Cultura e Cidade
Ordep Serra
Graduado em Letras pela UNB, Mestre em Antropologia Social pela UNB e Doutor em Antropologia pela USP. Professor Associado do Departamento de Antropologia da FFCH / UFBA. Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFBA; Prof. participante do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFBA.
Adeus ao Conselho de Cultura, ou sobre o silêncio de uma despedida
No último dia 3 de dezembro de 2013 participei, pela última vez, de uma reunião do Conselho Estadual de Cultura da Bahia, que abandonei na metade do meu mandato de membro titular. Já tinha tomado esta decisão, depois de um duro exercício de paciência. Pretendia explicá-la em um pequeno discurso de despedida, mas a oportunidade não me foi dada. Desisti depois de perceber que minha fala era sistematicamente postergada em nome da discussão de assuntos alheios à pauta e à competência do colegiado – que, de resto, segundo alguns dos seus membros observaram, no tocante a esses tópicos sequer dispunha de informação satisfatória.
Nessa altura, eu já tinha dito que pretendia encaminhar à apreciação do egrégio Conselho uma solicitação de apoio da Academia de Ciências da Bahia. Ao que parece, isso não foi considerado oportuno. E quanto a meu discurso de despedida, dois breves pronunciamentos que fiz ao comentar o relatório anual do CEC-BA, em momento anterior, foram, talvez, muito sintomáticos, deixaram antever com demasiada clareza o rumo que minha última fala tomaria.
Nessas primeiras ponderações, assinalei o quadro de penúria a que o Conselho teve de conformar-se, restringindo severamente sua atuação durante o ano, por efeito do famoso e até hoje inexplicado contingenciamento das verbas do Estado. Lembrei, a propósito, que a medida atingiu com tremenda brutalidade a área da cultura, com impacto apenas atenuado por um providencial (mas precário) remendo, aliás devido, principalmente, aos esforços de nossos artistas e suas lideranças, protagonistas de um bem sucedido apelo ao Governador. Assinalei, mais uma vez, que na Bahia é crônica a mesquinhez com que assuntos de cultura são tratados pelos governantes, origem de embaraços graves para os profissionais da área, vítimas de orçamentos ridículos e de uma burocracia estúpida. Lembrei, de novo, que nosso patrimônio artístico e cultural se acha severamente comprometido, em grande parte arruinado: tal como já tinha feito várias vezes, acusei o absurdo despreparo do reduzido corpo técnico do IPAC, totalmente incapaz de dar conta de seu importante encargo. (A propósito, lembro agora que o Governo decidiu criar um Fundo de Preservação, mas o alocou à CONDER, hoje uma simples tocadora de obras: tornou assim evidente o desprestígio do nosso outrora respeitado Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural). Evoquei ainda o grotesco fracasso do Escritório de Referência do Centro Antigo, criado pela Secretaria de Cultura, lembrando que o Estado da Bahia devolveu à União trinta e sete milhões de reais destinados a obras nessa área: devolveu-os porque o referido Escritório não foi capaz de elaborar um projeto sequer para a aplicação dos recursos disponíveis.
Por último, lamentei a mutilação da Secretaria da Cultura com a transferência do Instituto de Rádio-Difusão Educativa da Bahia para a SECOM, coisa de que o Conselho sequer foi informado. Deixei claro que considero essa medida um absurdo, um atentado contra a cultura e a educação. Como uma coisa puxa outra, evoquei, ainda o triste fim do Museu de Ciência e Tecnologia. Creio que isso afeta a cultura, mas não sei se quem me ouviu participa desta crença.
Meu segundo pronunciamento aconteceu quando os técnicos do CEC-BA falaram do estado precário da sede do Conselho, com infiltrações, janelas que não se abrem, passarela quebrada, elevador que não funciona e outras belezas. Dessa vez, preferi a ironia. Também não a pude evitar no curso de uma discussão sobre as mudanças legais que alteraram a composição do Conselho: em face do ingresso iminente de mais membros, devidamente eleitos, considerou-se necessário, para adequar o conjunto à nova fórmula regimental, diminuir o número dos que ainda têm mandato a cumprir… e todavia não decidiram afastar-se. (Os que, como eu, desistiram de continuar no ilustre colegiado pelo jeito merecem agradecimentos: claro está que nossa desistência foi providencial, embora não suficiente…) O curioso problema deriva de que não se eslaborou uma regra de transição entre o status quo ante e o que o novo regimento instituiu. Propus que ela fosse produzida agora e se enfrentasse o período de exceção sem eliminar conselheiros, antigos ou novos. Como a discussão ficou muito enrolada, nem mesmo sei se minha proposta teve aprovação.
Em seguida, passou-se a discutir uma determinação da Prefeitura Municipal de Salvador, que impediria baianas de acarajé de fazer seu comércio na areia da praia. Ninguém tinha conhecimento seguro dessa regulamentação, de modo que nada se concluiu. Logo depois se iniciou um caloroso debate, também desinformado, sobre a eleição do Reitor da Universidade Católica. Tornou-se claro para mim que a escolha intempestiva desses temas e a súbita urgência de que se revestiu sua discussão anunciavam o desinteresse pelos assuntos sobe os quais eu pretendia falar. Levantei-me, então, e saí, limitando minha despedida a um aceno.
Em sessão anterior, eu tinha feito severas críticas ao Plano Estadual de Cultura que o Conselho aprovou. O texto desse “plano” arrola um longo elenco de desideratos batizados de “estratégias”, desdobradas em “ações” do mesmo teor. Ora, quem fala em estratégias deve explicitar ummodus operandi, fazer uma ponderação de meios e uma indicação de procedimentos capazes de mobilizá-los (ou até de buscá-los, quando não são disponíveis de imediato). Por outro lado, há diferença entre “ações” e “diretrizes”. Não é questão de linguagem, mas sim de seriedade e senso prático. Postos os objetivos, quem planeja precisa dizer como pretende alcançá-los. Isso pressupõe uma avaliação de procedimentos, meios e recursos. Também importa definir prioridades, ordenando-as de devidamente. Quem tem dezenas de prioridades não tem nenhuma. Ordenar ações segundo uma lista de desejos, sem pensar na exequibilidade das propostas, sem exame das condições dadas para sua realização, não é planejamento. É futilidade. De muito mais se carece para que belos desejos se tornem autênticos objetivos, capazes de traduzir-se emmetas passíveis de monitoramento e de controle social. Isso pressupõe a existência de um diagnóstico tão completo quanto possível. Mas o documento chamado “diagnóstico” apresentado aos conselheiros não merece o nome. Destacarei uma só das lacunas que o viciam: quem o lê à distância da Bahia, nem de longe faz ideia da tremenda crise hoje vivida na esfera da política cultural, em nosso Estado. Quanto a isso, o texto é silencioso, panglossiano e discretamente apologético. Mas a crise permanece grave, feroz, inegável. Em suma, fingimos ter elaborado um glorioso plano decenal, mas escusamos definir um simples e indispensável plano de emergência para fazer face à escancarada crise do momento.
Minhas palavras caíram no vazio. No mesmo vácuo se perderia meu discurso de despedida. Mas voltarei a falar aqui do que me levou a deixar o egrégio Conselho de Cultura do Estado da Bahia. Nesta página, com certeza desfrutarei de maior atenção.
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