Brasil continua refém de Deus
Raul Moreira
Jornalista e cineasta
Em um Brasil que se faz cada vez mais evangélico e no qual o Deus judaico-cristão voltou a dar as cartas de forma implacável, procura-se desesperadamente um Luis Buñuel (1900-1983) ou um Pier Paolo Pasolini (1922-1975). Porque, diante da onda de “Deus”, alimentada por uma organizada e poderosa indústria religiosa, causa perplexidade a omissão da intelligentsiabrasileira perante um fenômeno com ares de fundamentalismo.
Tirando proveito da ingenuidade e sofrimento de parcela considerável da população, ainda que os indicadores sociais tenham melhorado nos últimos 20 anos, a cruzada dos evangélicos se sente em todas as esferas e se constitui em uma força descomunal: no Congresso Nacional, nas assembleias legislativas, nas câmeras municipais, na televisão, no rádio, na internet, nas dezenas de milhares de espaços voltados aos cultos, enfim, prolifera uma cultura evangélica como jamais houve na história do Brasil.
O resultado é que o gigante da América do Sul, infelizmente, se torna cada vez mais conservador, como se estivesse retornando à idade das trevas. Tanto que, em pleno século 21, muitos evangélicos falam em “cura gay”, sem falar da intolerância contra as crenças de matriz católica e africana, praticada por pastores eletrônicos em estado de fúria que destroem estátuas de santos ou chamam o povo do candomblé de adoradores do diabo.
A verdade é que o Brasil sempre foi refém da mística de Deus, ainda que em escalas diferentes. O pior período se deu na chamada época colonial, quando, em nome da “vontade Dele”, então bandeira simbólica de Portugal, foram exterminados milhões de nativos, sem falar das vítimas da Inquisição. A partir do Império e com a instituição da República, com seus valores positivistas, período no qual a Igreja Católica começou a perder força, Deus deu um refresco e aflorou o laicismo de Estado e uma forte cultura anticlerical.
Hoje, ao contrário dos tempos do Império e das primeiras décadas da República, quando intelectuais da espessura de Ruy Barbosa (1849 -1923) e Anísio Teixeira ( 1900 - 1971), só para falar dos baianos, fizeram parte das fileiras anticlericais, não se enxerga e nem se escuta no Brasil homens de pensamento a baterem-se contra a onda evangélica: omitem-se, retraem-se e, de certa forma, se fazem cúmplices do retrocesso.
Enquanto abundam produtos evangélicos em todas as esferas, as vertentes laicas do cinema, da literatura, da música, do teatro e da imprensa mantêm-se à parte, dando uma de João sem braço. Por incrível que pareça, quem esboça uma reação é a Rede Globo, como se vê na novela Babilônia, na qual, além do “sacrilégio” de propor um casal lésbico octogenário, vivido por Fernanda Montenegro e Natália Timberg, põe em cena uma família evangélica nada recomendável, sob domínio de um prefeito corrupto e falso moralista interpretado por Marcos Palmeira.
Aliás, diante da disputa pela audiência na televisão aberta com a rival Record, sob comando do bispo Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, a Globo joga dos dois lados: enquanto ousa nas novelas, indo de encontro a certo moralismo rococó, ao mesmo tempo abre espaço para algumas vertentes evangélicas, como a música gospel, de olho, naturalmente, numa fatia de mercado que não pode ser desprezada.
O diabo é que bater-se contra a cruzada evangélica se faz tarefa mais complicada do que foi aquela de neutralizar a força da Igreja Católica, como aconteceu no Brasil durante longas décadas. Vale lembrar que, antes, o “inimigo” era visível, definido nos seus processos hierárquicos, com seu poder centralizado a partir de Roma. Já a onda evangélica não, uma vez que é formada por uma infinidade de igrejas, as quais são próximas e ao mesmo tempo distantes umas da outras, o que torna a sua natureza mais complexa.
Em outras palavras: afrontar o poder religioso, independentemente de sua vertente, não é missão das mais fáceis. Que o digam, por exemplo, os cineastas Luis Buñuel e Pier Paolo Pasolini, os quais, no século 20, sofreram uma série de retaliações por “sangrarem” a instituição católica com seus filmes polêmicos. O mesmo enfrentou o escritor português José Saramago (1922-2010), perseguido pelo Vaticano e no seu próprio país por conta do conteúdo da obra-prima O Evangelho Segundo Jesus Cristo.
Como a intelligentsia brasileira parece que vai continuar em cima do muro diante do conservadorismo evangélico, há quem vislumbre que somente uma melhoria realmente eficaz nas condições socioeconômicas poderia reduzir o fanatismo religioso e, consequentemente, tornar Deus um fato privado.
Foi isso que aconteceu na Europa após a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, quando as boas condições de vida, acompanhadas de um farto consumo, distanciaram a sua população da fantasia da proteção divina, o que não lhes criou muitos problemas, ao contrário.
Que “Deus” sirva apenas para alimentar os nossos pensamentos mais profundos!
A fé em si não é má conselheira... o erro humano é acreditar no poder do homem para conduzir e ditar as regras, sem refletir que eles detêm um discurso elaborado a partir de suas próprias necessidades e desejos...Deus não precisa de interlocutor...entretanto sei que a situação beira a "guerra santa"...que de santa não tem nada...
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