terça-feira, 29 de março de 2016

QUEM CONTARÁ ESSA HISTÓRIA?

MARCELO TORRES
 
Todos nós lemos - na escola, nos livros de histórias, nos jornais - que o Brasil ficou independente na base do grito, o chamado Grito do Ipiranga, aquele que foi sem nunca ter sido. Naquele 7 de setembro de 1822, se D. Pedro deu algum grito, só pode ter sido de dor. Porque estava sua alteza com dor de barriga e toda hora apeava da mula e corria à moita para atender um "chamado da natureza". 

Grito mesmo foi "Viva o Povo Brasileiro”, livro de João Ubaldo, misto de sátira, paródia e ironia à história oficial - como são feitos os heróis, os vilões, as versões, as histórias. A ironia está no título “Viva o povo brasileiro”, exaltação desmentida linha após linha. E está na epígrafe: "O segredo da verdade é o seguinte: não existem fatos, só existem histórias" (histórias, aqui, são muitas coisas, inclusive lorotas).

Aliás, essa epígrafe poderia muito bem ter a assinatura de Friederich Wilhelm Nietzsche, aquele para quem a verdade absoluta não existe, o que existem são as versões. No romance histórico de Ubaldo, recheado de versões, a primeira palavra é "Contudo", que é conjunção adversativa, como porém e entretanto, essas palavras típicas das controvérsias. 

Entre tantos belos personagens, há um que parece sintetizar o discurso da obra – é o cego Faustino. “A História não é só essa que está nos livros”, diz ele, “até porque muitos dos que escrevem livros mentem mais do que os que contam histórias de Trancoso”. Para o cego, "toda História é falsa ou meio falsa e cada geração que chega resolve o que aconteceu antes dela e assim a História dos livros é tão inventada quanto a dos jornais, onde se lê cada peta de arrepiar os cabelos".

O cego então lança uma série de perguntas: “Alguém que tenha o conhecimento da escrita bota no papel o que não lhe interessa? Quem deu falso testemunho confessa que foi mentiroso? Não confessa”. Faustino segue questionando: “Alguém escreve bem do inimigo? Não escreve”. Aí faz o arremate: “A história é [contada] pelo interesse de alguém. O que para um é grande acontecimento, para outro é vergonha. O que para um é importante, para outro não existe". 

O irônico e divertido cego, que parece enxergar mais que todos, conclui assim: "A maior parte da História se oculta na consciência dos homens e por isso a maior parte da História nunca ninguém vai saber”. Aqui cabe lembrar um provérbio africano citado pelo escritor e intelectual uruguaio Eduardo Galeano: “Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caças seguirão glorificando o caçador” (O Livro dos Abraços, Editora L&PM, Porto Alegre, 2009).

Com outras palavras, o mesmo provérbio vem na epígrafe de um livro do moçambicano Mia Couto: “Até que os leões inventem as suas próprias histórias, os caçadores serão sempre os heróis das narrativas de caça”. (A confissão da Leoa, Editorial Caminho, Lisboa, 2012).

A narrativa dominante nos últimos tempos no Brasil, esse massacre diário no rádio, no jornal, na tevê e nas redes sociais, equivale à narrativa dos caçadores, estes que se vangloriam de "matar um leão por dia". Os leões, porém, não estão todos mortos. Haverá sempre quem conte outra história, ainda que muitos - com seus ódios e seus fuzis de caçadores - não queiram ler nem ouvir.

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