quinta-feira, 23 de julho de 2015

A ARTE DE ACABAR

COM A MEMÓRIA!


Memórias de um chafariz revitalizado

ÉPOCA fez uma crônica para imaginar o que o leão de concreto da cidade de Ibitinga (SP) diria depois da operação para restituir suas funções hidráulicas e estéticas

HARUMI VISCONTI (TEXTO) E LIUCA YONAHA (EDIÇÃO)

Eu estava expelindo água verde há quase 20 anos. Talvez uma infecção? Problemas comuns para um quase centenário? Resolveram me ajudar. Os técnicos da prefeitura vieram dar o diagnóstico: problema hidráulico. Disseram que a solução era uma revitalização. Meus irmãos aqui do meu lado passariam pela mesma operação. 
Apesar de não conseguir me mexer, escuto e enxergo muito bem. Disseram, quando iam começar os procedimentos, que essa tal revitalização era uma restauração. Opa, essa palavra eu me lembro de ter ouvido em algumas conversas aqui na Praça Rui Barbosa! Outro dia, um casal sentou bem pertinho, na beirada do chafariz, e comentou sobre uma senhora que resolveu “restaurar” uma imagem antiquíssima de Jesus Cristo. O resultado, segundo a moça, ficou um desastre. Quando ela mostrou a foto para o namorado quase engasguei com a água. Aquilo era uma restauração? 
Se eu não fosse de concreto, meus pelos teriam eriçado com certeza. Tentei rugir e balançar minha juba em forma de protesto, mas foi em vão. Foi questão de tempo para que um pincel começasse a me pintar de amarelo. Logo eu, tão acostumado a ser cinza. Para piorar, eles passaram uma tinta escura no meu nariz e as cerdas do pincel ficavam entrando nas minhas narinas. Quase espirrei.
Quando a reforma ficou pronta, bateu um desconforto. Senti que tinha alguma coisa errada. Poxa, eu sei que precisava de recauchutada. Depois de quase cem anos, ninguém é de ferro – nem mesmo eu, feito de concreto. As marcas da idade, as rachaduras, começaram a aparecer. Mas eu queria algo discreto, que mantivesse a minha essência, sabe? Pode chamar de alma felina. Foi complicado aceitar esse novo eu. Não consegui falar com meus irmãos, porque eles todos estão de costas para mim. Mas sei que sentiram o mesmo. Aliás, quase não os reconheço!
Algumas horas depois da reforma, que também colocou novos azulejos na base do chafariz, os moradores começaram a olhar para nós preocupados. A prefeitura mostrou no Facebook meu "Antes e Depois". Tenho 98 anos, mas tô ligado e sei que essa foto viralizou. Já tem mais de mil curtis, compartilhamentos e comentários. Virei motivo de piada! Estão dizendo que faço parte do chafariz mais feio do Brasil!
Soube que o pessoal da ÉPOCA resolveu apurar a história com as autoridades. A assessoria de imprensa da Prefeitura de Ibitinga disse que a prefeitura ficou bastante feliz com a repercussão da história e que não vai modificar a obra. Ou seja: vou continuar amarelo e laranja – sim, minha juba está cor de abóbora. A prefeitura afirmou que as críticas fazem parte da democracia e que é fantástica ver as pessoas discutindo tão a sério o patrimônio histórico da cidade. Segundo eles, foram mais de 180 mil visualizações em menos de 24 horas nas redes sociais. Depois, a prefeitura até publicou uma nota no Facebook (leia a íntegra abaixo).
Natália Tucci, bisneta do meu criador, o arquiteto Rosalbino Tucci, pronunciou-se em minha causa. Fiquei honrado. Para ÉPOCA, disse: “A cidade está meio acabada. Faz tempo que está um esculacho. Cada prefeito que entra pinta a cidade da cor dele. [O chafariz] Já perdeu as características há muito tempo. Mas dessa vez eles passaram dos limites”. No Facebook, Natália, que é arquiteta, me tirou minha dúvida sobre essa restauração: "Restaurar é resgatar os traços da obra, não tem nada a ver com este borrão colorido". Então, o que fizeram comigo não foi uma restauração. Foi?
Nota da Prefeitura de Ibitinga sobre a restauração da Praça Rui Barbosa
"A ‘Praça Rui Barbosa’, localizada na área central da cidade estava em péssimo estado de conservação.
O chafariz estava com a parte hidráulica depauperada, com a parte elétrica inexistente e a fonte não funcionava há anos, em todo este tempo limitou-se apenas a aplicar camadas e camadas de tintas, deformando a escultura original, sem a preocupação de colocá-la em funcionamento.
Esta administração preocupou-se em revitalizar, não apenas o chafariz, mas toda a praça, construindo novos sanitários, promovendo o plantio de mudas e recuperando a pintura de todas as construções ali existentes, atendendo aos anseios da população.
Em relação a fonte recuperamos toda a parte hidráulica e elétrica; o guarda corpo que estava totalmente danificado, com pichações e que, por ser baixo era fonte de risco para as crianças; fizemos a impermeabilização e o assentamento de pastilha.
De se esclarecer que a parte central do chafariz, onde estão os leões, não teve a sua estrutura alterada foi limpada e repintada, sendo preservada integralmente.
O local não é tombado como patrimônio histórico, mas nos preocupamos em deixá-lo em estado que dê para ser utilizado pela população, pelas famílias e pelos turistas, devolvendo ao povo, este importante patrimônio que estava completamente abandonado.
Quanto aos comentários na rede social nosso posicionamento é que vivemos em um estado democrático, onde é livre a manifestação de pensamento e ficamos felizes por receber opiniões diversas, umas com fundamentos, outras com total desconhecimento dos serviços realizados, sendo que a maioria dos comentários são de pessoas de fora de Ibitinga, e respeitamos todas as opiniões.
Vai aqui o convite para que quem não conhece venha até a nossa Estância Turística, a ‘Capital Nacional do Bordado’."

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