“A loucura entre nós” rompe as grades entre os que estão dentro e fora do manicômio
Franco Basaglia, psiquiatra italiano que revolucionou a Reforma Psiquiátrica, afirma em sua frase mais célebre que virou a principal bandeira da luta antimanicomial: “Para que não se esqueça, para que não mais aconteça, por uma sociedade sem manicômios!”. Para a humanização do tratamento de saúde mental é preciso extinguir os hospitais psiquiátricos e sua concepção asilar. No filme “A loucura entre nós”, de Fernanda Vareille, as grades que encarceram, ao mesmo tempo, abrem mentes daqueles que vivem fora dos manicômios. Numa narrativa de histórias fortes, a sutileza é convidativa e, ao mesmo tempo, visceral.
Depois dos anos 1980, a saúde mental no Brasil também teve grandes mudanças com o surgimento da RAPS (Rede de Atenção Psicossocial) para substituir os maus tratos e a política de trancafiamento silenciador dos manicômios. Mas infelizmente os mesmos ainda não foram totalmente sublimados, devido a uma série de interesses de empresários, políticos e, principalmente, da indústria farmacêutica. No documentário de 78 minutos, a câmera revela o Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira (fundado em 1892) de dentro para fora, dando voz e um olhar especial a essa parcela da população que é muito pouco ouvida pela sociedade.
Por décadas o louco foi retratado no cinema, fotografia e outras artes como alguém que tem que viver enclausurado, estereotipado, descreditado, com sintomas muito mais latentes devido aos efeitos adversos das medicações fortíssimas e terapias desumanas como eletrochoque e lobotomia do que pela própria loucura. Porém, no filme, Vareille consegue mostrar a realidade da clausura de forma crítica, apontando os vícios do sistema e, principalmente, sua ineficiência.
Em “A loucura entre nós” são discutidos temas pertinentes a realidade das pessoas institucionalizadas como a autonomia que lhes é tirada no momento em que passam a viver num hospital, as dificuldades da família para o cuidado, agravada principalmente pela falta de conhecimento do assunto e pela própria situação financeira vulnerável; o impacto das medicações diárias e vitalícias na vida dos paciente; a subjetividade de cada um; o aspecto questionador da loucura – a medida que se passa a não mais fazer questão de seguir as convenções sociais – e, principalmente, humaniza a figura do louco através de suas vozes, canções, expressões e histórias de vida.
Os personagens reais do documentário revelam seus anseios, desejos e delírios de forma muito honesta, levando o espectador a questionar o que é a loucura e quais os impactos negativos do modelo asilar para o “interno”. As personagens mais fortes são as femininas que norteiam o filme de formas marcantes; alegres ou muito dolorosas, as vezes até fatais. Essa delicadeza do universo feminino, concomitante, com a força e fibra delas é o marco da narrativa. A fotografia é crua, onde a câmera é um personagem revelador, ele inspira confiança aos depoentes que a usam como um espaço para verbalizar suas angustias, desejos e alegrias. As grades do Juliano Moreira são palco de vários depoimentos espontâneos e momentos de cada um. Sua presença é muito forte no filme.
Infelizmente, os manicômios ainda são uma realidade e enquanto eles existirem, o tratamento psicossocial não alcançará sua máxima potência, por isso, esse filme é de extrema importância, principalmente nesse momento de tantos retrocessos políticos e econômicos para a saúde mental no Brasil. Parabéns a equipe e vida longa a “A loucura entre nós”!
Por Rafaela Uchoa
sabe dizer onde tá passando Dimitri?
ResponderExcluir