Camilo Aggio
Professor da Faculdade de Comunicação da UFBa
Façam o teste. A ética do trânsito soteropolitano pode ser traduzida com a seguinte descrição - ou experiência sociológica, se preferirem: numa via de três faixas, dirijam na faixa do meio. Ao avistarem um retorno, olhem pelo retrovisor. Tem um carro à esquerda a 50 km/h. Liguem a seta indicando que pretendem mudar para a faixa da esquerda a fim de pegar o retorno. Olhem pelo retrovisor de novo. Aquele carro, antes a 50Km/h, agora está a 70 km/h ou mais.
Tem um mal que acomete a nossa querida Salvador e não se restringe só ao exemplo acima. Também se faz presente nas virtuais filas de ônibus, nos supermercados, lojas, casas de show, ou seja, onde quer que tenhamos de lidar com a presença de outras pessoas: as relações cotidianas, em espaços públicos, parecem ser orientadas por uma regime ininterrupto de competição. No exemplo do trânsito, é o sujeito que não admite que alguém entre em sua frente. Cortesia torna-se sinônimo de ser passado para trás, de ser vencido pela esperteza alheia. Nas filas de ônibus, não rege a regra da justiça da ordem de chegada, mas de quem tem mais disposição para ingressar numa guerra de ombros que se digladiam por uma chance de chegar primeiro em um assento.
Trata-se de competir sempre e isso se difunde nas mais variadas práticas e contextos do cotidiano. E o que está por trás, como fundamento, é o fato de não considerarmos e respeitarmos pouco o outro. No convívio mais restrito de condomínios, por exemplo, a regra que impera é a de vizinhos não se constrangem em utilizar a área comum dos seus edifícios para celebrar, festejar e, claro, compartilhar as músicas mecânicas ou executadas ao vivo em suas festas, em médio ou alto volume, com os outros condôminos e a vizinhança ao redor.
No geral, a percepção assustadoramente naturalizada é a de que impor o som da sua festa ao outro é um direito e, quem vai de encontro a isso, por lógica, viola tal direito. Ou seja, inverte-se a lógica: não é o sujeito que tem seu direito aos silêncio violado pela imposição da presença de uma música na privacidade do seu apartamento aos fins de semana, impedindo-o de descansar ou exercer qualquer outra atividade que exija introspecção, concentração e, claro, que demanda algum silêncio. Obras e uso de furadeiras, assim como bater uma singelo prego na parede, não são permitidos pois perturbam o silêncio dos vizinhos. Já música...
Um conhecido me relatou que levou essa questão a uma reunião de condomínio. Disse que alguns presentes, na tentativa de acharem um "consenso" para o problema, chegaram a dizer ou a concordar que um comunicado prévio de que haverá uma festa com música na área comum no fim de semana resolveria o problema. Ou seja, o sujeito, ciente do que estaria por vir, se planejaria para estar ausente de sua própria residência em razão da perturbação alheia, pelo tempo de duração da festa, ou poderia se equipar com protetores auriculares. Trocando em miúdos, a expressão “os incomodados que se mudem” nunca foi tão literal e as regras do bom convívio em comunidade nunca valeram tão pouco.
Os exemplos citados parecem, à primeira vista, diferentes, mas não são. Fazem parte do mesmo problema e deveriam ser objeto de reflexão de todo e qualquer soteropolitano, independentemente de cor, credo ou classe social. A naturalização da desconsideração e desrespeito ao outro, que se torna invisível quando o que interessa são nossos interesses e necessidades, é um dos grandes males sociais contemporâneos que envenenam o convívio social.
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