quinta-feira, 5 de novembro de 2015

NOVO SÍTIO ARQUEOLÓGICO

Sítio arqueológico é descoberto atrás da antiga Estação Leopoldina

Relíquias da família imperial estavam no subterrâneo do terreno, numa antiga área de descarte

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Uma caneca com um símbolo do Império Foto: Guito Moreto / O Globo


 RIO — O design anatômico lembra as escovas de dentes vendidas nas farmácias. No lugar do plástico e das cerdas macias, porém, marfim cuidadosamente esculpido e espaços para tufos de pelo de porco. No cabo, uma inusitada inscrição em francês: “S M L’Empereur du Brésil” (sua majestade o imperador do Brasil). Descartável para presidentes e monarcas de hoje em dia, o item de higiene bucal e imperial muito provavelmente foi usado por dom Pedro II. Estava guardado há mais de um século no subterrâneo do terreno atrás da antiga Estação Leopoldina, no Centro.

É apenas uma entre milhares de relíquias que brotaram de um enorme sítio arqueológico explorado silenciosamente desde março por uma equipe de 26 profissionais e aberto pela primeira vez à visita de repórteres. O trabalho convive com o ritmo frenético de um canteiro de obras da Linha 4 do metrô, que financia a pesquisa. Ainda em fase de escavação — a análise criteriosa das peças será feita entre 2014 e 2015 —, as trincheiras já reconstituem hábitos sociais do século XIX, principalmente da elite e da família imperial, que usavam a região como área de descarte. Há, em menor número, itens dos séculos XVII e XVIII. Ao todo, são cerca de 200 mil objetos ou fragmentos localizados, 90% deles do século XIX.
— Não temos motivos para não acreditar que a escova foi produzida para o imperador, para a imperatriz ou para alguma princesa. A cerda de pelo de porco se perdeu, mas a escova sobrou — conta o arqueólogo e historiador Claudio Prado de Mello, que coordena a equipe.


Outra descoberta relevante é a área exata onde funcionou, entre 1853 e 1881, o Matadouro Imperial, local oficial de abate do gado que abastecia a cidade. Sabia-se que o matadouro era ali por causa de um pórtico preservado, mas vários resquícios estavam escondidos até o início das escavações.

Restou um largo calçamento de pé de moleque, ossos bovinos de aproximadamente 150 anos, ferros, ganchos e outros indícios que ajudarão a entender a metodologia do abate bovino da época. Mas a riqueza do matadouro é o piso original preservado da parte de fora do complexo, já que os prédios foram destruídos. Canaletas ao redor também indicam que o sangue dos animais tinha um caminho a ser percorrido rumo aos rios da região.

Já foram abertas pelo menos 11 trincheiras, os buracos onde arqueólogos, historiadores, biólogos e ajudantes trabalham sob a supervisão do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Além da escova, já foram identificadas centenas de objetos, como uma garrafa de vidro produzida para a família imperial, caixas de fósforo escocesas, canecas com brasão do Império e até um anel e um prendedor de gravata de ouro.

 Recipientes de pasta de dentes feitos em louça têm destaque na coleção. Há sabores para todos os gostos, como lírio florentino e uma mistura de cereja, hortelã e pimenta. Tudo para “limpar e conservar os dentes e as gengivas”, diz uma embalagem, e “free from acid” (livre de ácido), diz outra.

Mello explica que, como não havia coleta de lixo, moradores cavavam buracos em seus quintais para enterrar resíduos. Quando não existia espaço no terreno, outros pontos eram escolhidos, em geral os baixos, que precisavam de aterro. Foi o caso da região conhecida hoje como Leopoldina, que já foi ocupada até por índios temiminós liderados por Arariboia antes de serem levados para Niterói no século XVI, explica o arqueólogo. A região entre a Cidade Nova e São Cristóvão era muito suscetível a alagamentos antes dos vários aterros feitos ao longo do século XIX.

— Quando dom João VI foi para o palácio de São Cristóvão, atual Museu Nacional, a solução foi criar um aterro, já que existia um grande pântano do Centro até lá. Esse alagado o incomodava. Em princípio era um passadiço, que virou rua e depois o chamado Caminho das Lanternas — diz Mello.

Para a outra escavação, a do metrô, são fabricados e estocados ali, diariamente, anéis de concreto do futuro túnel por onde passarão os trens que ligarão as estações General Osório e Gávea. A cada dia, a fábrica produz 18 metros de túnel. Enquanto as pilhas de aduelas vão tomando conta do terreno, cuja propriedade é dividida entre os governos federal e fluminense, os profissionais correm para resgatar o passado.

Mello chama a atenção para o grande número de materiais intactos. Isso se deve, em boa medida, ao uso do terreno ao longo do tempo. Não há registro de grandes construções por lá. O local foi estacionamento e área de manutenção de trens da antiga Estação Leopoldina e, posteriormente, da SuperVia. Mesmo sob o trânsito de pesadas composições, os objetos resistiram em profundidades de 50 centímetros a três metros.

Os achados são variados. Até frascos de vidro, provavelmente usados em farmácias, foram preservados com líquido dentro, de quase 200 anos. Tudo será levado ao laboratório. Também foram encontrados 110 recipientes de cerâmica com técnica de stoneware, material feito de argila filtrada, batida e cozida em fornos de alta temperatura, principalmente na Alemanha do século XIX. O Brasil importava água engarrafada nesses recipientes, que, depois, eram reutilizados.

— No século XIX, foi descoberta no Distrito de Nassau, na Alemanha, uma fonte de água com propriedades curativas. Existia, na Europa, uma indústria de garrafas stoneware, que são extremamente resistentes — diz o arqueólogo.

Cachimbos também saíram do subterrâneo. No sítio no Cais do Valongo, não muito longe dali, foram achados os usados por escravos africanos. Na Leopoldina, boa parte vem da Europa. São cachimbos que pertenceram a marinheiros que chegavam aqui em navios comerciais e se dispersavam pela cidade. Há pequenas esculturas nas pontas. Uma delas mostra uma figura turca, bastante expressiva. Outra, um homem pedalando numa bicicleta.
Como há de tudo no lixão, também surgiu da terra uma garrafa de vidro usada para água gasosa com a inscrição, em alto relevo, “To the Royal Family” (para a família real). 
Também há moedas de várias épocas.

Até o fim do ano, todos os buracos serão fechados provisoriamente com um material de proteção, para que as partes do futuro túnel do metrô possam ser estocadas. A fábrica dos arcos deve terminar sua produção apenas em 2015. Em 2016, as trincheiras serão reabertas para captação de novos objetos históricos. Depois, o Iphan escolherá o destino do material. Superintendente do Iphan no Rio, Ivo Barreto diz que a riqueza arqueológica do sítio do matadouro surpreendeu. Segundo ele, há conversas iniciadas com o governo estadual sobre a criação de um centro de arqueologia que abrigue novas descobertas, inclusive as do matadouro, e trabalhe aliado a universidades:

— É viável pensar num processo de desenvolvimento que não abale a memória do Rio, e isso é demonstrado com clareza no matadouro. Ali é feita uma obra importante, foi encontrada uma solução viável para proteger o sítio e continuar depois o trabalho. O acervo do matadouro tem uma escala que não esperávamos, felizmente.
Subsecretário estadual da Casa Civil, Rodrigo Vieira conta que os prazos curtos da obra conviveram bem com a pesquisa:

— Fomos ajustando nossos cronogramas para atingir um objetivo comum entre redescobrir e preservar a História e fazer uma linha de metrô que atenderá 300 mil pessoas por dia.

Tesouro do Valongo ainda está em contêineres

O cruel cotidiano de pelo menos 500 mil escravos que chegaram ao Brasil pelo Cais do Valongo, na Zona Portuária, foi detalhado num trabalho arqueológico de equipes do Museu Nacional, iniciado em março de 2011, durante as obras da primeira fase do Porto Maravilha. Depois de concluída a obra, há quase um ano, milhares de objetos ficaram guardados em contêineres na Praça dos Estivadores, também na Zona Portuária. Reportagem do GLOBO de janeiro deste ano mostrou que as peças estavam armazenadas precariamente, expostas ao tempo. O material foi guardado depois, mas continua em contêineres e só deve ser transferido em dezembro.

O Instituto Rio Patrimônio da Humanidade anunciou, em julho, que os objetos do Valongo poderão ser vistos pelo público até o fim deste ano, quando o Centro Cultural José Bonifácio será reinaugurado num casarão da Gamboa, depois de ser restaurado a um custo de R$ 3,4 milhões. São cachimbos, amuletos e pulseiras, entre outros objetos que serão expostos em mostra permanente no centro, que fará parte do Circuito Histórico e Arqueológico de Celebração da Herança Africana.



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