Ronaldo Rogério de Freitas Mourão*
Vinicius de Moraes inspirou-se no céu em diversos períodos de sua vida literária. Seria curioso saber quais poderiam ter sido os seus reais conhecimentos de astronomia. Quais teriam sido as condições ambientais que o conduziram à utilização dos astros como meio de expressão, com o objetivo de elaborar imagens e, às vezes, para transmitir sensações e sentimentos. Imediatamente, pela leitura de sua crônica Menino da Ilha, descobre-se que desde cedo tinha uma enorme atração para a contemplação celeste:
"Quando não havia luar era mais lindo e misterioso ainda. Porque, com a continuidade da mirada, o céu noturno ia desvendando pouco a pouco todas as suas estrelas, até as mais recônditas, e a negra abóbada acabava por formigar de luzes, como se todos os pirilampos do mundo estivessem luzindo na alta esfera. Depois acontecia que o céu se aproximava e eu chegava a distinguir o contorno da galáxia, e estrelas cadentes precipitavam-se como loucas em direção a mim com as cabeleiras soltas e acabavam por se apagar no enorme silêncio no infinito. E era uma tal multidão de astros e tremeluzir que, juro, às vezes tinha a impressão de ouvir o burburinho infantil de suas vozes. E logo voltava o mar com seu marulhar ilhéu, e um peixe pulava perto, e um cão latia, e uma folha seca de amendoeira era arrastada pelo vento, e se ouvia a tosse de Augusto, longe, longe. Eu olhava a casa, não havia ninguém, meus pais dormiam, minhas irmãs dormiam, meu irmão pequeno dormia mais que todos. Era indizivelmente bom".
As noites estreladas da Ilha do Governador em sua juventude, na época muito pouco iluminada pelas luzes elétricas, aliaram-se, no seu espírito curioso e observador, a um conhecimento astronômico elementar, assim como a uma precisa noção do vocabulário relativo aos corpos celestes, como se comprova pelo estudo dos termos empregados com o seu exato significado.
Um prolongamento desse sentimento encontra-se no poema Pescador, quando após informar ter sido um contemplador do céu noturno, do céu sem Lua (melhor época para observar as estrelas), confessa: "Quando eu olho no céu fico tonto de tanta estrela". Logo em seguida, no mesmo poema, relata um dos mais belos espetáculos que só aqueles que vivem voltados para as indizíveis ocorrências celestes já tiveram oportunidade de registrar. Trata-se do aparecimento matutino do planeta Vênus no mar:
"Ouve, eu não peço nada no mundo, eu só queria a estrela
Porque ela sorri mesmo antes de nascer, na madrugada.
Oh, vai no horizonte, pescador, com tua vela tu vais depressa
E quando ela vier à tona, pesca ela para mim depressa, pescador?"
Um dia, Vinicius quer partir à procura da liberdade:
"Quero ir-me embora pra estrela
Que vi luzindo no céu
Na várzea do setestrelo"
Aqui setestrelo é o mais belo dos aglomerados abertos visíveis a olho nu, durante os meses de verão, quando, então, surge como uma nuvem leitosa de sete estrelas. O nosso poeta da Garota de Ipanema parecia reconhecer com facilidade as estrelas no céu. Assim, citou inúmeras vezes em seus poemas as constelações e estrelas pelos seus nomes próprios, indicando sempre a sua exata localização. Ao viajar para o Hemisfério Norte teve a sua curiosidade voltada para o céu boreal, tendo logo procurado a sua principal atração, a Estrela Polar, à qual iria dedicar dois poemas. Num deles, escrito a bordo do Highland Patriot, no Oceano Atlântico, a caminho da Inglaterra, em 1938, escreveu seus primeiros versos de descoberta da Estrela Polar:
"De repente o mar fosforeceu, o navio ficou saliente
O firmamento lactesceu todo em poluções vibrantes de astros
E a Estrelinha Polar fez pipi de prata no atlântico penico"
Em sua poesia escrita em Oxford, as referências astronômicas não têm a coloração viva do contemplador celeste da Ilha do Governador; talvez, em virtude das condições atmosféricas. No entanto, a Lua foi sempre uma constante em sua poesia.
Em Los Angeles, nos fala de Alfa e Beta do Centauro que vira no céu, quando ficou esperando até o amanhecer o Cruzeiro do Sul que sabia não iria surgir. Suas noções astronômicas parecem ter sido muito bem fundamentadas nos cursos de cosmografia que ainda existiam na época em que estudou.
Das estrelas binárias e da origem do universo encontramos estes versos:
"Como duas estrelas que gravitam
Juntas para, depois, num grande abraço
Rolarem pelo espaço e se perderem
Transformadas na magna incandescente
Que milênios mais tarde explode em amor
E da matéria reproduz o tempo
Nas galáxias da vida no infinito".
Com relação à origem da vida, supôs em um dos seus versos que nós seríamos talvez "polos infinitamente pequenos de partículas cósmicas em queda invisível na Terra". Assim define o poeta a criação do homem numa referência à teoria da panspermia de Svante Arrhenius do século passado, e atualmente revivida por Fred Hoyle, que acredita que a vida tenha sido transportada para o nosso planeta por intermédio das moléculas orgânicas que existem nos cometas.
Até a própria noção moderna dos "buracos negros" surge em sua poesia:
"Veio de longe; e o meu amor despenhou-se do vácuo
Como um negro sol incendido, varando milênios
Da solidão e desencontro, recuperando
Infinitos perdidos, espaços
Abandonados, arrastando no seu vértice
Astros sem luz, estrelas moribundas
Mundos sem manhã".
Um dos astros que maior impacto produziram em Vinicius foi a Lua. Utilizou várias vezes em seus poemas a velha noção de indicar Lua em substituição ao mês como unidade de contagem de tempo: "Aquela que dormirá comigo todas as luas". Aliás, a Lua assume, em Vinicius, a imagem consoladora da noite, imagem feminina do amor carnal que no nosso poeta teve sempre uma conotação das coisas mais puras do universo. Para as mentes puras não existe nada impuro; assim foram todos os seus amores, sempre assumidos e jamais escondidos.
A noção de infinito, assim como a Lua, desempenhou uma importância enorme na poética de Vinicius, em particular, se considerarmos os sucessivos papéis que essas ideias irão assumindo gradativamente na sua evolução. Poderíamos encontrar motivos e interpretações de ordem psicológica. Para nós, entretanto, tais imagens parecem na realidade uma consequência do temperamento contemplativo, aliado a uma enorme capacidade de amar sem preconceitos, que caracterizou toda a sua vida e sua poesia.
Aliás, convém notar que, no início, na adolescência, quando, na Ilha do Governador, contemplava o céu, a ideia do infinito lhe transmitia um notável sentimento de paz:
"Havia ocasiões em que adormecia sem dormir, numa semiconsciência dos carinhos do vento e da água no meu rosto e nos meus pés. É que vinha-me do infinito uma tão grande paz e um tal sentimento de poesia que eu me entregava não a um sono, que não há sono diante do Infinito, mas a uma lacrimoso abandono que acabava por raptar-me de mim mesmo".
Já em seu primeiro livro, O caminho para a distância, vamos encontrar em Vinicius em que a contemplação das belezas do céu iriam começar a provocar o enorme desespero que se acentuaria com o correr do tempo em face desse universo infinito, e cujo primeiro sinal está muito bem caracterizado neste verso do poema Revolta.
"O mundo é bom, o espaço é muito triste...".
Para ainda compreender melhor essa nova influência da noite em Vinicius é necessário ler o poema Vigília, onde diz:
"Eu às vezes acordo e olho a noite estrelada
E sofro doidamente
A lágrima que brilha nos meus olhos
Possui por um segundo a estrela que brilha no céu".
Parece que foi depois de suas viagens que as noites estreladas, assim como a ideia do infinito, começaram a lhe provocar uma enorme sensação de angústia e solidão "como o olhar longo e claro de uma mulher". É no gemido de angústia de todas as noites que Vinicius vai encontrar a presença dos ausentes num céu, onde "se desprende a face maravilhosa de Canopus".
O horror e o pânico dos espaços interestelares conduziram o nosso poeta a estes versos, onde muito bem define para os sentimentos populares a difícil noção de infinito:
"Como dois acrobatas
Subamos, lentíssimos
Lá onde o infinito
Nem mais nome tem
Subamos!"
Nessa sua viagem acrobática ao céu, encontramos uma outra demonstração de pureza de seus sentimentos ao escrever que desejava possuir sua amada, despojando da carne, depois de passar "diante do véu de Betelgeuse, pelo país de Altair, subindo pelo grande mar de estrela onde dorme a noite".
Os grandes impactos da era tecnológica, registrados em seus versos, são a bomba atômica e a conquista da Lua. Esses dois feitos foram imortalizados em versos, onde surgem o planeta Vênus e a Via Láctea ao lado da célebre equação de Einstein e = mc2.
"Oh energia, eu te amo, igual a massa
Pelo quadrado da velocidade
Da luz! alta e violenta potestade".
Em Roma, o lançamento, em 1955, pelos soviéticos, da cadela Laika em órbita provocou e ampliou o temor ao espaço, sinônimo em seus poemas de angústia e da solidão:
"Uma cachorrinha
Girando no espaço
Sozinha, sozinha
Girando no espaço".
A influência da conquista espacial não lhe fez perder o temor do infinito, quando ao analisar em crônica os efeitos dos Luniques lembra o "poema que tiveram a temeridade de olhar o infinito". A ideia do infinito marcará toda a vida de Vinicius, que atingiu o auge dessa conceituação na obra-prima que constitui o soneto O verbo do infinito:
"Ser criado, gerar-se, transformar
O amor em carne e a carne em amor; nascer
Respirar, e chorar, e adormecer
E se nutrir para poder chorar
Para poder nutrir-se; e despertar
Um dia à luz e ver, ao mundo e ouvir
E começar a amar e então sorrir
E então sorrir para poder chorar.
E crescer, e saber, e ser, e haver
E perder, e sofrer, e ter horror
De ser e amar, e se sentir maltido
E esquecer tudo ao vir um novo amor
E viver esse amor até morrer
E ir conjugar o verbo do infinito...
* Ronaldo Rogério de Freitas Mourão,astrônomo, é autor do livro 'O livro de ouro do Universo'.
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