A reforma do Rio Vermelho, pedras portuguesas e o desgosto da história
gil vicente tavares
Nasce um Deus. Outros morrem. A verdade
Nem veio nem se foi: o Erro mudou.
Temos agora uma outra Eternidade,
E era sempre melhor o que passou.
Esse primeiro quarteto do poema Natal, de Fernando Pessoa, lembrou-me, por esses dias, a Salvador do Século XX, que insiste em permanecer, até hoje, noutro milênio.
As discussões recentes, sobre a reforma do bairro Rio Vermelho, remontam às discussões sobre a reforma recente da Barra, que remontam às pedras portuguesas tiradas do calçadão do Porto da Barra, há anos, pedras estas sempre em discussão. Conforto, manutenção, identidade, etc. (como se todos os pisos, monumentos históricos, prédios antigos não tivessem problemas de manutenção, custos altíssimos de preservação, de pessoal empenhado nos cuidados, etc.).
O fato é que era sempre melhor o que passou, em Salvador. Ao menos pra mim. Na foto acima, vemos o Jardim da Graça, espaço que não deve em nada a jardins que vi em Paris, em Roma e Lisboa. Mas não existe mais. A Catedral da Sé foi demolida para passar uma linha de bonde, e as seguidas intervenções no que ainda hoje chamamos de Praça da Sé são provas cabais do nosso mau gosto e do quanto o horror de um progresso vazio, como diria Caetano, vai descaracterizando, destruindo, aniquilando nossa história, nossa cultura, nossa arte.
Somos, por vezes, tão idiotas, que buscamos novidades, por pior que sejam, como uma necessidade urgente e primordial de Salvador. Talvez por um trauma de ex-capital, que deixamos de ser ainda província, e que talvez também por conta disso nunca tenhamos deixado de sê-lo, queremos ser vanguarda, por um lado, e criativos, inovadores, revolucionários e desbravadores, por outro. Parece que queremos nos desvincular daquela imagem de capital da colônia, mostrando que estamos da “moda”. Talvez, também, não seja nada disso, ou um pouco disso tudo.
O fato é que, ao contrário de diversos lugares que prezam suas tradições e seus clássicos, basta termos um carnaval sem uma canção impactante, ou um som novo, e todos os abutres do Axé começam a falar em crise de criatividade. Sentimo-nos na obrigação de fazer o “novo” o tempo todo. Rejeitamos a tradição, o clássico, o passado, em busca de eternas novidades que serão, sempre, um velho revisitado, segundo palavras de Vieira, com riscos de ser um pastiche, boa parte das vezes.
Essa mentalidade perpassa diversos setores da nossa cultura. Dos experimentais vanguardistas das artes que – em sua maioria – apresentam modismos requentados e desinteressantes, camuflados sob a desculpa da inferioridade do público e atraso da cidade, até os governantes e seus projetos mirabolantes que de forma quase total resolvem interferir, pra pior, bem pior, na cidade.
Com exceção das destruídas e bombardeadas – e há aquelas que reconstroem sua história, como citei num artigo anterior – as cidades históricas preservaram parte significativa de sua arquitetura e urbanismo como uma identidade, um valor cultural e simbólico, um potencial turístico e, consequentemente, financeiro; trazendo, assim, bem-estar à população local que não se vê asfaltada e murada por prédios, viadutos e concreto, concreto, concreto.
Essa volta toda para dizer que talvez Salvador não goste de si, de seu passado, de sua história. A forma como caipiramente louvamos o que vem de fora, sem dar valor ao que temos aqui – muitas vezes melhor que o que vem de fora – é prova cabal. As pessoas viajam o mundo louvando a programação cultural das grandes metrópoles, sem se aperceberem que são elas culpadas pela programação cultural soteropolitana muitas vezes definhar, justo por ser ignorada por essas mesmas pessoas que varrem espetáculos da Broadway ou da Avenida Corrientes.
O mesmo vale para nosso Centro Histórico. Sinceramente, se ocorresse a tal gentrificação que tantos acusam em relação ao Pelourinho, Santo Antônio e adjacências, sendo bem-feita, bem pensada, eu não veria problema algum. A iniciativa da Fera Empreendimentos, que muitos vêm atacando, me soa, por vezes, uma salvação para uma zona abandonada, simples elo entre o Pelourinho e a Praça Castro Alves. Revitalizar o Palace Hotel jamais passaria pela cabeça de empresários baianos, que torram seus patrocínios em camarotes, villages ao Norte e Sul da cidade, ou investem pesado em prédios na Paralela a arredores, fugindo da “cidade real”, da “cidade histórica”, da cidade que faz de Salvador o que ela é: com suas ladeiras, casarões coloniais, seu cheiro de dendê, suas igrejas, seus terreiros; tradição e identidade. Mas há aqui uma preferência pelo desabamento, em detrimento de algum investidor de fora que possa interferir na cidade. Um excessivo zelo pela decadência e uma histérica rejeição ao capitalismo, como se pudéssemos estar fora dele (e até podemos e ficamos, para o nosso mal, desde as políticas econômicas à estrutura escravagista que realçam nosso falhanço).
O aspecto de praça de xópim center que virou a reforma árida da Barra, que a todo momento é remendada e que, depois de petulantes argumentos de que seria assim e pronto, agora sofre mudanças de trânsito, de arborização, de estrutura, é um fantasma que ronda o Rio Vermelho.
Gostem, ou não gostem das pedras portuguesas, sua retirada segue a lógica histórica, da cidade, de mudar, “inventar moda”, deixar uma marca moderna, pessoal, ao urbanismo de Salvador.
Há quem goste da nova Ceasa, da reforma da Barra, da demolição de escolas projetadas por Lelé, daquele mondrongo que até hoje não entendi pra que serve no Terminal Marítimo de Salvador. Há quem defenda aquele estupro visual que é o metrô da cidade, que promete lascar visualmente a Paralela com uma imensa serpente gorda e pesada de concreto em seu meio. Há os que aplaudem que haja mais xópins, mais gaiolas, mais grades, mais concreto, vidro fumê, arranha-céus. Há quem goste da descaracterização da cidade, há quem vibre com o esquecimento do que fomos (e poderíamos ter sido).
Andando por Roma e Paris, pelos lugares históricos que são a maioria da cidade, vemos prédios antigos de gabarito baixo, arquitetura de séculos preservada, e são cidades cosmopolitas que os caipiras de Salvador acham lindas e aplaudem. Basta darmos uma olhada em postais da cidade antiga de Salvador, e um desespero nos acomete. Já fomos isso? Já tivemos isso? Basta ver o livro “… vou pra Bahia”, de Marisa Vianna – quase todo com postais de Ewald Hackler, grande diretor e professor de teatro alemão radicado há décadas na cidade – e muitos sentirão aquela nostalgia de tempos não vividos, imaginando o que ainda poderíamos ser, poderíamos ter sido.
Talvez, no entanto, haja uma lógica inversa nisso tudo. A ideia do “já fomos isso” e “já tivemos isso” seja por conta de nosso desmerecimento. O que destruímos, demolimos e esquecemos da cidade talvez seja nossa forma de mostrar que não merecemos aquilo, que essa cidade nasceu pra ser um amontoado horrível de arquiteturas, erros urbanísticos e mau gosto. O que vimos fazendo é eliminar qualquer resquício de história, beleza e cultura, em busca de uma descaracterização, de uma reinvenção cafona, de novo-rico, de burguesia ignorante, que devaste a “cidade real”.
Como, ao contrário da maioria dos grandes nomes da nossa terra, a arquitetura e urbanismo de Salvador não têm como se mudar pra tentar a vida no Rio, Sampa, ou Paris, ou Nova York, e serem reconhecidos e fazer sucesso, nós mesmos fazemos o favor de que tudo isso vire o “já fomos isso” e “já tivemos isso”, numa gana violenta em busca do novo. Talvez sejamos os artífices do nosso declínio, livrando a história, que não merecemos, de um povo que não a quer merecer.
O novo Rio Vermelho vem aí. Sem pedras portuguesas. Tira e bota concreto. Dá menos trabalho, fica menos história, despersonaliza e simplifica. Em meio a tanta merda que vem sendo feita em nossa cidade, tirar pedras portuguesas talvez não importe tanto (pra mim, importa), mas traz, em sua simbologia, o que nós estamos fazendo com nossa cidade, nossa cultura e nossa identidade, desde sempre.
O erro mudou?
Temos agora uma outra Eternidade?
E era sempre melhor o que passou?