Dorrit Harazin
Dois dias atrás o blogueiro Raif Badawi foi retirado da cela que ocupa numa prisão de Jidá logo cedo e submetido a uma avaliação médica. O teor do diagnóstico alterou a programação agendada para o fim da tarde: diante da insuficiente cicatrização de seus ferimentos, o jovem saudita não estava apto a suportar a segunda sessão de 50 chibatadas semanais a que fora condenado. O prosseguimento da condenação a um total de mil chibatadas — além de dez anos de prisão, uma multa equivalente a quase 700 mil reais e a proibição de usar a internet até 2034 — teve de ser adiado em uma semana.
Na sexta feira anterior, dia de descanso e oração dos muçulmanos, Raif fora levado de ônibus até a praça em frente à mesquita de al-Jafali, onde a multidão reunida já aguardava o ritual do castigo. Colocado no centro da praça, tinha algemas nos punhos, grilhões nas canelas e o rosto descoberto. Segundo uma testemunha, os 50 golpes que laceraram seu torso e pernas foram desferidos em ritmo acelerado e constante e não levaram mais do que cinco minutos.
Faltam 950 chicotadas, agendadas para as próximas 19 sextas feiras, sempre após o fim das rezas e na mesma praça pública da segunda maior cidade da Arábia Saudita. Não longe dali está sendo erguido desde 2013 o símbolo máximo da modernidade do país, a futurista Burj al Mamlakah (Torre do Reino). Concebida para ser a primeira estrutura criada pelo homem a ter mais de um quilômetro de altura, a megalômana Mamlakah tem inauguração prevista para 2019. Se cumprir na totalidade a pena recebida, o açoitado Raif Badawi só terá a oportunidade de conhecer esse cartão-postal do progresso e modernidade sauditas quando sair de sua condenação medieval, dentro de cinco anos.
De acordo com a lei saudita, o castigo físico aplicado ao ativista de 31 anos, casado e pai de três filhos, é reservado somente a muçulmanos. Fosse ele cristão ou ateu teria sido condenado à morte por apostasia.
O crime de Badawi foi ter criado a primeira rede de orientação secular do país, asaudiliberalnetwork.com, que encorajava os participantes a debater o papel da religião e da política em suas vidas, além de questões sociais e de liberdade de expressão. Jamais incitou à violência. Mas, pelas leis em vigor, incorreu nos crimes de “insulto ao Islã” , violação do uso da internet e “desobediência parental”. (A Arábia Saudita proíbe todo cidadão de desobedecer ao pai — no caso, o genitor teria condenado publicamente a existência do site e as ideias infiéis do filho).
Badawi, cuja mulher e filhos estão asilados no Canadá, foi preso em 2012 e recebeu sua sentença em maio pelo conteúdo de seus posts. Um deles resume uma de suas reflexões centrais: “As sociedades árabes e islâmicas precisam dar mais valor ao indivíduo e garantir a liberdade e o respeito às suas ideias… Estados baseados na religião confinam sua gente num círculo de fé e medo”.
Foi somente agora, com o mundo revolto e os povos em busca de rumo diante da atual encruzilhada da História, que a voz de Raif Badawi adquiriu a devida dimensão. E chamou a merecida atenção.
Em meio à maré global que no domingo passado marchou pelos fuzilados do “Charlie Hebdo” e pelos judeus executados no mercado kosher, o diário “The Guardian” notou uma manifestante quase solitária. Ela empunhava um cartaz de leitura difícil quando comparado ao impacto universal de Je suis Charlie. O cartaz dizia, em inglês: “Sou Raif Badawi, o jornalista saudita que foi açoitado”. Como a primeira série de chibatadas havia ocorrido dois dias antes, Jidá ficara fora de foco — a comoção mundial estava aglutinada na irrupção do terror em pleno centro de Paris, coração da Europa.
A mudança ocorreu esta semana. Para quem se indignou contra a presença da eclética galeria de inimigos da liberdade entre os mais de 40 dignitários da Grande Marcha Republicana, um convite à reflexão. Pode ter sido ótimo ditadores, autocratas, repressores e lanterninhas no ranking mundial da liberdade de imprensa terem se imiscuído: ao invés de ficarem bem na foto coletiva, chamaram para si uma atenção indesejada. Não apenas foram reconhecidos como impostores pelos defensores das liberdades em seus países como tiveram os seus malfeitos expostos num raro momento de atenção global.
Sobretudo, sentiram no cangote o bafo do que é uma compacta massa de povo nas ruas. Uma massa em defesa de conceitos surrados como liberdade, justiça, igualdade.
Pode ter sido acaso ou mera coincidência o laudo médico do presídio de Jidá, adiando em uma semana a próxima sessão de chibatadas em Raif Badawi. Mas o fato é que, ao longo da semana, a pressão sobre a Casa de Saud pela comutação da pena do ativista, considerado prisioneiro de consciência pela Anistia Internacional, ganhou foco e força. Brotaram vigílias em capitais europeias, cobranças de boicote ao petróleo saudita e exigência de mais firmeza endereçadas a líderes ocidentais.
Recaída infantil de um militantismo despertado pela marcha republicana de Paris? Pode ser. Como se sabe, a dinastia dos Saud ocupa o poder autocrático na Arábia Saudita desde a criação do país, em 1932, e não costuma atentar para arroubos dessa natureza.
Mas, seja acaso ou mera coincidência, informação divulgada no Canadá pela mulher do militante aponta para uma intervenção do rei Abdula no caso. Ele teria encaminhado a punição de Badawi para revisão na Corte Suprema no mesmo dia em que as chibatadas foram adiadas por razões médicas.
Graças a uma interessante seleta dos escritos de Badawi compilada pelo repórter britânico Ian Black, pode-se ler qual citação o ativista usou num de seus últimos posts antes de o site ser desativado pelo regime, em 2012. Emprestou-a de Albert Camus: “A única forma de lidar com um mundo não livre é tornar-se tão absolutamente livre que o mero fato de você existir já representa um ato de rebelião”.
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