O caos urbano de Europa Paris
A princípio, seria interessante explicar rapidamente a origem e o conceito artístico que envolvem a Orchetre National de Jazz (ou ONJazz/ONJ), já que me parece incrivelmente inspirador a concepção de sua existência, assim como a do seu processo de criação. A orquestra que se conhece hoje já existe desde os anos oitenta, dado início em 1986, para ser mais exato. No entanto, a sua formação nunca foi a mesma desde então, o intuito da orquestra, em sua gênese até os dias atuais, é o de reformulação constante. Geralmente, a cada novo trabalho do grupo, é feito um processo de escolha para uma nova equipe composta de diferente nomes, assim como a seleção de um novo diretor artístico, esse responsável pela condução do espetáculo, assumindo um mandato que pode durar de 3 a 4 anos. Criada com o apoio do ministro da cultura francês Jack Lang, a ONJazz, desde então, recrutou inúmeras figuras importantes da música instrumental, não só francesa, para a elaboração de peças musicais extremamente sofisticadas e modernas, mas longe de serem inacessíveis ao grande público; assim como alistou vários produtores, jornalistas e sindicatos/organizações profissionais, tudo na expectativa de revitalizar a música dita não-clássica, em especial o jazz, sempre sob o ideal de repaginação, de mudança.
Nessa perspectiva, o novo trabalho do grupo, Europa Paris, obviamente possui uma nova gama de músicos extremamente habilidosos em sua composição, agora sob a regência do novo diretor artístico: o guitarrista e compositor Olivier Benoit, que faz desse trabalho um dos mais intensos e criativos que a música poderia proporcionar em 2014. Dividido em dois discos, Europa Paris é o início de uma trajetória musical que Benoit pretende tecer ao longo de seu mandato de 4 anos à frente da ONJazz, um trajeto que planeja percorrer países europeus que serão a cerne criativa do disco. A primeira jornada escolhida, como exposta no título do álbum, é a cidade de Paris, onde Olivier comanda uma representação musical particular sob a perspectiva do lugar onde vive e trabalha há mais de 20 anos. Mas por que a cidade de Paris? Em depoimento, no próprio site da ONJazz, Benoit responde à questão de certo modo um tanto apaixonado pela cidade:
“Principalmente porque é onde eu vivo! Venho trabalhando aqui há vinte anos! Nesse sentido, esta nova criação surgiu pela primeira vez do desejo de ter algum tipo de evidência, de “reflexão” ou manifesto, mostrando as coisas totalmente novas “que estão sendo jogadas” hoje, as coisas que são específicas para Paris como um grande mundo-capital para a cultura; Paris ainda atrai músicos de todos os horizontes, tanto geograficamente como estilisticamente.”“Hoje Paris é um cadinho, extraordinariamente inventivo, em muitos aspectos, e está em constante evolução. Esta orquestra é composta essencialmente de músicos que são parisienses por adoção, todos eles fortemente implicados na cena musical local exuberante; para mim, a orquestra idealmente demonstra os borbulhantes movimentos híbridos que sempre achei em espaço privilegiado das grandes cidades.”
Olivier Benoit consegue expor perfeitamente, nesse seu discurso eufórico, todo o turbilhão cultural parisiense exposto ao longo das 23 faixas que dividem o disco duplo; entretanto, o músico em momento algum cai no discurso estereotipado da música francesa inacessível, assim como da música jazz hierárquica pós-popularização sofrida do decorrer de sua própria história, na realidade Europa Paris trata-se de um trabalho contemporâneo, acima de tudo moderno, dando um novo torso ao seu contexto, à sua narrativa, diria até mesmo que sua feição dialoga tanto com os fãs mais tradicionais, quanto com os mais desacostumados com a música jazz, o refinamento aqui não se confunde com sinônimo pejorativo de complexidade, distanciamento; pelo contrário, é possível identificar em Europa Paris o contato, ainda que secundário, com vertentes mais populares da música, como o rock e o funk, não só em Europa Paris, mas também em outros discos. A própria ONJazz, por exemplo, já fez um disco-tributo ao Led Zeppelin, em 2006, chamado Close to Heaven: A Led Zeppelin Tribute.
Ainda em seu depoimento no site da ONJazz, Benoit explicita melhor a relação do disco, primariamente em sua jornada parisiense, com a capital francesa:
“Mas de uma forma mais essencial, Paris também me pareceu ser o arquétipo da cidade grande, um lugar para a definição de linhas de força e os grandes temas que eu gostaria de desenvolver, não só no meu trabalho como compositor, mas também na empatia com os músicos europeus envolvidos nesta série de “retratos”.Arquitetura e ambientes urbanos sempre me fascinaram, e assim, naturalmente, eu tenho uma ideia de uma vasta e complexa aglomeração, como Paris; eu vejo isso como uma espécie de extraordinário interlace dinâmico cujo movimento tem uma grande variedade de formas: o fluxo de suas iluminações, a sua rede de transportes, as multidões que se deslocam através de um labirinto de ruas, os estranhos caminhos tomados todos os dias por homens e mulheres que vão de um lugar para outro, com todos impulsionados por suas próprias necessidades, desejos e motivações íntimas… Então, cada grande cidade manifesta o seu próprio caos, e os arquitetos e planejadores de cidades se esforçam para torná-lo fluido, dar-lhe uma estrutura, organizá-lo e, ao final, de fato, reinventá-lo.Com esta primeira peça de Europa, eu olhei para os múltiplos fluxos que representam a realidade cotidiana de Paris. A música dá forma a esses movimentos, esses ritmos mais ou menos constantes, todas as cadências que eventualmente compõem um “mundo” que é altamente organizado, um mundo onde cada jogador, como uma partícula, encontra uma “raison d’être” (razão de ser, em francês), uma meta, e participa na elaboração do conjunto através de cunho exclusivo desse jogador. Como uma fotografia viva desta grande cidade executada pelos músicos da orquestra que pertencem a esta inspiração urbana, a pontuação desse repertório original não só revela a sua estrutura incomparável, mas também os força-campos gerados por cada elemento. E, no final, ele permite que o segredo poético de Paris possa ser capturado em sua totalidade.”
Esse testemunho final de Benoit sintetiza bem o corpo melódico e poético que Europa Paris possui, basicamente resume a viagem que Olivier procurou representar em sua obra, a de transparecer a realidade francesa além do ideal visto pelo senso comum, é a percepção do caos urbano presente nas grandes cidades, como exposto por ele, a anarquia próxima a de qualquer cidadão, de todas as metrópoles mundiais; no entanto, a exemplo de Paris, destacando as particularidades que às vezes transpassam até mesmo os próprios habitantes, que não conseguem notar na correria do dia a dia, é o caso do turista em seu próprio país, em sua própria cidade.
Benoit consegue criar um retrato sensível da capital francesa pela proximidade que a transfere ao ouvinte, da sua movimentação e fúria urbanas, todavia passando essa imagem delicada através da crueza sustentada pela grande metrópole, nos detalhes, principalmente àqueles que nunca a visitaram, assim como a face real exposta aos nativos parisienses, estrangeiros em seu ambiente natural. Um feito e tanto, além de uma das experiências mais imersivas e prazerosas que alguém poderia proporcionar em 2014, mal posso esperar pelas próximas viagens sensoriais que Olivier Benoit dará vida à frente dessa nova e incrível Orchestre National de Jazz. Minhas malas já estão prontas.
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