O Brasil da era Lulista!
(Jornalista e escritor)
Até por uma questão de honestidade, os que
professam a boa ciência social têm a obrigação de olhar os tempos de hoje com o
mesmo rigor crítico com que examinaram o período autoritário durante e depois
do seu transcurso. Infelizmente, a revoada da esquerda em direção ao poder,
empobreceu significativamente a vida intelectual brasileira – com raríssimas e
pouco influentes exceções. A ideologia petista em nome da governança impregnou
a vida inteligente do país, empurrando a divergência para o campo da direita ou
da ultra-esquerda. E com isso, rebaixou a importância do pensamento crítico que
passou a integrar o rol das inutilidades no projeto de poder em curso.
Por trás de tudo, está inconfessa percepção dos
que comandam esse projeto de que, de fato, nada comandam. Ou, dizendo melhor:
comandam nos estreitos limites impostos pela governança. A dizer: por margem
limitada de manobra cuja exploração possível é a de uma política
assistencialista de combate à miséria, eleita como o supra-sumo do governo “de
esquerda”. Tal espaço permitido pelo equilíbrio de poder alimenta a entourage petista na sua saga de
permanência que se transformou, por sua vez, na própria lógica dos que se abrigam
sob esse projeto. E que, por isso, não cacifa nem estimula qualquer
entendimento crítico da situação.
Quando o mito sindical do lulismo mostrou os seus
limites, a máquina acolheu a ferramenta do marketing, que acabou transformando
o líder operário num político palatável. O rebaixamento aí implicado obrigou o
PT a acolher signos ideológicos abominados na sua trajetória inicial e
enveredar por escolhas que, à medida que se incorporavam, desfiguravam o
projeto original de um partido de esquerda. Em direção ao centro, o partido
afinal acabou se encontrando com a direita e se orgulha hoje de operar com
grande habilidade a engrenagem do estado burguês. Ou o certo seria dizer: se
mexe com grande familiaridade no regime democrático?
Os dirigentes petistas fazem isso com maestria,
às vezes se excedem e disso ninguém pode duvidar da sua competência.
Uma passagem marcante e simbolicamente importante
dessa conquista de espaço no aparelho do Estado e na consciência coletiva foi a
da escolha da Dilma como sucessora do lulismo. A aliança de segmentos de
esquerda da classe média com o que se conseguiu de mais avançado do
sindicalismo operário brasileiro, aí se consagrou num esforço retórico ainda
maior pelo fato da escolha ter recaído sobre uma mulher. Um quadro da esquerda
revolucionária foi escolhido, após atroz sofrimento e grande heroísmo, para
finalmente consumar o ciclo autoritário e abrir, de fato, no Brasil, um momento
novo. Marcado pelo mérito de ambos os segmentos. Da classe operária, pela
habilidade no embate eleitoral e generosidade na escolha. Seu sucesso no estado
assegurou a possibilidade dessa homenagem histórica.
Tamanho simbolismo não desautoriza uma leitura
crítica capaz de ver por trás desse jogo de aparências, que faz parte do
universo natural da política partidária, o que de fato se deu.
Saído de uma crise moral que poderia ter lhe
custado o mandato, caso a chamada direita fosse menos covarde, o presidente
Lula reconquistou o eixo e sob o influxo de um assistencialismo populista
– muito distante do que a vanguarda operária poderia levar à prática
como discurso – se transformou num líder popular. Tal condição lhe custou
um preço muito alto: o de capitular às alianças, barganhas e trocas que modulam
os entendimentos na República. E de ceder a um personalismo desfigurante
imposto pela máquina de propaganda. Ou, quem sabe, de ter assumido
verdadeiramente seu papel como homem comum, simplório e nisso muito sintonizado
com a consciência mediana do brasileiro (corintiano, pouca escolaridade, avesso
a leitura, intuitivo, safo, com grande senso de realismo, admirador de Zeca
Pagodinho e música sertaneja. Aliás, o primeiro programa eleitoral do PT na
televisão, que marca a virada em direção ao centro, é embalado por uma trilha
sonora caipira que exalta o “Brasil que a gente ama”no mais perfeito estilo
goiano).
Esse parêntesis merece ser estendido. Porque
poucos têm prestado atenção na grande proximidade do Lula com o agronegócio. No
mundo do latifúndio tech, o ex-operário parece ter encontrado alguns elementos
de sua origem rural. A natureza transformada, a presença de máquinas, o número
de eleitores dessas áreas e a ilusão com o progresso técnico e social, ainda
que praticados a expensas do meio-ambiente e da saúde das pessoas, tudo isso ligou o Lula a gente
como o Blairo Maggi – maior criador de gado e exportador de soja do Mato
Grosso. Na fazenda de quem Lula gravou comercial para sua propaganda política.
No sentido oposto, o papel que o agronegócio
passou a ter na economia brasileira, o levou a exercer influência crescente no
poder, embalado pelo desempenho das commodities e estimulado pelo estilo de
vida country que passou a tomar conta
de boa parte do território brasileiro. Do Piauí a São Paulo, de Minas ao Mato
Grosso do Sul, onde grandes empresas agrícolas se implantaram, com seu mundo
químico e mecanizado, passou a existir um jeito de ser caipira. Modos de sentir
e agir típicos dessas áreas de fronteira agrícola de grande produtividade,
marcadas pela presença de luxuosas camionetes e utilitários, bailões e músicas
caipiras, uma moda country e kitsch, repleta de botas, cintões e chapéus.
Dilma é outro papo. A ex-militante da Organização Revolucionária Marxista-Leninista,
Política Operária(POLOP) e depois da VAR- Palmares é hoje uma executiva
renomada. Embora desconhecida do eleitorado, portava um currículo de peso, uma
história de vida heróica. Coerente. Honrada. Feita Presidente do Brasil,
transformou-se na consciência aguçada da classe média em busca da eficiência,
de um Estado Gestor, da boa administração do Capital nas circunstâncias da
desorganização social e da esculhambação da vida política nacional. Nesse
estrito sentido, Dilma é o oposto de Lula. Mas, no sentido amplo, é a
continuidade do projeto do PT, que é, no campo visível, a permanência no poder.
Como bem disse Chico de Oliveira, ela não vai
poder continuar o modelo carismático e circunstancial do Lula. Tem de encerrar
o ciclo do “nós conseguimos” que marcou boa parte da vida oposicionista do
PT. E não é do seu estilo se conformar com a repetição de conquistas
tolas, úteis no ambiente eleitoral, mas sem qualquer significado em termos da
vida real do país, do andamento da sua economia, da montagem de uma base sólida
para seu dinamismo e desenvolvimento.
No campo de manobras da Dilma, a escolha parece
ser óbvia. Superar o assistencialismo lulista por uma política de crescimento
mais eficaz, capaz de adensar a economia, aumentar a sua competitividade e
incorporar mais gente aos benefícios sociais. O desafio é fazer isso em meio ao
contexto de crise internacional. Fazer no tempo e na medida adequada, as
modificações que orientem o país para o rumo certo, longe da atmosfera de
enrijecimento ideológico que vinha marcando o sonho petista de se hegemonizar
no aparelho do Estado a expensas de uma conjuntura estável e favorável.
Com o movimento social se autonomizando, o
peleguismo de esquerda das instituições sindicais se dissolvendo e diante de
grandes e graves escândalos políticos, a presidente vai ter que enquadrar o seu
partido, se valer de bons conselheiros políticos, abrir sua mesa de consulta
para quem pensa e – à esquerda e à direita – tentar entender para onde está
indo o período lulista. Hoje, mais objeto da história do que da sociologia. E
para onde quer ir o Brasil.
As eleições que se aproximam serão importantes
para se saber o tamanho da crise petista. Marcada, por um lado, pela soberba,
excesso de poder e suas decorrências nem sempre agradáveis. Por outro, pelo
esgotamento. As bandeiras sociais levantadas cumpriram suas metas emergenciais.
E agora? Para onde o Brasil vai seguir?
Sem a verve e o entusiasmo originais, o petismo acusa fadiga de
material. Para se manter, abusa da verba publicitária, como faziam, aliás, os
adversários históricos do petismo. Isso nos passa a desagradável
sensação da validade do adágio do senso comum, segundo o qual, na lida
política, todos representam a mesma coisa. O que muda é a circunstância
ocasional de serem partidos oposicionistas ou situacionistas.
Com a direita exaurida, a centro-esquerda
desacreditada e a esquerda inerte, o país adentra o momento eleitoral próximo.
Vários segmentos sociais já demonstram seu afastamento do projeto petista. Os
mais organizados já fazem oposição aberta ao governo. Esse fenômeno novo pode
se agigantar e contaminar outros setores e as escolhas eleitorais. Os
resultados nas principais capitais vão indicar para onde está indo a vontade
popular. A se configurar a perda de espaço do PT, ela será um estímulo para a
centro-direita se revigorar, se reorganizar e voltar a ocupar lugar de destaque
na cena eleitoral em 2014. Se tal prognóstico se confirmar, o ciclo petista
terá se encerrado com uma contribuição mais que modesta para a história da
esquerda no Brasil. A quimera do governo elidiu a conquista de fato do poder.
Terá valido à pena tanta perda de tempo?
* Gustavo Falcón é jornalista e sociólogo. Autor, entre outros, de Os Coronéis do Cacau; Os baianos que rugem – A Imprensa Alternativa na Bahia e Do reformismo à luta armada: a trajetória política de Mário Alves.
Dimitri, o artigo é bom, mas o PT ainda tem a possibilidade de "tomar" São Paulo e, com a derrota em Salvador, o PT não perde, continua sem ganhar aqui como sempre. Além disso, nesse primeiro turno, o PT e o PSB foram os únicos partidos que aumentaram seu número de prefeituras: http://g1.globo.com/politica/eleicoes/2012/noticia/2012/10/pmdb-e-psdb-encolhem-e-pt-e-psb-avancam-em-numero-de-prefeituras.html
ResponderExcluirTodos os outros grandes encolheram.
Apenas para registrar que não houve esse encolhimento tão significativo para o qual aponta Falcón.
Concordo com ele quanto a Dilma e acho que ela foge do projeto PT, também. E foi esperta dando corda pra muita gente se enforcar. Hoje em dia, Lula é um fantasma no governo dela e as principais forças são dissociadas da era Lula.
um abraço!