Estreia essa semana em
Salvador o filme “Timbuktu” do cineasta Mauritano Abderrahmane Sissako, indicado
para a Palma de Ouro no último Festival de Cannes e agora para os Oscars na
categoria de Melhor Filme Estrangeiro. Eu tive o privilegio de acompanhar a
trajetória desse filme, da sua escritura até sua montagem e posso testemunhar
que além de ser um dos mestres da cinema mundial, Sissako é também um cineasta
com uma das mais originais visões da sua arte. Ele não se considera como um
cinéfilo e sempre alegra as plateias quando conta que ingressou a prestigiosa
escola de cinema de Mosco, a VGIK, tendo assistido somente os filmes de caubói
da serie “Trinity”. Abderrahamane frequenta pouco as salas de cinema e por
consequência, trabalha sem referência estética ou vontade de inventar uma
linguagem, mas sim com o desejo de retratar seu povo como o conhece na sua luta
diária contra as forças politicas que tentam oprimi-lo. Bamako, seu filme
anterior, era a crônica de um processo judiciário imaginário levado por uma
comunidade Malinesa contra os economistas do Fundo Monetário Internacional. Timbuktu
retrata o período de 2012 quando os Jihadistas invadiram a cidade histórica do
Mali e impuseram a lei fundamentalista, obrigando as mulheres a se cobrir
inteiramente, e proibindo o tabaco, o futebol, e até a música num pais tão
musical na sua cultura. Para Sissako, a tragédia não procede somente da
ideologia mas também da ausência de diálogo entre as culturas. Uma das cenas
mais fortes de Bamako mostrava um homem velho chamado para testemunhar contra
os funcionários do FMI mas que prefere o silêncio ao vão discurso. Em Timbuktu,
os Jihadistas não conseguem se comunicar nem com a população nem entre eles e
chegam a recorrer ao inglês para se entender.
Sissako trabalha pouco com atores profissionais e procura integrar na
sua narrativa personagens encontrados na sua pesquisa, amigos, parentes e músicos
amados. Por esse motivo, o roteiro não
passa de um esboço, um espaço-tempo livre que vai evoluir em função dos encontros,
da cenografia, e da atuação dos seus personagens. Um dos elementos mais
perturbadores de TImbuktu é que os Jihadistas não são retratados como monstros essenciais
mas como ser humanos cegados pela religião, bonecos patéticos transformados em
monstros por uma ideologia terrível. Em oposição ao ridículo dos Jihadistas, o
drama destaca o papel das mulheres e quebra mais um preconceito sobre o Islam. Muçulmano, Sissako admira as mulheres, e em
todas suas obras, mostra a coragem, a beleza e a inteligência da gente feminina. São elas que resistem aos opressores. Uma dimensão
que foi pouco destacada pela imprensa internacional na estreia de Timbuktu foi
a ousadia e a coragem de ter gravado esse historia. Ao contrario de muitas
produções que tem o Saara como painel de fundo, Timbuktu não foi rodado no
Marrocos ou na Tunísia mas no coração do território alvo dos Jihadistas, por
parte no Mali e principalmente na Mauritânia.
Quando encontrei meu amigo logo depois da filmagem, fiquei chocado ao
ver o quanto ele tinha envelhecido em poucos meses, sempre preocupado com os
riscos enfrentados por sua equipe. Eu
conheci Abderrahmane em Salvador no final dos anos 2000 e sei que ele tem um
carinho especial para nossa Bahia onde apresentou seu terceiro longa
(“Esperando a felicidade”) e seu
penúltimo (“Bamako”), obras importantes que não conseguiram alcançar o circuito
comercial brasileiro por falta de interesse dos distribuidores pelo cinema
africano. Mas ele demostrou que o gosto do público as vezes ignora as fronteiras
e os preconceitos do mercado e “Timbuktu” já reuniu mais de sete centos mil
espectadores na França. Eu tenho
dificuldade para escolher uma cena ou outra desse grande filme mas alguns
diálogos vão residir em mim para sempre, por exemplo quando o Imam da mesquita
pergunta aos Jihadistas: “Cadê o perdão? Cadê a doçura? Cadê a piedade? Cadê a
compreensão?” Poucas semanas depois do atentado contra o jornal satírico
Charlie Hebdo, essa pergunta se tornou ainda mais relevante.
Bernard Attal, cineasta.
Matéria publicada no jornal A Tarde,
hoje,m sábado 23 de fevereiro.
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