O empreiteiro Marcelo Odebrecht sempre fez questão de comparar os acordos de colaboração com a Justiça à traição. No depoimento que prestou à CPI da Petrobras no ano passado (foto), afirmou não ter o que “dedurar”. Numa de suas frases de efeito, disse que, na educação de suas filhas, preferia punir aquela que entregasse a irmã àquela que tivesse feito algo errado. Na ética de Marcelo, escrevi na ocasião, a lealdade à família, o silêncio diante dos crimes cometidos pelos seus têm precedência sobre a verdade.

Foi por isso que, para proteger seus executivos, ele mentiu ao longo de meses a respeito do cartel formado pelas empreiteiras para dividir os contratos da Petrobras, mentiu sobre as propinas e favores feitos a políticos em troca de benefícios do Estado, mentiu sobre as relações espúrias mantidas pela Odebrecht com governos de todos os partidos e cores ideológicas, em especial as gestões Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.

Num encontro com jornalistas em 2014, antes de ser preso, julgado e condenado a quase 20 anos de prisão, ele apontava o dedo para cima, batia a mão sobre a mesa e dizia num tom de voz incisivo, de quem está acostumado a mandar: “Podem investigar à vontade que não acharão nada sobre nós. Sou o único presidente (de empreiteira) que pode dizer isso a vocês de cara limpa, e estou dizendo”. Era mais uma mentira.

Preso pela Operação Lava Jato em 19 de junho do ano passado, Marcelo foi obrigado a enfrentar uma realidade distinta daquela a que estava acostumado. Convocado a prestar depoimento diante do juiz Sérgio Moro, preferiu manter o silêncio e mandou seus advogados responderem por escrito a questões formuladas a partir da peça acusatória. Mesmo diante de um juiz federal, foi incapaz de abandonar sua atitude onipotente, de alguém acostumado a ser servido, agradado e reverenciado.

À medida que o tempo passava e sua condenação se aproximava, advogados, assessores e seu próprio pai, Emílio Odebrecht, recomendavam que ele fizese um acordo de colaboração com a Justiça, única forma de obter algum alívio na pena – tamanhas e tão eloquentes eram as provas de falcatruas recolhidas contra a Odebrecht ao longo da Lava Jato. Marcelo insistia que não, queria a todo custo evitar o estigma do “dedo-duro”.

Até que, diante da última fase da Lava Jato, a Odebrecht emitiu um comunicado informando sua decisão de pôr em prática o que chamou de “colaboração definitiva” com a Justiça. Em princípio, algo nos moldes do que fizeram outras empreiteiras, como Camargo Corrêa ou UTC, envolvendo a delação premiada de executivos e acordos de leniência com as autoridades econômicas.

O Ministério Público Federal (MPF) apressou-se em negar que algum acordo do tipo esteja em andamento. Criticou o uso da imprensa para comunicar tratativas que, por sua própria natureza, deveriam permanecer em segredo. Mas quem acompanha o caso de perto sabe que Marcelo mudou de ideia sobre a delação. Ele aceita contar o que sabe. Conformou-se com a necessidade de, para usar seu próprio termo, “dedurar”.

A dúvida é para onde seu dedo vai apontar agora. Para aceitar fechar o acordo, o MPF exige a corroboração de todos os crimes já desvendados e a revelação de novos crimes, ainda desconhecidos. Marcelo precisa entregar novos nomes, e há pouca dúvida de que ele sabe muita coisa sobre Lula e Dilma. Na atual circunstância política, enquanto o Supremo Tribunal Federal (STF) não decide se Lula ficará ministro, os procuradores de Curitiba e o juiz Moro serão questionados sobre sua competência sobre qualquer revelação feita por Marcelo a respeito dos dois.

A conversa de Marcelo a respeito da delação já vinha andando bem antes da nova fase da Lava Jato e do comunicado emitido esta semana. O que retardava sua decisão eram questões internas e familiares. Numa empresa que sempre prezou a lealdade acima de tudo, a mudança de atitude seria vista como uma quebra de confiança – e confiança é um dos maiores valores nos manuais corporativos da Odebrecht. Para evitar o sentimento depressivo, seria preciso operar uma mudança cultural profunda na empresa. E como Marcelo encararia suas filhas, a quem sempre apresentara a lealdade como um valor absoluto?

Surgiu também uma divergência entre Emílio e Marcelo, sobre a extensão do que ele deveria revelar. Onipotente, Marcelo defendia fazer uma delação que se transformasse numa bomba atômica, algo capaz de “mudar o Brasil”. Cauteloso, Emílio estava mais preocupado com a sobrevivência da empresa. Preferia evitar incluir nomes que pudessem ser importantes para a situação futura da Odebrecht num novo governo, posterior a Dilma – como o oposicionista Aécio Neves, o vice-presidente Michel Temer e vários outros políticos com quem a Odebrecht sempre se relacionou.

Justamente a sobrevivência da empresa foi posta em risco com as descobertas reveladas esta semana pela nova fase da Lava Jato, batizada Xepa, e precipitou a decisão de colaborar – de modo "definitivo" – com a Justiça. O depoimento da secretária Maria Lúcia Tavares e os documentos encontrados na casa do executivo Benedicto Barbosa Júnior são devastadores para a Odebrecht. As declarações de Maria Lúcia, em especial, revelam até que ponto a corrupção estava entranhada no modelo de negócio da empresa. Toda a reconhecida competência de gestão da Odebrecht foi posta a serviço do pagamento de propinas.

Havia um departamento inteiro dedicado a isso: o Setor de Operações Estruturadas. A hierarquia de comando evitava o contato desse setor com o resto da empresa. Ele contava com funcionários dedicados (como Maria Lúcia), uma rede de apoio externa de doleiros espalhados pelo país e um sistema próprio de comunicação segura (Drousys). Todos os pagamentos eram lançados no software de gestão de contratos da Odebrecht (MyWebWay), protegidos por nomes em código e senhas. Com o avanço da Lava Jato, o departamento foi desmantelado, e os sistemas de informática, desativados. Depois das descobertas da Polícia Federal, ficou impossível – se já não era – negar o envolvimento da Odebrecht nos crimes.

Mais importantes que as revelações de Maria Lúcia, foram todos os documentos e planilhas encontrados em poder de Júnior. Eles revelam como a Odebrecht levou ao extremo outro de seus princípios de gestão: a descentralização, baseada também nos valores de confiança e lealdade. Até o pagamento das propinas a políticos foi delegado aos líderes dos negócios. Em vez de ocupar-se apenas das obras, eles tinham também de negociar com os políticos.

Havia com Benedicto planilhas com registros das obrigações de cada empresa do Grupo Odebrecht em relação a partidos e a cerca de 200 políticos identificados pelo nome. A maioria, previsivelmente, afirma que se trata de contribuições legais de campanha. Mas o fato de uma contribuição ser feita no caixa um não significa que ela não possa configurar corrupção, pois pode ser apenas um pagamento de favor, por um contrato ou obra.

Outros dois documentos parecem contratos em código, usados para estabelecer regras de um cartel – um deles estabelece o regulamento para a equipe de um “campeonato de tênis”, o outro fala no “Sport Clube Unidos Venceremos”. Pela quantidade de informações encontradas com Júnior, seria possível inferir que ele centralizava a contabilidade das propinas na Odebrecht, em tudo aquilo que não dizia respeito à Petrobras. Mesmo assim, o juiz Moro preferiu negar o pedido de prisão preventiva dele, feito pelo MPF.

Um dos documentos mais interessantes é um texto apócrifo, com críticas ao MPF e à Lava Jato, uma espécie de artigo que não se sabe se chegou a ser publicado. Boa parte do texto traz a previsível chiadeira negando o óbvio: as empreiteiras formavam um cartel para se aproveitar dos contratos na Petrobras. Há trechos, contudo, que merecem reflexão. Eles contestam de modo veemente e persuasivo a versão do MPF que atribui à Petrobras apenas a posição de vítima de executivos e empreiteiros inescrupulosos. Apesar de extensos, vale a pena reproduzi-los:

– O MP atribui a organização do esquema de corrupção às empreiteiras, e não ao governo, tratando o financiamento de partidos políticos como uma consequência, e não como a origem e o objetivo central do esquema de corrupção (…) Adota uma interpretação corporativista e leviana, que só aborda um lado da questão, colocando a Petrobras e os políticos como vítimas. (…) A Petrobras é uma empresa de grande porte, com longa tradição de licitação de empreendimentos e na sua administração contratual. Sempre foi considerada pelos seus prestadores de serviço e fornecedores como uma empresa com profissionais tecnicamente qualificados, e reconhecidos por todos os seus contratados como severos, rígidos e dotados de poder discricionário na administração contratual. (…) Basta avaliar alguns exemplos de licitações para compreender que a prática de um cartel sempre operando com sobrepreço e subjugando a Petrobras nunca poderia ter sido a tônica da Lava Jato. É a Petrobras que licita. (…) É a Petrobras que estabelece o orçamento de referência. É a Petrobras que avalia a capacidade técnica das empresas. (…) É ela que analisa as ofertas. É ela que adjudica o contrato. (…) "O empresário não é ingênuo,mas também não é o principal responsável pela corrupção. Essa visão foi criada pelo discurso político do governo, que, para se eximir de culpa, tenta incutir na sociedade esse pensamento." Que empresário, numa situação normal de concorrência, estaria disposto a se arriscar para, espontaneamente, cooptar agentes públicos a participar de esquemas de corrupção? (…) Dá para acreditar que o diretor da Petrobras “amigo Paulinho” e outros teriam sido corrompidos por propostas milionárias de suborno iniciadas por empreiteiras e que, generosamente, teriam tomado a iniciativa de dividir o suborno com dezenas de políticos e com seus partidos? Será que o Ministério Público acha que somos todos otários para acreditar nisso?

Esse é o tipo de questão que Marcelo Odebrecht poderá ajudar a esclarecer em sua delação. Mais importante do que para onde seu dedo duro apontará, é o Brasil conhecer a realidade sobre as relações espúrias entre o Estado e as empreiteiras, para poder mudá-la.