, não somente buscou viabilizar conquistas para
Serrinha e outras cidades da Bahia, mas também se revelou um audacioso e firme defensor
da legalidade e dos direitos e garantias constitucionais.
O escritor Rubem Nogueira,
inescapavelmente, terminaria por denunciar em seus textos a erudição de sua
formação filosófica, científica e técnica e seu conhecimento
jurídico, político e literário. Trouxe à luz artigos, ensaios e livros de
assuntos diversos, com ênfase na teoria geral do direito, em tópicos de direito
civil e, sobretudo, em direito constitucional, com destaque para o Curso de Introdução ao Estudo do Direito.
Exímio memorialista, seu livro O homem e
o muro percorre a história política brasileira do século XX. Como biógrafo,
traçou o perfil de autores e personalidades da história brasileira. Mas foi de
sua dedicação ao estudo da vida e da obra de Rui Barbosa que surgiu sua maior
contribuição à história, ao direito e às letras nacionais. Na saudação pela
posse de Rubem Nogueira neste silogeu, Nelson de Sousa Sampaio comparou o
estudo da atividade de Rui traçado por Rubem em O Advogado Rui Barbosa ao imenso fôlego biográfico de Luís Viana
Filho e à profundidade investigatória de Pinto de Aguiar sobre o pensamento
econômico do Águia de Haia.
Nas diversas áreas em que decidiu
atuar, Rubem Nogueira acumulou vários títulos científicos, associativos e
honoríficos. Bacharel pela Faculdade de Direito da Bahia e professor
catedrático da Universidade Católica do Salvador, foi membro da Ordem dos
Advogados do Brasil, do Instituto dos Advogados da Bahia e do Instituto Bahiano
do Direito do Trabalho. Foi membro fundador do Instituto dos Advogados
Brasileiros, honraria que Gerson Pereira dos Santos, no laudatio em celebração à passagem dos oitenta anos de idade do confrade, chamou
de consagração, pois se tratava do mais alto órgão cultural da classe. Pela
produção intelectual em ciências do direito, foi eleito para a Academia de
Letras Jurídicas da Bahia. E por toda sua produção literária de inquestionável
valor e de amplo alcance, bem como por sua estatura de homem notável, foi
conduzido à Cadeira 35 desta Academia de Letras da Bahia.
Este é o esboço aligeirado e canhestro
que me vejo capaz de fazer da vida pública de Rubem Nogueira. Da vida privada,
sei muito pouco. Do primeiro casamento, na juventude, nasceu o primogênito, mas
foi precoce a viuvez. Em 1948, veio o casamento definitivo com sua Gilka, a quem
chamou de “metade verdadeiramente cara e essencial de minha vida”. E mais seis
filhos e os netos e os bisnetos. E nada mais sei. Não nos conhecíamos. Em 1997,
o saudoso poeta Gerardo Mello Mourão veio a Salvador para uma récita e
convidou-me para um drinque na varanda do hotel. Lá estavam também dois de seus
ilustres amigos baianos: Oldegar Franco Vieira e Rubem Nogueira. O afável
Oldegar veio a ser aquele amigo mais velho que a gente visita em fins de
semana. Já Rubem Nogueira, porte ereto, gestos contidos, sorriso discreto, olhar
seletivo, eu não creio que ele tenha notado minha presença. Agora, calhou de
sermos ambos imortais e ocupantes da mesma cátedra neste sodalício, sentados
lado a lado na Cadeira 35, mirando o vazio do horizonte, vendo secar tudo a que
chamávamos de mãe, vendo ruir tudo a que chamávamos de pai. Não há como contornar
a evidência de que somos irmãos, com a eternidade para chegarmos a um acordo.
Haverá o dia em que, às escondidas e cúmplices, escaparemos deste orfanato para
ganhar o mundo, mergulhar nas águas salobras da fonte, correr pelas ruas sem
atentar à poeira grudando na pele úmida e, furtivamente, pular o muro da
vizinhança para roubar mangas-rosas.
Muito obrigado.
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