quarta-feira, 31 de outubro de 2012

O DIREITO AO ACARAJÉ

Pelo advogado Dr. Vitor Hugo Rezende





Nos últimos dias a Bahia ficou estarrecida com a notícia de que a FIFA, entidade que organiza a Copa do Mundo de 2014, cogitou a possibilidade de proibir a comercialização do acarajé num raio de 2 km da Fonte Nova, como forma de manter a primazia do McDonalds que é um dos patrocinadores oficiais da Copa do Mundo do Brasil, num flagrante desrespeito à cultura baiana.
O acarajé é uma comida afro-brasileira e se constitui num bolinho de feijão-fradinho moído, temperado r cebola e sal e frito no azeite de dendê. O folclorista Manuel Querino, no seu A Arte Culinária da Bahia, minucia o modo de fazer do bolinho descrevendo que "no início, o feijão-fradinho era ralado na pedra, de 50 cm de comprimento por 23 de largura, tendo cerca de 10 cm de altura. A face plana, em vez de lisa, era ligeiramente picada por canteiro, de modo a torná-la porosa ou crespa. Um rolo de forma cilíndrica, impelido para frente e para trás, sobre a pedra, na atitude de quem mói, triturava facilmente o milho, o feijão, o arroz".
Para alguns o acarajé tem relação estreita com o falafel árabe, um outro bolinho de sabor singular popularmente degustado no oriente. Defendem, alguns pesquisadores que os Árabes teriam levado para a África nas suas expedições do VIII, o tal bolinho que também é frito, mas sua composição leva massa de fava seca ou grão de bico.
Na África o Acarajé é chamado de Àkàrà(bolo feito da polpa do feijão fradinho, temperado com cebola e sal e frito no dendê), tendo ganhado no Brasil o sufixo je, que em ioruba significa comer. Atribuem na mitologia dos orixás, que Iansã, encomendou um acarajé para Xangô, num dia de festa no reino. Após degustar a iguaria Xangô começou a por fogo pela boca, restando a Iansã também provar do bolinho e ter a mesma consequência do marido. Entretanto, para a surpresa, os súditos do reino se impressionaram positivamente com o ocorrido, dando nome àquela comida de àkàrà que significa bola de fogo.
Em que pese toda a riqueza cultural da iguaria, além da proteção conferida pelo IPHAN, afinal o ofício da baiana de acarajé é considerado bem de natureza imaterial do Brasil, processo nº 01450.008675/2004-01 tendo sido inscrito nos Livros dos Saberes, observamos o desrespeito aos costumes e culturas nacionais, numa tentativa flagrante de imposição do estrangeirismo dentro do Território Nacional.
Insta observar ainda que recentemente o Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia inscreveu o ofício das baianas de acarajé no livro dos saberes, garantindo-o como patrimônio imaterial da Bahia.
Outrossim, cumpre salientar que a Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura – UNESCO vem empreendendo forças no sentido de tutelar as relações entre os entes nacionais, garantindo o respeito à diversidade cultural.
Neste sentido, faz-se imperioso, mesmo que em apertada síntese ponderarmos sobre a essência da terminologia da diversidade cultural, que se constitui numa interação harmoniosa entre as formas diversas de manifestação cultural, afiançando a originalidade e pluralidade de identidades dos grupos e sociedades que compõe a humanidade. Por cultura, podemos compreender as formas de manifestação do homem no mundo.
O direito à diversidade cultural é um direito humano, um direito natural. O direito natural se caracteriza pela prescindibilidade de criação, pois já está intrínseco na própria existência humana, restando somente a sua declaração.
A UNESCO entendendo sabiamente que o direito à diversidade cultural se constitui num direito natural, proclamou em 2001 a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, estabelecendo nos artigos 4º e 5º, instrumentos que protegem a propalada diversidade, vejamos:

“Artigo 4 – Os direitos humanos, garantias da diversidade cultural

A defesa da diversidade cultural é um imperativo ético, inseparável do respeito à dignidade humana. Ela implica o compromisso de respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais, em particular os direitos das pessoas que pertencem a minorias e os dos povos autóctones. Ninguém pode invocar a diversidade cultural para violar os direitos humanos garantidos pelo direito internacional, nem para limitar seu alcance.

Artigo 5 – Os direitos culturais, marco propício da diversidade cultural

Os direitos culturais são parte integrante dos direitos humanos, que são universais, indissociáveis e interdependentes. O desenvolvimento de uma diversidade criativa exige a plena realização dos direitos culturais, tal como os define o Artigo 27 da Declaração Universal de Direitos Humanos e os artigos 13 e 15 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Toda pessoa deve, assim, poder expressar-se, criar e difundir suas obras na língua que deseje e, em particular, na sua língua materna; toda pessoa tem direito a uma educação e uma formação de qualidade que respeite plenamente sua identidade cultural; toda pessoa deve poder participar na vida cultural que escolha e exercer suas próprias práticas culturais, dentro dos limites que impõe o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais.”

Neste esteio, podemos fragmentar os dois dispositivos supracitados, para adunar alguns conceitos. Inicialmente, é imperioso conceituar povo autóctone como os povos que detêm uma cultura própria, singularizada ou que mesmo colonizados não se identificaram com a cultura do colonizador, fazendo prevalecer a sua identidade. Além disso, o art. 5º da mencionada Declaração congrega alguns princípios do direito à diversidade cultural, restando como interessante o destaque ao período que “toda pessoa deve poder participar na vida cultural que escolha e exercer suas próprias práticas culturais”. Dissecando este período, observamos que o mesmo agrupa os princípios da liberdade cultural, do acesso à cultura e autodeterminação da cultura.
Assim, pode-se vislumbrar o acarajé como um bem que prevaleceu, na sociedade baiana, mesmo vindo de outro continente, trazido por um povo que se viu açoitado culturalmente, tendo que celebrar suas crenças de forma camuflada, submetendo-se ainda a uma colonização elitista que incutiu na Bahia de ontem valores de respeito somente aos bens advindos da coroa. Logo, autoriza-se assemelhar o próprio acarajé aos povos autóctones, pelo sua força de reexistir e resistir diante de tantas adversidades.
No que tange aos princípios culturais acima esposados, calha que seja ressaltado que a venda da iguaria onde quer que seja procedida, agregada à sua riqueza histórica e seu modo peculiar da fazer, qual seja, armar o tabuleiro, incensar o seu redor, bater a massa à vista de qualquer do povo é uma liberdade cultural e deve ser respeitada, enquanto que aos comuns deve ser protegido o seu acesso, principalmente aos que de fora vêm.
Ademais, o princípio da autodeterminação da cultura, pressupõe que detemos o direito de seguir e celebrar aquilo que nos é prazeroso. O bem cultural exaltado deve estar sincronizado com a nossa identidade. Razão pela qual, cabe tão somente, ao povo baiano, decidir pela comercialização ou não do acarajé na Fonte Nova, restando, como inconveniente, qualquer decisão que cerceie o povo do acesso ao bolinho, sob pena de tolher a manifestação cultural do Estado da Bahia.
Pelo exposto, esperamos a prevalência do direito à diversidade cultural, conclamando desde já, a sociedade civil organizada, para a defesa deste símbolo afro-baiano, sob pena de sofrermos uma lesão irreparável na nossa identidade e no exercício da defesa dos direitos culturais.

Um comentário:

  1. È o que chamamos de subserviência explicitaaos
    poderosos de plantão. Uma vergomha para a Bahia,e o
    Brasil. É como vejo com indignação e tristeza.
    CLIMERIO ANDRADE

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