o bombardeio da história: de Dresden à Ladeira da Montanha
Entre 13 e 15 de fevereiro de 1945, a “Florença do Elba”, Dresden, foi bombardeada. Ao contrário do que alegaram os aliados, justificando a ofensiva, a destruição da cidade deu-se em seu centro histórico e cultural, notadamente o Neumarkt. Pesquisadores não encontraram alvos militares ou estratégicos que justificassem a morte de cerca de 35 mil civis, e a destruição de um conjunto arquitetônico tão valioso; e o bombardeio chegou a ser considerado crime de guerra.
Eles que são brancos que se entendam. Não vou tomar partido. Entretanto, fica evidente que, mesmo sendo militarmente estratégica, Dresden foi alvo de um massacre histórico e cultural. Os aliados, cirurgicamente, bombardearam a catedral, o teatro, símbolos tradicionais de um país que sempre prezou pela cultura (e que torna o nazismo uma anomalia mais assustadora ainda).
Atualmente, está em processo a reconstrução do Neumarkt, centro da cidade, onde já foi reconstruída a Frauenkirche em 2005 como primeira etapa do processo. Depois de muita discussão se valia a pena voltar-se ao passado, ou criar obras modernas em seu lugar, uma ação estruturada foi pensada e financiada com verba até de países como o Reino Unido, responsável pelo bombardeio. Há todo um projeto aliando passado e presente, críticas a se refazer algo antigo como uma caricatura do passado, mas em tudo isso há o bom senso e o bom gosto norteando algo tão caro à cidade; com erros, acertos, equívocos ou êxitos.
O que Dresden sofreu em 3 dias, Salvador vem sofrendo há décadas. Costumo dizer que o marco para a desgraça de nossa capital foi a demolição de nossa Sé. Pois é, temos uma Praça da Sé sem a Catedral da Sé, porque em 1933 – ano em que Hitler torna-se chancelar alemão – ela foi destruída para passar uma linha de bonde. Um monumento histórico, mesmo com abaixo-assinado com nomes do porte de Rui Barbosa defendendo a catedral, foi derrubado por interesses privados.
A primeira vez que estive em Cachoeira, no recôncavo baiano, questionei um nativo sobre três belos casarões na praça principal, escorados e em decomposição. Ele me falou que em Cachoeira havia muitos que compravam casarões antigos caindo aos pedaços, não cuidavam e esperavam desmoronar para fazer um novo empreendimento. Se fossem tombados, aí o cara era sobrinho de um desembargador, primo de um deputado, dono de uma empreiteira que pagou propina pra tal juiz, coisas típicas do Brasil, e ele jamais seria penalizado por isso. E mesmo que fosse, nosso patrimônio já teria ido abaixo, e penalização nenhuma do país traria os casarões de volta. Até porque a discussão sobre Dresden e sua reconstrução, aqui, seria ainda mais rasteira e idiota, passando por cima de quem entende da história e da cultura local.
Dez anos antes da demolição de nossa Catedral da Sé, ia abaixo, por conta de um incêndio, o Teatro São João. Desde então, Salvador deixou de ter um teatro municipal e um teatro nos moldes dos municipais que as capitais que respeitam a cultura conservam como seus mimos. Aqui, pareceu que o incêndio foi um alívio. Prontamente, construiu-se o Palácio dos Esportes e deixou-se pra lá o teatro. Assim continuou sendo com nossos belíssimos cine-teatros, nossa memória, nossa história: oba, caiu, bota rápido algo diferente no lugar que o povo não vai sentir falta.
A elite soteropolitana, que ainda manda nessa cidade devastada pela alegria, tem abjeção à história e à cultura local. Prédios e mais prédios são construídos na periferia da cidade, notadamente na Paralela, na Tancredo Neves, locais periféricos, mas que vão fortalecendo-se com novos centros empresariais. Vergonhosamente, burramente e estupidamente, quem tem dinheiro não se imagina num belo casarão oitocentista, mas sim num prédio com vidro fumê, varandas, heliporto, piscinas com borda infinita e espaço gourmet, espaço kids (não pode ter nome português), espaço fitness. Recentemente, tomei café com um amigo, no Cruzeiro de São Francisco, Pelourinho, e ele, viajadíssimo, falava que se nosso centro histórico fosse em qualquer outro lugar do mundo, as lojas mais chiques e caras estariam lá, milionários morariam nos sobrados mais belos, haveria uma elitização natural de um espaço tão belo, trazendo um glamour que poderia potencializar culturalmente o local; desde que suas manifestações endógenas convivessem em pé de igualdade, mostrando a riqueza de nossa cultura. Ao contrário, é só abandono. Casas e mais casas vazias, teatros e cine-teatros fechados.
A derrubada que vem sendo feita no Centro Histórico, autorizada pelo IPHAN e executada com toda competência, boa-vontade e presteza pela SUCOM, é mais uma parte de nossa história que vai embora. Os órgãos responsáveis alegam que eram estruturas condenadas, que iriam desabar, que pessoas correriam riscos.
Reportagem recente mostrou que o Governo do Estado e a Prefeitura de Salvador só investiram 4% da verba enviada pelo Governo Federal para contenção de encostas e problemas de desabamento. É comum vermos o IPHAN comemorando milhões para restauros, liberados pelo mesmo Governo Federal. Estrategicamente, além da incompetência e inoperância para tais fins, as esferas públicas parecem estar agindo como os especuladores de Cachoeira. Não se restaura, não se cuida, e depois quando a estrutura e condenada, só resta o quê? Derrubar. Para além de vidas e moradias destruídas pelas chuvas, nossa história desabou junto, morrendo mais um pouquinho. Não vou aqui condenar nenhum fato isolado, nem buscar culpados individuais, mas qualquer pessoa minimamente sagaz liga os desabamentos e demolições à falta de uma política continuada, séria e sistemática para preservação de vidas, história e cultura de uma cidade.
Aguardemos cenas dos próximos capítulos. O que virá de projeto para os espaços demolidos. Pela tragédia arquitetônica que estamos vendo, com a Ceasa, a “Nova Barra”, a proposta de xópim na Lapa, se for projeto da instância pública, alguma desgraça virá, provavelmente. Ou será que interesses privados assumirão o sacrifício de construir numa área com uma das vistas mais belas do mundo (pra mim)? Interesses privados, mancomunados com interesses públicos, sempre desgraçaram mais nossa terra; vide a linha de bonde, bonde esse que tempos depois foi abolido da cidade.
Não há interesse privado no que tange ao mecenato, ao bem da cidade. Aqui, o vampirismo só pensa em sugar, em poucos ganharem cada vez mais. A história e a cultura não interessam a uma elite ignorante que tem seus olhos voltados para Miami, Broadway e Bariloche.
O episódio recente de demolições no Centro Histórico, patrimônio da humanidade, é mais um na longa história de destruição da cidade. O que inimigos fizeram em 3 dias, em Dresden, os próprios “donos” da cidade vêm fazendo ao longo do século XX e XXI.
Não há a mínima perspectiva de que algum dia vão pensar em restaurar nossa história e nossa cultura. Pelo contrário, será um estorvo a menos e um entrave a ser eliminado na ganância dos que quererão sempre mandar e mamar nessa cidade, sugando-a até a medula.
Se a perspectiva de acontecer o que aconteceu na restauração de Dresden é nenhuma, também não seremos jamais uma Berlim, que soube tão belamente botar em diálogo seu passado e seu futuro numa collage city excitante, viva, com prédios arrojados integrados a monumentos históricos.
Muitos dirão: ah, mas aqui não é a Alemanha. Concordo. Nem queria que fosse. Amo minha terra, minha história, minha cultura, e entendo diversas intempéries por conta de um processo histórico predatório, escravista, desigual.
O problema é que, cada vez mais, a cada novo governo, a cada nova demolição, a cada novo projeto urbanístico, cultural e arquitetônico dessa cidade, estamos deixando de ser Salvador.
E aí, meu amigo, só jogando uma bomba para resolver a desgraça que isso aqui vai ficar.
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