segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

O MILAGRE E O DRIBLE DA VACA


Marcelo Torres

“Arsenal fez milagre e até o drible da vaca, mas o Tottenham venceu”. Foi exatamente esta a manchete de final de semana de um dos portais de notícias, sobre o clássico do futebol inglês.  

“O Tottenham sofreu, levou um gol - com direito a drible da vaca - e viu o goleiro adversário fazer verdadeiros milagres”, dizia a matéria. “Mas Harry Kane apareceu, fez dois gols e virou o jogo”.

Eis aqui duas expressões curiosas do linguajar da bola: o drible da vaca e o verdadeiro milagre, frases que nós, amantes do esporte bretão, nos acostumamos a ouvir na crônica esportiva.

Narradores, repórteres e comentaristas de futebol sempre recorrem a uma figura de linguagem - a hipérbole – quando se referem a defesas difíceis do guarda-metas, evitando os tentos adversários.

- O goleiro fez um verdadeiro milagre.

Há quem vá além e diga ou escreva que o goleiro “operou” um milagre ou verdadeiro milagre. Na última copa, por exemplo, após um Brasil 0x0 México, a manchete era: “Goleiro do México opera milagres e evita vitória do Brasil”.

Curioso é que, embora a função do guarda-meta seja tida como ingloriosa – “no local onde ele pisa não nasce grama”, dizem – parece que, de todos os onze jogadores, o único que opera milagres em campo é ele, o goleiro.

Para ficar apenas em um exemplo, o Palmeiras teve por anos e anos um arqueiro que, de tanto fazer (ou operar) verdadeiros milagres, não era apenas um ídolo, ele passou a ser chamado de santo – São Marcos.

A outra expressão usada na manchete – o drible da vaca – é mais uma frase excêntrica e graciosa do futebol. Mas o que vem a ser o drible da vaca? – talvez indaguem aqueles que não simpatizam com o jogo de bola.

Se tomarmos as três palavras ao pé da letra, a expressão significaria “um drible aplicado por uma vaca”. Ainda assim restaria uma nova dúvida: a vaca – aquela coisa pesada e desengonçada - driblou quem?

No tempo de menino, às vezes eu via uma vaca a driblar vaqueiro, obviamente sem bola, nas terras dos meus avós. Ela corria por um lado, freava, dava um giro e seguia pelo outro.

A vaca, porém, sempre perdia, pois logo adiante se via laçada nos chifres por uma corda e cercada por homens e cavalos. Ela, a vaca, parecia adivinhar para onde seria levada dali a pouco.

No futebol, porém, o drible da vaca é outra coisa: o atleta joga a bola por um lado do adversário e corre para pegar a pelota pelo outro lado. O jogador driblado não consegue parar nem a bola nem o adversário.

A expressão, tudo indica, surgiu no início do futebol no Brasil, quando alguns campos de peladas ficavam em pastagens, onde às vezes alguma vaca entrava para comer, sendo driblada desse jeito pelos peladeiros.

Um atleta que gostava de aplicar o drible da vaca foi o lendário Garrincha, que também contava histórias das peladas que jogou – em meio a vacas – na sua terra natal, Pau Grande, no Rio de Janeiro.

Mas o drible da vaca mais famoso é também o mais célebre gol-que-Pelé não fez. Foi na Copa do México, em 1970, num duelo Brasil X Uruguai, quando o rei ficou frente a frente com o goleiro Mazurkiewicz, tendo a bola entre eles.

O lance inspirou um dos golaços da literatura brasileira atual, o romance “O drible”, de Sérgio Rodrigues. “É espetacular [no livro] a descrição do drible de Pelé no goleiro Mazurkiewicz”, disse Tostão, o armador da jogada.

Certa feita o escritor uruguaio Eduardo Galeano disse que a beleza do futebol “é a capacidade de surpreender, de provocar assombro, de permitir o milagre”. Aquele drible da vaca uniu tudo isso – a surpresa, o assombro e o milagre.

No lance do Rei Pelé sobre o goleiro Mazurca fez-se a mistura das duas coisas: houve o drible da vaca e ocorreu um verdadeiro milagre. E deve ter sido um sopro divino, pois, se aquela bola entrasse, Pelé seria Deus.

Marcelo Torres (marcelocronista@gmail.com

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