terça-feira, 5 de maio de 2015

SAQUEADORES DE ENCOSTAS

Desumanização e saqueadores de encostas
MALU FONTES
Resultado de imagem para FOTOS DE TRAGÉDIA NAS ENCOSTAS DE SALVADOR
Os últimos dias foram marcados por novos capítulos de uma tragédia em série que Salvador já conhece há décadas. Mas conhecer não é acostumar-se nem deixar de se alarmar e comover. Mais uma sucessão de deslizamento de terras. Dessa vez, foram 15 os mortos e, como o período de chuvas ainda não acabou, infelizmente isso não significa garantir que 2015 encerrou sua cota trágica.
A cada chuva, no Inverno ou no Verão, e diante dos alagamentos, repete-se na cidade, feito um mantra já com seu sentido desgastado e puído: Salvador não está preparada para as chuvas. É verdade. Não está, embora já tenha estado muito menos. Diante da repetição dessa frase, uma segunda pergunta deveria se impor: no Brasil, onde historicamente pouquíssimo se investe em saneamento, qual cidade está preparada para chuvas e tempestades?
O trânsito trava, ruas alagam, terras deslizam, a vida inviabiliza-se. Seja em Santa Catarina, Minas Gerais, no Paraná, em São Paulo, na região serrana fluminense e nas vilas ribeirinhas do Rio Acre. Em todos esses lugares e em muitos outros, houve tragédias antigas e recentes que parecem fadadas a repetirem-se.  Diante da temporada de chuvas, que varia uns meses para a frente e outros para trás, dependendo da região brasileira, a população acompanha ano após ano a via-crúcis de milhões de desabrigados, prejuízos econômicos, mortes, fome, sede e comoção. 
O poder público, nas esferas municipal, estadual e federal, sempre pode e deve fazer muito em políticas públicas para reduzir os impactos da chuva, mas não sejamos ingênuos: evitar tragédias completamente? Parece que nossa geração não viverá para isso. Se é que alguma viverá, fenômenos naturais causam tragédias em qualquer lugar do mundo.
Os Estados Unidos, com todo o arsenal econômico e com toda a tecnologia que permite prever a chegada de tormentas, tornados e nevascas, nem assim conseguem evitar que centenas ou milhares de americanos percam a vida ou fiquem gravemente feridos todos os anos por conta desses fenômenos.
SOCIEDADE DOENTE  
Em Salvador, o calcanhar de Aquiles é outro. Praticamente toda a cidade pobre está pendurada em encostas e a maioria das pessoas que vivem nesses lugares fez uma escolha que, sob o ponto de vista delas, é pragmática: não há dinheiro para comprar terrenos planos para construir.
Quando há, estão há anos luz de locais de trabalho, de acesso a transporte e de toda a sorte de serviços, como saúde e educação. O fato é que as vítimas não podem ser responsabilizadas pela própria morte e cabe às autoridades se virar nos trinta para solucionar esse impasse. Se elas ficarem nas encostas, morrerão.
Se forem removidas, as opções são para onde o vento faz a curva e ninguém quer ir. Enquanto essa discussão permanecerá com tons de que vai ter a mesma velocidade que a resposta sobre o sexo dos anjos ou sobre se a primazia é do ovo ou da galinha, algo tão trágico e assombroso quanto a realidade cruel das encostas é a sordidez humana, é a constatação de que pessoas tão desprovidas de tudo quanto aquelas que perderam a vida ou o chão onde construíram a vida não têm sequer o sentimento de compaixão.
Que sociedade doente é essa, que pobreza é esta, que faz com que gente que deve ter filhos, irmãos, pais, mães, que deve acreditar em alguma divindade, desumaniza-se numa hora dessas ao ponto de saquear o pouquíssimo que sobrou da vida de quem teve sua casa condenada numa encosta?
É notícia nos jornais o drama de quem saiu de casa no meio da noite e da chuva para não morrer e agora ainda sofre ao descobrir que os objetos de uma vida inteira foram saqueados. Resta a constatação: o projeto de civilização deu completamente errado por algumas bandas do mundo. Nós somos uma delas e a culpa não é de Brasília.
Malu Fontes é jornalista e professora de Jornalismo da Ufba

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