Tenho uma má notícia: com poucas exceções, o crime não é filho da necessidade, mas sim filho do desejo.
CONTARDO CALLIGARIS
Poucas semanas atrás, no fim da coluna de 23 de abril, escrevi: "Alguém acredita que a delinquência seja um efeito da pobreza?". Era uma pergunta retórica, que supunha a resposta negativa: ninguém mais acredita nisso.
Pois bem, alguns leitores pensam diferente e me escreveram. Adoraria concordar com eles; seria mais sensato e mais fácil acreditar que o crime nasce da necessidade.
Com isso, ele se tornaria racional (somos todos bons, só que a alguns faltam coisas necessárias) e poderia ser abolido pela reforma social: num mundo sem necessitados, não haveria mais crimes.
Para defender a ideia de que a necessidade seria a mãe do crime, um de meus correspondentes observou: se não fosse assim, por que, nas prisões, há poucos ricos e tantos pobres?
Pois é, se há mais pobres do que ricos nas prisões, não é porque os primeiros se tornaram criminosos por serem pobres: é porque os últimos sempre têm advogados melhores.
Sinto (sem ironia), mas preciso dar esta má notícia aos leitores que me escreveram: com poucas exceções, o crime não é filho da necessidade, é filho do desejo.
É uma constatação da qual fugimos, talvez porque o desejo nos pareça sempre um pouco fútil: ele corre atrás de reconhecimento e de objetos que não são propriamente necessários para a sobrevivência.
É por isso que Fulano assalta e mata? É por isso que Sicrano pede propina para encomendar merenda escolar? Sim, é por isso.
Para explicar a diferença entre necessidade e desejo, uma parábola: num país asiático, durante uma campanha de controle de natalidade, os camponeses mais pobres que aceitassem passar por uma vasectomia poderiam escolher entre dois prêmios: um saco de arroz ou um radinho de pilhas.
Quase todos escolheram o radinho, apesar da fome, e devo confessar que tenho simpatia por aqueles camponeses.
Orientar-se pelo desejo talvez fosse, para eles, o jeito mais radical de se livrar da necessidade, no sentido de não ser definido por ela.
Só me indigna que ninguém tenha pensado no fato de que, depois de algumas horas, a pilha do radinho morreria e eles não teriam como trocá-la.
Dizemos com frequência que um jovem da periferia se torna soldado do tráfico "por falta de oportunidades". A mesma coisa podemos dizer de um jovem de classe média como João Estrella ("Meu Nome Não É Johnny", livro de Guilherme Fiuza e filme de Mauro Lima).
Entre os menos ou os mais favorecidos, tanto faz: o desejo é uma força tão poderosa quanto, senão mais poderosa que, a necessidade.
Só às vezes não há comida, mas sempre faltam reconhecimento e "coisas" --o que é suficiente para que o desejo seja tentado por algum atalho.
Será que isso significa que não há crimes por necessidade? Há, claro, uma minoria de crimes que acontecem por necessidade.
No dia 13 de maio, Mário Ferreira Lima, eletricista do Jardim Ingá (GO), tentou furtar dois quilos de carne em Santa Maria (DF) e foi preso.
A reportagem do UOL (http://migre.me/pUdem) conta que Ferreira Lima pediu aos policiais que levassem comida para sua casa, pois, naquele dia, o filho, Diego, 12 anos, tinha saído para escola sem almoçar.
Na casa em que o eletricista vive com o filho não há móveis nem fogão: o que havia foi vendido --para sobreviver.
Desde o episódio, pai e filho vêm recebendo doações (não solicitadas) de dinheiro, utensílios e alimentos (os próprios policiais foram os primeiros a doar).
Sobre o pai, Diego comentou: "Sei que ele fez isso porque estávamos precisando". E o próprio pai: "Estava há dois dias sem comer e precisava também alimentar meu filho. Não justifica, porém foi por extrema necessidade".
Os crimes por necessidade são reconhecíveis porque (pensem naquele "não justifica" de Ferreira Lima) a necessidade não acaba com as referências morais do indivíduo. O desejo, sim.
Nota. Há uma terceira "origem" da criminalidade, além do desejo e da necessidade: o sentimento de exclusão. Se acho que não faço parte da sociedade em que vivo, não tenho por que respeitar suas normas e leis.
Isso vale para quem é esquecido na extrema miséria (mas note-se que não valeu para Ferreira Lima, apesar da fome) e também para o privilegiado que se considera acima da sociedade na qual vive. Em ambos os casos, a sensação de não pertencer liberta o "excluído" da obrigação de respeitar normas e leis. Voltarei ao tema.
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