(Folha de São Paulo)
Quase todo mundo que conheço, quando quer tomar leite, vai até o supermercado, a padaria ou a geladeira, se ele já estiver lá. Mas, da última vez que tomei leite, o caminho foi mais complicado.
Um voo de São Paulo até Brasília. Uma estrada esburacada até Mambaí, "o encanto do turismo em Goiás", segundo a placa. E outra estrada de terra e lama, 45 quilômetros longos e sacolejantes, desviando de caminhões atolados.
Treze horas depois, chegamos ao município de Jaborandi, no sudoeste da Bahia, onde fica a fazenda. O jantar logo é servido: curry de salsicha.
As coisas são diferentes nessa propriedade instalada no cerrado brasileiro. A língua falada é uma mistura aleatória de português e inglês. O traje típico não é camisa xadrez e chapéu de vaqueiro, mas camisa polo e chapéu australiano, ops, neozelandês. E, à noite, além de curry, come-se pizza ou queijos e vinhos.
Craig Bell e as pilhas de garrafas de leite
Assim funciona a fazenda Leitíssimo, espécie de comunidade que um grupo de neozelandeses fundou há dez anos. A Nova Zelândia, apesar de ser pequena, é o maior exportador mundial de leite.
Seus nativos encontraram do outro lado do mundo boas condições de solo e clima para produzir um leite de qualidade a preço baixo. E, com o enorme mercado consumidor do Brasil, expandiram os negócios para cá e criaram o Leitíssimo, produto que frequenta as prateleiras de supermercados brasileiros há dois anos.
O modo de produção dos gringos também é diferente. As vacas ficam soltas o tempo todo, só se alimentam de capim e são criadas perto de gente (no Brasil, em geral, as vacas de leite comem ração e vivem confinadas).
A sensação é esquisita quando, às oito da manhã, ali no meio do pasto, uma vaca me lambe, cheira e empurra com o focinho. "É igual a um gato, a um cachorro...", diz Craig Bell, 48, um dos fundadores da fazenda. "Foram mal-acostumadas, criadas na mamadeira", explica Dave Broad, 40, outro dos sócios. "Acabam ficando assim, sem medo de gente. São tranquilas e carinhosas."
As vacas são uma mistura bem neozelandesa das raças Jersey e Friesian, que eles chamam de "kiwicross" --kiwi é o apelido carinhoso dado a tudo que vem da Nova Zelândia.
O leite produzido ali "compartilha princípios" com o orgânico (como causar o mínimo de impacto ambiental), mas não tem esse rótulo porque os fazendeiros questionam alguns procedimentos necessários para ganhar o selo.
Vaca de leite orgânico não pode tomar remédios, por exemplo. "E aí, o que fazer quando uma delas fica doente?", questiona Roger Douglas, 25. "Ou muda de fazenda ou vira Big Mac", responde ele mesmo.
O resultado das técnicas neozelandesas implantadas por aqui é um longa vida elogiado em fóruns de bebedores de leite na internet ("muito cremoso", "leite de verdade" e "gostinho da fazenda" são as expressões mais usadas) e por quem usa a bebida profissionalmente.
Isabela Raposeiras, a melhor barista do Brasil em nove de dez eleições do tipo, usa o Leitíssimo para fazer seus cafés com leite. A premiada sorveteria Bacio di Latte também.
MORTE E VIDA BOVINA
Em breve, a Leitíssimo dará cria em São Paulo. Um dos sócios vai abrir em janeiro a leiteria Delicari com parceiros locais. Além do leite kiwi-baiano, vão vender iogurtes e sorvetes.
Mas o charme é como as compras vão chegar à casa do cliente: quase à moda antiga, de bicicleta, numa caixa com isolamento térmico. A loja será na Vila Nova Conceição, escolhida por ser um bairro plano, dizem os leiteiros (e provavelmente também pelo alto poder aquisitivo dos seus moradores).
No meio dos bichos, Juliano e Tatá, dois funcionários da fazenda, conversam sobre a morte da bezerra. Uma vaca morreu à noite ("Coisa muito rara", diz Juliano) e perdeu junto a bezerrinha de que estava prenha. Foi no meio da madrugada, lamentam. Se não, dava tempo de ter salvado.
Mas não perdem muito tempo no luto. Juliano põe uma luva e vai fazer inseminação artificial em três vacas no cio. Enfia a mão no reto, deposita o sêmen no útero. Com uma seringa de uns 30 cm. Três vezes. Uma atrás da outra. Sem parar para descansar. Romance é artigo em falta na fazenda moderna, dizem. Três inseminações depois, tira a luva, lava bem a mão e acende um cigarrinho.
Além do convívio íntimo com as vacas, Juliano e Tatá têm outra coisa em comum. Ambos frequentaram a escolinha da fazenda. Tatá, que começou como peão e agora é chefe, aprendeu a ler e a escrever em português. Juliano, gerente da fazenda, estuda inglês.
Mas a escola é mais usada pelas crianças, filhas de fazendeiros, funcionários e vizinhos. Ali, as 11 alunas são meninas. "Somos muito sexistas", brinca Ana Tonon, 42, mulher de Dave e mãe de três Marias.
Entre os humanos, a unanimidade feminina é pura coincidência. Já as vacas são inseminadas artificialmente com uma técnica que produz só fêmeas.
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Tranquilas e carinhosas, as vacas ficam soltas no pasto da fazenda da Leitíssimo, em Jaborandi, na Bahia |
Na escola, as meninas se apresentam para os visitantes. Como o Natal vem aí, cantam "Noite Feliz" seguida de "Silent Night" e emendam "Bate o Sino" em "Jingle Bells". Ensaiam uma música que acabaram de inventar e fala em "Two pães de queijo, five goiabadas, six veadinhos..." Uma professora brasileira e outra neozelandesa dividem as atividades nas duas línguas e, nas prateleiras, "Aurélio" e "Thesaurus" convivem em harmonia.
A neozelandesa Liz Argue, vinda de um povoado "que tem mais cavalos que gente", ensina as garotas a jogar softball (uma variação de baseball) e diz que a diferença de dar aulas aqui e lá é que as crianças kiwis não dão abraço nem beijo.
Chama uma das alunas mais beijoqueiras, Danieli Inacio, 9, para me contar, orgulhosa, que está dando aulas de inglês para o pai e outros quatro adultos em casa.
MASOQUISTAS RURAIS
No alto da "gin tower" (torre do gim), uma espécie de "lounge" em cima de uma caixa d'água, os neozelandeses partilham o queijo e o vinho conosco, os forasteiros, e curtem a lua cheia do cerrado.
No violão, Paul Schuler, 47, toca Bob Marley e U2. Grande admirador da dupla sertaneja César Menotti e Fabiano ("César é o Andrea Bocelli brasileiro"), diz que nunca aprendeu a tocar uma música em português porque os brasileiros riam muito toda vez que ele tentava.
Nas rodinhas de conversa, neozelandeses falam sobre o caráter desbravador de seus nativos e se orgulham de suas mulheres --o país foi o primeiro a permitir o voto feminino. Mas, com tantas mulheres admiráveis por lá, por que acabam se casando com as brasileiras? "Somos masoquistas", brinca Craig. Além dele e de Dave, outro gringo, chamado Gregory, casou com uma local, Cleuza. E até trocou de nome: virou Geraldo.
É na casa de Gregory/Geraldo e Cleuza que me hospedo. Despensa de fazenda neozelandesa moderna também é diferente. No armário de porta de vidro, tem mistura para fazer iogurtes nos sabores "greek" e "apricot", pó para fazer curry e refresco em pó de laranja. Tudo da Nova Zelândia.
É de lá, também, que chegam amigos para montar fazendas de leite ali ao lado. Para eles, não é concorrência. "Vamos trocar experiências e desenvolver juntos a tecnologia para produzir um leite cada dia melhor", diz Craig. E, por falar em tecnologia, ali não pega telefone, mas a internet funciona bem quase o tempo todo (apesar de o GPS do meu celular não localizar onde estamos no mapa).
Simon Wallace, 41, formado em filosofia, diz que eles se sentem "muito bem-vindos na baiano family". "Aqui, achamos pessoas trabalhadoras e inteligentes, ao contrário do que se diz por aí."
Com o objetivo de produzir o "futuro do leite de alta qualidade no Brasil", ele vive solto como as vacas: passa 300 dias por ano na fazenda e há dez anos não sabe o que é ter que trancar a casa ou o carro. Nem o que é ter que ir ao supermercado, à padaria ou sacolejar numa estrada de terra para tomar um bom leite.