terça-feira, 16 de setembro de 2014

MEU VOTO NÃO É DE FÉ RELIGIOSA

A empregada da nossa casa entrou para uma igreja evangélica radical. Antes, ela adorava assistir novelas de televisão, sobretudo as mexicanas, via filmes de terror até a madrugada e escutava músicas num rádio. Agora, ela vira o rosto quando cruza a sala e a TV está ligada, aposentou o radinho e despreza jornais e revistas. Não sei como ela se informa do que acontece no Brasil e no mundo, se recusa todo tipo de jornalismo. Sei. Irmã Josete simplesmente não sabe o que acontece no Brasil e no mundo, e apenas repete o que ouve o seu pastor pregar.


 
Irmã Josete trabalha das 7 às 15 horas, de segunda a sexta-feira, e das 7 às 11 horas, nos sábados. É uma boa funcionária, com mais de 20 anos de serviços prestados à família. Quando ela entrou para a Igreja Deus é Amor, viveu um período delirante de conversão. Se acontecia de pernoitar no trabalho, ninguém conseguia dormir, escutando leituras da Bíblia em voz alta e cantos desafinados. Felizmente, ela dorme na sua própria residência e esses pesadelos foram ocasionais. Constantes foram os assédios e as pregações para nos converter à Palavra e nos livrar das garras do Inimigo.

A única Bíblia verdadeira e confiável é a que foi indicada pelo pastor. Ela contém ensinamentos que as minhas traduções não possuem. Meu Livro pertence a uma Igreja do Erro, no caso, a Católica, e não possui nenhum valor teológico, nenhuma credibilidade. Irmã Josete prega as teorias mais absurdas sobre os acontecimentos da história e faz uma leitura radical do que se encontra na Escritura Sagrada. É de queimar os parafusos de qualquer um, esgotar a paciência.

Quando viveu o período mais radical da sua conversão, Irmã Josete decidiu salvar a mim, aos meus três filhos e a minha esposa de queimar eternamente no fogo da Geena, um símbolo da destruição eterna, a segunda morte ou o inferno. Nesse tempo de jihad, a talibã se aproximava da mesa onde almoçávamos, nos olhava com desprezo e compaixão e, sem qualquer prólogo, começava a cantar o seu hinário na voz desafinada de taquara. Um constrangimento. Minha família, que não professa nenhuma religião, não frequenta nenhuma Igreja, mantinha uma atitude científica, avaliando até onde iria o delírio da nossa empregada. 

Num dia em que eu tomava café, percebi o olhar condenatório de Josete, felizmente sem a força destruidora dos antigos profetas, apenas um olhar incauto, de pessoa ignorante e manipulada por um pastor, que recebe o dízimo de 10% de todos os salários, gratificações, férias e horas extras da nossa crente. Josete me falou: o senhor trabalha tanto, se esforça tanto, mas nada disso vai impedir que se perca e queime no inferno. Eu perguntei: quer dizer que toda minha vida dedicada ao serviço público, ao trabalho de médico, o meu esforço em ser ético nesse país corrupto, nada disso contará para mim? Nada, ela respondeu, porque o senhor não fez o verdadeiro batismo e não vive a Palavra.

Fui condenado à Geena, um vale na periferia de Jerusalém, usado como depósito de lixo, onde lançavam os cadáveres de pessoas consideradas indignas, restos de animais e toda espécie de imundície. Minha empregada me condenou, sem a menor consideração por minha luta para valorizar o seu trabalho, seus direitos, sua promoção social. A religião é mais poderosa para ela. Descobrimos assustados que os vínculos afetivos não existem, nunca existiram, ou foram radicalmente negados em nome de uma fé. Senti que Irmã Josete nos afogaria no rio Capibaribe, a mim e a toda família, se o seu pastor ordenasse. Percebi nela o fanatismo de uma seita, o obscurantismo que recusa toda manifestação de cultura, o discurso memorizado, pobre e radical, cheio de manipulações. 

E convenci-me de que precisamos de um estado laico, como a França, avesso a qualquer representação religiosa na política. Acompanhei a publicidade eleitoral e estarreci-me com a vinculação de candidatos às Igrejas Evangélicas e às suas funções de pastores, criando uma espécie de poder paralelo, manipulador. E vi nisso um perigo, apenas insidioso, no momento, mas de risco futuro. O candidato que se apresenta pela sua função de pastor ou crente, pensa em arrebanhar os votos dos fieis e com isso ganhar o apoio de sua igreja, não é ético, merece o fogo da Geena. E, de preferência, não deve ser eleito.

Da mesma maneira que não é ético o deputado e candidato a senador Romário, um ex-jogador, fazer propaganda de cerveja e obstar a votação da lei que controla a publicidade do álcool. É vergonhoso, mas é Brasil.

RONALDO CORREIA DE BRITO
dom@opovo.com.br

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