sábado, 4 de julho de 2015

A INDEPENDÊNCIA E O AEROPORTO

ORLANDO SENNA

A Bahia festejou ontem sua data magna, 2 de julho, celebrando ao mesmo tempo 192 anos de independência do Brasil. No dia 7 de setembro, o Brasil inteiro estará celebrando 193 anos da mesma independência. A diferença entre as datas da independência encontra a resposta na História. Quando Pedro I declarou o Brasil independente de Portugal, em setembro de 1822, em São Paulo, forças portuguesas resistiram à separação nas províncias da Bahia, Maranhão, Piaui, Pará e na Provincia Cisplatina (hoje Uruguai). É a Guerra da Independência do Brasil, com cerca de 3 mil mortos e número não registrado de milhares de feridos e desaparecidos.
O maior número das baixas ocorreu na Bahia, onde um movimento independentista já acontecia antes da atitude de Pedro I. Foi a Guerra da Independência da Bahia, gerada pela decisão do brigadeiro Madeira de Melo, chefe militar e administrativo da província, de separar a Bahia do Brasil que se libertava e mantê-la como possessão portuguesa. Guerra cruenta, terrível, que durou um ano e culminou com a expulsão das forças armadas portuguesas (exército e marinha) em julho de 1823. Castro Alves, Ode ao Dois de Julho: “Na selva escura da fumaça atroz / Tonto de espanto, cego de metralha / O arcanjo do triunfo vacilava / E a glória desgrenhada acalentava / O cadáver sangrento dos heróis”.
A resistência era formada por jovens combatentes nativos (ou seja, brasileiros) e também portugueses, vaqueiros e agricultores, escravos libertos ou fugidos de outras regiões e milhares de índios tupinambás. Quatro mulheres se destacaram como heroínas: a freira Joana Angélica (assassinada ao tentar impedir a invasão de seu convento por marinheiros portugueses, santificada pelos combatentes), a enfermeira Ana Neri (organizou e chefiou a logística médica durante o conflito), a escrava liberta Maria Felipa (com geniais ações de inteligência e sabotagem), a mulher soldado Maria Quitéria (super importante na organização do Exército Brasileiro).
Também heróis masculinos, como o Corneteiro Lopes, músico português aderido à causa brasileira, que deu a vitória aos baianos ao desobedecer a ordem de tocar a Retirada e tocar Avançar Cavalaria Degolando. Foi na batalha decisiva de Pirajá, com o nascente Exército Brasileiro e os índios em minoria e sendo massacrados. Ao ouvir o toque, os portugueses pensaram que os baianos haviam recebido reforços e foram eles a debandar em pânico. A derrota portuguesa na Bahia consolidou militarmente a independência e, portanto, os baianos consideram que o 2 de julho de 1823 é tão importante como o 7 de setembro de 1822.
Durante a guerra da Bahia o Exército Brasileiro nasceu e deu seus primeiros passos e venceu seu primeiro desafio. A organização da força militar, por ordem de Pedro I, floresceu a partir dos grupos de ativistas jovens, principalmente estudantes, com militares saindo da adolescência alçados a postos de comando. Em seguida sob a batuta do general francês Labatut, ex-guerreiro de Napoleão e Simón Bolívar. Foi o primeiro exército da Era Moderna a aceitar mulheres em suas fileiras regulares (caminho aberto pela alferes Maria Quitéria). É essa história que está entranhada no pertencimento e no imaginário do povo baiano, que a festeja todos os anos com o desfile do Caboclo e da Cabocla matando dragões com lanças, o símbolo da vitória.
Essa imagem, principalmente a Cabocla, está para o Dois de Julho como a cena do príncipe com a espada erguida, o “Independência ou Morte”, para o Sete de Setembro. Cabocla é a versão portuguesa da palavra tupi kareuóka, cor de cobre, e designa miscigenação de brancos com índios, os mamelucos. Com o andar do tempo a palavra passou a designar também a miscigenação de índios com negros (os cafuzos), contanto que alguma característica indígena, como a pele acobreada por exemplo, seja aparente. A efígie mais comum da Cabocla do 2 de julho é uma mulher de pele negra com traços e adereços indígenas.
Essa matriz histórico-mitológica da cultura baiana, presente até no Hino do Senhor do Bonfim (“nossos pais conduziste à vitória pelos mares e campos baianos”), tinha como seu maior monumento o Aeroporto Internacional Dois de Julho de Salvador, assim batizado no início da década 1950. Era a propaganda mais visível e chamativa da data magna. Em 1998 o presidente Fernando Henrique Cardoso mudou o nome do aeroporto para homenagear o filho do cacique político Antonio Carlos Magalhães, o deputado Luís Eduardo Magalhães. Foi um choque cultural para a maioria dos baianos.
Desde então há uma ininterrupta campanha para que o aeroporto volte ao nome original. São quase duas décadas de esforço inútil. A tentativa que acontece no momento é um projeto da deputada federal Alice Portugal para restituir o nome do aeroporto, iniciativa vigorosamente combatida e obstruida pelo DEM, o partido de direita em processo de encolhimento, a essa altura quase um nanico. Para o DEM é uma questão de honra (!) não permitir que os baianos exerçam o direito de fazer valer sua cultura. Alice Portugal não vai desistir, mas está precisando de um apoio popular explícito, de manifestações nas ruas baianas, de agitação nas redes sociais. Os símbolos expressam a identidade de um povo, tentar obstruí-los é um crime que se aproxima do “genocídio cultural”, conceito legal vinculado ao etnocídio, linguicídio, aculturação forçada e outras barbaridades. 

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