- Você reclama de andar pelo Pelô?
- Pelo Pelô?
- Sim, por aquele calçamento do Pelourinho.
- Eu não ando lá.
- Mas já deve ter andado.
- Na verdade, faz é tempo que tive lá.
- E reclamou das pedras?
- Por que haveria de reclamar?
- Pelo desconforto, talvez.
- Quando fui, isso já faz tempo, botei uma sandália.
- Mas, mesmo de sandália, achou desconfortável?
- Sinceramente?
- Sinceramente.
- Hummm... Não lembro.
- Eu acho interessante isso.
- Isso o quê?
- De ninguém reclamar.
- Mas, meu caro, me diga uma coisa. Aliás, três: 1) Aonde o reclamante protocolaria a reclamação? 2) O que esse órgão ouvidor poderia fazer? 3) Por acaso é possível tirar aquelas benditas pedras de lá?
- Veja bem, as pessoas reclamam quando chove, não reclamam?
- Reclamam.
- Aí eu lhe pergunto: em que órgão vão reclamar da chuva? Por acaso vão até a porta do céu protocolar a queixa a São Pedro?
- Não vão, reclamam aqui mesmo.
- Então! A chuva não vai parar se alguém reclamar, mas todo mundo aqui em Salvador reclama.
- Também, pudera, né? Vamos combinar: cai uma gota de chuva e a cidade vira um caos.
- Chuva em cidade grande é a indesejada das gentes. Mas, no interior, ela é uma bênção.
- Sinceramente, não sei aonde você quer chegar.
- É que ontem descobri uma coisa que me fez puxar esse assunto.
- E o que foi que você descobriu assim de tão importante?
- Eu descobri como são chamadas aquelas pedras.
- As pedras do Pelourinho?
- Sim, as pedras do Pelô. Você por acaso sabe o nome delas?
- Não faço a menor idéia.
- Você é daqui e não sabe?
- Não sei, ora! Não posso não saber?
- Aquelas pedras ali são chamadas pedras cabeça de negro.
- Cabeça de negro?
- Sim, cabeça de negro. É mole uma porra dessa?
- É... De fato...
- Nos tempos coloniais, aquelas pedras vinham no lastro dos navios.
- Certo.
- Aqui chegavam embaixo do navio.
- Sim.
- A embarcação ganhava mais equilíbrio, sabe?
- Sei.
- Ganhava maior estabilidade para aquelas viagens longas.
- Faz sentido.
- Depois que chegavam, elas serviam como calçamento.
- Certo.
- E quem as levava do navio para as ruas, e praças, e ladeiras acima
- Quem?
- Os negros, os escravos.
- E...?
- Levavam aquelas pedras na cabeça. Então daí surgiu cabeça de negro.
- Faz sentido.
- Mas também pode haver outros significados.
- Tipo...?
- Que o negro é cabeça dura que nem aquela pedra.
- É...
- Ou que a pedra é igual à cabeça do negro, preta e dura.
- É...
- Você me achou cabeça dura?
- Eu te conheci agora...
- Tudo bem. Tudo bem. Bom... Então você não reclama da cabeça de negro?
- Imagina!
- O que acho curioso é isso...
- Isso o quê?
- Você não reclamar por ter que pisar naquelas pedras.
- Eu...?
- "Você" é modo de falar. Quero dizer: ninguém reclamar por pisar em cabeça de negro.
- Deve ter quem reclame...
- Mas você, você mesma, não reclama. Ou reclama?
- Como eu te disse, já faz uma cara que fui lá...
- Reclamou ou não reclamou?
- Mas que importância tem isso? Que diferença faz se reclamei ou não?
- É que eu quero te chamar para irmos lá.
- Fazer o quê lá?
- Tirar umas fotos, andar um pouco. Temos uma hora ainda.
- Não. Não rola.
- Como "não rola"? Eu não estou te pagando?
- Você "já" me pagou, esqueceu? Mas se quiser me pagar de novo...
- Eu paguei duas horas, ainda temos mais de uma hora.
- Você pagou um programa de sexo, meu bem. Não foi programa turístico.
- Mas você anuncia como acompanhante! E também diz que faz todas as fantasias do cliente.
- Bom, vamos fazer o seguinte: você me paga mais 300 reais e eu vou com você nesse bendito Pelourinho.
- Não, não. Pensei melhor, deixa pra lá. Não vou pagar de novo. Pagar pra você pisar em cabeça de negro.
- Então já vou embora, pois preciso trabalhar.
- Tudo bem, vá lá.
(Este diálogo é totalmente fictício.) MARCELO TORRES
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