Desumanização e saqueadores de encostas
MALU FONTES
Os últimos dias foram marcados por novos capítulos de uma tragédia em série que Salvador já conhece há décadas. Mas conhecer não é acostumar-se nem deixar de se alarmar e comover. Mais uma sucessão de deslizamento de terras. Dessa vez, foram 15 os mortos e, como o período de chuvas ainda não acabou, infelizmente isso não significa garantir que 2015 encerrou sua cota trágica.
A cada chuva, no Inverno ou no Verão, e diante dos alagamentos, repete-se na cidade, feito um mantra já com seu sentido desgastado e puído: Salvador não está preparada para as chuvas. É verdade. Não está, embora já tenha estado muito menos. Diante da repetição dessa frase, uma segunda pergunta deveria se impor: no Brasil, onde historicamente pouquíssimo se investe em saneamento, qual cidade está preparada para chuvas e tempestades?
O trânsito trava, ruas alagam, terras deslizam, a vida inviabiliza-se. Seja em Santa Catarina, Minas Gerais, no Paraná, em São Paulo, na região serrana fluminense e nas vilas ribeirinhas do Rio Acre. Em todos esses lugares e em muitos outros, houve tragédias antigas e recentes que parecem fadadas a repetirem-se. Diante da temporada de chuvas, que varia uns meses para a frente e outros para trás, dependendo da região brasileira, a população acompanha ano após ano a via-crúcis de milhões de desabrigados, prejuízos econômicos, mortes, fome, sede e comoção.
O poder público, nas esferas municipal, estadual e federal, sempre pode e deve fazer muito em políticas públicas para reduzir os impactos da chuva, mas não sejamos ingênuos: evitar tragédias completamente? Parece que nossa geração não viverá para isso. Se é que alguma viverá, fenômenos naturais causam tragédias em qualquer lugar do mundo.
Os Estados Unidos, com todo o arsenal econômico e com toda a tecnologia que permite prever a chegada de tormentas, tornados e nevascas, nem assim conseguem evitar que centenas ou milhares de americanos percam a vida ou fiquem gravemente feridos todos os anos por conta desses fenômenos.
SOCIEDADE DOENTE
Em Salvador, o calcanhar de Aquiles é outro. Praticamente toda a cidade pobre está pendurada em encostas e a maioria das pessoas que vivem nesses lugares fez uma escolha que, sob o ponto de vista delas, é pragmática: não há dinheiro para comprar terrenos planos para construir.
Quando há, estão há anos luz de locais de trabalho, de acesso a transporte e de toda a sorte de serviços, como saúde e educação. O fato é que as vítimas não podem ser responsabilizadas pela própria morte e cabe às autoridades se virar nos trinta para solucionar esse impasse. Se elas ficarem nas encostas, morrerão.
Se forem removidas, as opções são para onde o vento faz a curva e ninguém quer ir. Enquanto essa discussão permanecerá com tons de que vai ter a mesma velocidade que a resposta sobre o sexo dos anjos ou sobre se a primazia é do ovo ou da galinha, algo tão trágico e assombroso quanto a realidade cruel das encostas é a sordidez humana, é a constatação de que pessoas tão desprovidas de tudo quanto aquelas que perderam a vida ou o chão onde construíram a vida não têm sequer o sentimento de compaixão.
Que sociedade doente é essa, que pobreza é esta, que faz com que gente que deve ter filhos, irmãos, pais, mães, que deve acreditar em alguma divindade, desumaniza-se numa hora dessas ao ponto de saquear o pouquíssimo que sobrou da vida de quem teve sua casa condenada numa encosta?
É notícia nos jornais o drama de quem saiu de casa no meio da noite e da chuva para não morrer e agora ainda sofre ao descobrir que os objetos de uma vida inteira foram saqueados. Resta a constatação: o projeto de civilização deu completamente errado por algumas bandas do mundo. Nós somos uma delas e a culpa não é de Brasília.
Malu Fontes é jornalista e professora de Jornalismo da Ufba
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