quinta-feira, 17 de março de 2016

FONTES ABANDONADAS

Antigas fontes da capital baiana são entregues ao descaso

Durante quatro séculos, fontes abasteceram a capital da colônia
Alexandre Lyrio | Redação CORREIO | Foto: Antonio Queiros
Quando Catarina Paraguaçu se banhava na Fonte de Nossa Senhora da Graça, ainda nos idos de 1500, certamente não topava com recipientes de xampu, latinhas de refrigerante e pedaços de garrafas pet. Além das histórias sobre os mergulhos da índia tupinambá, o mais antigo nascedouro d’água construído na capital baiana guarda hoje quilos de lixo, limo e toneladas de descaso.

A Fonte do Tororó, atolada em lama e cercada por uma invasão,
é o retrato da falta de políticas de preservação do patrimônio histórico
O CORREIO circulou por velhas re giões da cidade e constatou que a Fonte da Graça não é a única a sofrer com o abandono. Apesar de grande parte dos monumentos ter sido tombada pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac), a maioria dos 21 nascedouros públicos de Salvador, todos de propriedade da prefeitura, está em péssimo estado de conservação.
Numa cidade em que se diz que todos são d’Oxum - entidade das águas doces -, o que dizer da situação da Fonte do Tororó, cantada em verso e prosa? Construída no século XIX, ali não se acha “água boa” há muito. Atualmente, a fonte se encontra soterrada, em meio a uma invasão.
O que diria a vaidosa Oxum ao ver a decadência da Fonte do Gravatá, na esquina das ruas do Gravatá com a Independência? A água não para de jorrar, mas o cheiro que exala do local é de fezes humanas e sua estrutura despenca.
Os traços barrocos ainda são visíveis, mas o estado de conservação da Fonte do Baluarte, na Ladeira da Água Brusca, também é deplorável. O mesmo ocorre com a Fonte dos Padres, no Taboão, construída ainda no século XVI. “São fontes do período colonial que abasteceram Salvador durante séculos. A maioria se transformou em verdadeiras lixeiras”, diz o arquiteto e restaurador Paulo Ormindo, que na década de 90 tentou realizar um trabalho de recuperação de 16 fontes públicas.
Os mesmos locais que serviram para abastecer as casas até meados do século XIX, hoje, quando não usados como banheiro, servem para lavagem de carros, como ocorre na Fonte das Pedras,ao lado do Estádio da Fonte Nova.
Sem falar nas dezenas de fontes que secaram ou simplesmente desapareceram, a exemplo da Fonte do Pereira. Seu proprietário, o Pereira, vendia água no século XVI a navegantes. O local foi ponto de encontro até 1912, no sopé da Ladeira da Montanha.
A degradação de hoje sobra até para a Fonte do Queimado, pertencente à primeira companhia a comercializar água no Brasil. Antes das comemorações do último 2 de Julho, quando passou por ligeira limpeza, um sofá e um computador podiam ser encontrados no seu interior.
Salvador cresceu com as fontes
A história das fontes de Salvador está na raiz de seu crescimento urbano. Não teria sido aleatória a escolha de Thomé de Souza para aqui iniciar a civilização. A determinação para procura de água veio do próprio rei domJoão III, através de carta. “Espero que esta seja e deve ser um sítio sadio e de bons ares, e que tenha abastança de águas”, escreveu dom João.
“A expansão da cidade demandava água. Não havia lugar mais propício para o povoamento”, diz o arquiteto Paulo Ormindo. O vaivém de pessoas com vasos na cabeça ou no lombo de animais era cena comum na capital da colônia. Seguiu assim até meados do século XIX, quando a população já ultrapassava 60 mil pessoas e ainda se conservava o modelo de abastecimento.
Apesar de perenes, as águas das fontes começaram a ser insuficientes, até mesmo pela forma de distribuição. O primeiro sistema de canalização de águas surgiu em 1852, com a criação da Companhia do Queimado, que captava água de uma pequena represa e distribuía pelos chafarizes.
No início do século XX, quando a população chegava quase a 200 mil pessoas, um projeto do engenheiro Teodoro Sampaio, em 1906, criou um sistema de abastecimento em que a água chegava diretamente às casas. Era o embrião da atual Embasa. “Depois disso, à medida que o sistema se aperfeiçoava, as fontes foram sendo abandonadas”.
Ipac afirma que responsabilidade é da prefeitura
Apesar de dividirem as responsabilidades sobre boa parte das fontes de Salvador, prefeitura e governo do estado não conseguiram chegar a um consenso sobre o problema. O Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac) - a quem coube o tombamento de 13 das 21 fontes - argumenta que, apesar de tombadas, elas são do município.
Caberia à Fundação Gregório de Mattos (FGM) planejar soluções. “O tombamento não exclui a responsabilidade dos proprietários. A nós cabe alertar a prefeitura sobre a necessidade das reformas. Isso nós já fizemos”, diz o superintendente do Ipac, o arquiteto Frederico Mendonça.
Já a FGM garante que a catalogação dos monumentos está em fase de conclusão. A partir de uma pesquisa sobre o valor histórico e arquitetônico das fontes, deve ser elaborado um orçamento para a restauração. “Quando soubermos qual o montante necessário, buscaremos financiamento através de leis de incentivo”, diz a subcoordenadora de sítios históricos da fundação, Cristina Morelli.
Catharina Paragaçu, Caramuru e Fonte da Graça
Pode chamá-la de Fonte de Nossa Senhora das Graças, das Naus, do Caramuru ou da Catarina. Tantos nomes porque a história do minadouro de água se confunde com narrações populares.
Conta a lenda que a índia Catarina Paraguaçu provou do frescor de suas águas. Dizem alguns que Diogo Álvares Correia, seu marido, é quem teria construído a estrutura, por volta de 1500. O lugar servia para abastecer os barcos que aqui aportavam e para piqueniques de famílias tradicionais.
A Fonte da Graça foi recuperada em 2007. Desde então sua conservação ficou a cargo da Associação dos Moradores da Graça (AmoGraça). Mesmo assim, quem a visita encontra um local degradado. Nas águas em que Catarina se banhou boiam sacos plásticos, restos de comida e até uma embalagem de xampu. As paredes estão tomadas pelo limo.
Fontes mais destruídas
Fonte do Gravatá - Frontispício sugere que construção é do século XVIII. Hoje está entregue ao lixo e tema estrutura totalmente comprometida. Fonte do Tororó, do tipo cacimba, é formada por um poço coberto por uma cúpula. Construída no século XIX, encontra-se quase totalmente soterrada.

Fonte do Gravatá e o lixo acumulado
Fonte de São Pedro - Construída no século XIX, tem autor desconhecido. Abandonada pela prefeitura, conta com a colaboração de moradores para se manter limpa.

Fonte São Pedro
Fonte da Margem do Dique - Projetada pelo engenheiro Antônio Lacerda, o mesmo do Elevador Lacerda. Formada por dois poços cobertos por cúpulas, a fonte secou.

Fonte da Margem do Dique secou
Fonte da Água Brusca - Com frontispício barroco, construída no século XVIII, a também conhecida como Fonte do Baluarte hoje cai aos pedaços.
Fonte do Queimadinho - Edificada no Largo do Queimado, no século XIX, as suas seis torneiras jorram água até hoje. Mas o local foi tomado pelo lixo e pelo mato.

Fonte do Queimadinho foi tomada pelo lixo e pelo mato

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