segunda-feira, 14 de março de 2016

PORQUE VOCÊ NÃO FOTOGRAFA COMO CARTIER-BRESSON

OS DEZ MANDAMENTOS DO FOTÓGRAFO

Ou, refraseando de maneira igualmente provocativa: porque dez entre dez fotógrafos listam o mestre francês como referência básica, mas o que fazem na prática não tem nada a ver com o que ele faria. 

Regras_de_Bresson

Se você se liga nos melhores sites sobre fotografia e consegue ler em inglês, provavelmente já viu esta magnífica postagem do Eric Kim sobre o legado conceitual de Henri Cartier-Bresson. Caso contrário, é possível que tenha visto trabalhos derivativos toscos sobre o tema. Mas fique claro que a lista original das “Dez Regras” foi compilada pelo Kim, não pelo Cartier-Bresson, que não gostava de ditar regras. Recomendo a leitura da postagem original dele. Em resumo, eis os dez “mandamentos” que, segundo Kim, condensam toda a filosofia de HCB:
  • 1. Preste atenção à geometria.
  • 2. Tenha paciência.
  • 3. Viaje.
  • 4. Use uma só lente.
  • 5. Fotografe crianças.
  • 6. Não perturbe ninguém.
  • 7. Enxergue o mundo como um pintor.
  • 8. Não corte a foto depois.
  • 9. Não se preocupe com o tratamento.
  • 10. Esforce-se sempre em melhorar.
Por que você não faz isso e, por conseguinte, não fotografa como HCB, mesmo mencionando o seu nome como o de um santo padroeiro? Tenho a oferecer algumas pistas, a partir de minha experiência pessoal. Vejamos se batem com as suas.

1. Geometria

© 2013 Mario V. Amaya - RAW & ROLL

HCB é muito mais famoso que todos nós – e teve amplo motivo para isso. Falando tecnicamente, ele tinha um dom especial para compor cenas harmoniosas a partir da geometria de linhas e volumes existente no ambiente, ao mesmo tempo em que retratava alguma pessoa interessante sem ela nem perceber. Você fotografa com a mesma intenção? Para ser brutalmente honesto, quase ninguém que eu conheço e vejo experimentar sua mão na fotografia de rua escapa do vício da “visão de túnel”, que acontece quando a atenção do fotógrafo é tão dominada pelo assunto principal que o ambiente acaba não tendo nenhuma relevância para a composição. Também existem infinitos exemplos do caso oposto: o fotógrafo encontra um ângulo “bom” numa rua e fica esperando uma pessoa anônima qualquer passar pelo local, só para servir como “decoração” ou “referência de escala” na foto. Isso não é fotografia de rua pela abordagem de HCB, por não envolver as pessoas num nível fundamental. (Testar o bokeh da lente fotografando assuntos aleatórios na rua também não se qualifica por si como Street Photography…)

2. Paciência

© 2013 Mario V. Amaya - RAW & ROLL
Uma coisa que não mudou desde os tempos de HCB é que o bom fotógrafo de rua é um flâneur – um andarilho observador. Paciência é pré-requisito para ele criar imagens marcantes. Mas se você é um fotógrafo profissional, ninguém tem direito a lhe pedir paciência. Clientes, auxiliares, associados – todos colocam uma pressão extrema para entregar resultados máximos a um custo mínimo e em prazo também mínimo. Dessa forma, a criatividade é sufocada pela responsabilidade. (Isso explica o volume monumental de fotos de casamento – mas não apenas desse gênero – que são banais, sem graça e totalmente dependentes de algum maneirismo técnico da moda.) Se você não é profissional, também existe um obstáculo no seu caminho para chegar a fotos mais marcantes: é o seu celular. Como assim? Um smartphone contém uma câmera, portanto é um auxílio, não um obstáculo – não? Nem sempre! Cada foto feita com ele é concebida para ser enviada imediatamente a centenas de amigos. Não há paciência envolvida nisso, até pelo contrário; portanto, não é justo exigir reflexão ou profundidade de um Instagram.

3. Viajar

© 2013 Mario V. Amaya - RAW & ROLL
HCB fez muitas fotos em locais remotos, sempre com uma “pegada” antropológica; afinal, ele era fotojornalista e trabalhava com pautas de natureza social. Sua matéria-prima visual era o ser humano, não os países visitados. HCB nunca fez uma foto tipo cartão-postal. Ele não queria mostrar os lugares, e sim o que se passava com as pessoas ali. O resto de nós viaja a negócios ou simplesmente para passear, e esse contexto necessariamente gera imagens com um caráter diferente. Tudo bem!

4. Lente fixa

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HCB usou pouquíssima variedade de equipamentos fotográficos em sua carreira; era quase sempre uma lente de 50mm fixa numa simples Leica com filme 35mm, sem flash ou modificadores de luz. Ele chegava ao local com o foco pré-ajustado na distância hiperfocal, compunha a imagem na mente, levava a câmera ao olho, clicava em um breve instante e saía andando. Quem é que faz isso hoje em dia com uma câmera digital e uma lente megazoom? Mexe no zoom, mexe no ISO, mexe no ponto de AF, aciona o IS, mexe no WB, mexe no Tv ou no Av, mexe no EV, clica, olha o resultado no LCD, decide que não ficou bom, regula algum dos parâmetros novamente, põe a máquina em burst e faz uma rajada de 16 fotos para ver depois se alguma delas se salva. Pois é. Nada mais diferente do procedimento do velho mestre. Não tem como sair uma imagem parecida às dele.

5. Crianças

© 2013 Mario V. Amaya - RAW & ROLL
No longo período em que HCB viveu, não havia problema em fotografar crianças furtivamente em locais públicos. Mas o mundo de hoje é bem pior que o que o grande fotógrafo registrou, e as pessoas perderam a confiança de forma globalizada. Fotografia de crianças na rua hoje é algo arriscado e controverso. Ou você pede permissão por escrito e combina tudo antes de tirar a câmera da bolsa, ou é processado mais tarde pelos pais. Isso se não for abordado de forma truculenta por policiais, seguranças ou os próprios parentes. Há anos editei para a minha ex-revista um artigo no qual um fotógrafo estrangeiro dizia que o Japão era o último país do mundo onde ninguém acha esquisito ter seus filhos fotografados por turistas. Não mais. Quando andava por Asakusa, em Tóquio, encontrei o cartaz acima. No Photo Please.

6. Discrição

© 2013 Mario V. Amaya - RAW & ROLL
Desde o começo da era digital, quase todo mundo que porta uma câmera bacana e moderna quer na realidade ser visto com ela. É igual a um carro novo. Você acha que certas teleobjetivas de gama superior são pintadas de branco para serem mais discretas? Óbvio que não. São brancas para aparecerem; tanto a marca da lente quanto seu abonado proprietário. E o que dizer das alças de pescoço originais, sempre em cores berrantes, e dos estojos rígidos oficiais que anunciam seu conteúdo pela forma? Fotografar discretamente tem a ver com integrar-se ao ambiente e ficar “transparente” para os demais. É uma questão mais de atitude do que de aparência. Compreendendo isso, aprendi a fotografar estranhos na rua de perto usando câmeras reflex grandes sem chamar a atenção. Qual é o segredo? Entre outras coisas, não exibir a câmera. Seria demais pedir isso à turma fashion-conscious da fotografia atual?

7. Olhar de pintor

© 2013 Mario V. Amaya - RAW & ROLL
Para HCB isso era fácil, porque ele começou e terminou sua vida como tal. Isso implica, naturalmente, que ele estudou as técnicas de composição e emprego da luz que foram sistematizadas na tradição de longos séculos de grandes pintores que o precederam. Se você já estudou fotografia num curso formal, cabe perguntar: o curso incluía História da Arte como disciplina? E com que nível de aprofundamento? Os instrutores de fotografia sempre afirmam que conhecer esse tópico é essencial para possuir referências e obter bons resultados. Mas quantos dizem isso apenas da boca para fora? Afinal, você quer sair do curso fotografando “melhor” em questão de poucos dias. Só que ainda está brigando com os botões da máquina.

8. Corte

© 2013 Mario V. Amaya - RAW & ROLL
HCB tinha por dogma compor a foto com exatidão no visor da câmera, mandar ampliar do jeito que ficou e não mexer em nada depois. Nós não fomos treinados a exercer tanto rigor no enquadramento, pois um recorte é trivial e inescapável na fotografia comercial. As câmeras e lentes atuais conseguem registrar quantidades tão vastas de detalhes que até nos estimulam a compor com excesso de amplitude e depois repensar o corte com uma certa liberdade. É outra filosofia, só que não está errada: é apenas diferente.

9. Tratamento

© 2013 Mario V. Amaya - RAW & ROLL
Nosso herói não se importava com o tratamento das fotos… porque um laboratorista fazia isso por ele. Não é mais assim na era digital, nem mesmo para os fotojornalistas. Com algumas exceções, concentradas na fotografia publicitária e de moda, cada fotógrafo é totalmente responsável pelo processamento de suas fotos. Isso, incidentalmente, levou a uma notável queda na qualidade técnica média das fotos. É razoável presumir que um tratador dedicado saberá trabalhar as imagens de forma mais eficaz que o seu “batch vintage preset ” do Lightroom.

10. Aprimoramento constante

© 2013 Mario V. Amaya - RAW & ROLL
HCB nunca ficava satisfeito com seu trabalho pronto, por princípio básico da agência Magnum, fundada por ele e seus amigos. Ernst Haas, um dos principais membros da cooperativa, disse aos colegas: “Cada um de nós quer fazer fotos lindas, marcantes e extraordinárias. Cada um de nós luta com seu próprio estilo. As mudanças não vêm somente pela força de vontade, mas também não vêm quando estamos satisfeitos. Sejamos mais críticos uns com os outros: isso nos aproximará. Encontremos um novo denominador comum na luta, o de não seguirmos nossos próprios padrões de inventividade. Não cubra: descubra!” O que mais dizer, senão “Amém”?

Nota: a imagem que abre este artigo é, OBVIAMENTE, uma provocação dirigida especificamente aos “críticos de poltrona” e também ao pessoal que aceita qualquer porcaria como obra-prima, que é ainda mais numeroso. Se você estiver particularmente injuriado, OK, eu deixo que você associe a imagem maldosa ao curador de sua preferência. Mas de maneira nenhuma pretendi sacanear a vultosa e imponente obra de Henri Cartier-Bresson, a qual dispensa qualquer tipo de defesa. Se você gosta deste assunto e quer ler mais, siga este link.

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