domingo, 29 de dezembro de 2013

A DUALIDADE VERMELHO E BRANCO

Entrevista com Gil Vicente Tavares



“Meus heróis não morreram de overdose e infelizmente estão no poder”
Chegamos um pouco antes do combinado para a entrevista com o diretor, dramaturgo e compositor Gil Vicente Tavares, e como bom virginiano, ele já estava de prontidão, e antes de dizer boa tarde, com a exatidão do tempo, falou: Vocês estão adiantadas nove minutos. Por ser sossegado, o lugar escolhido foi o ICBA. É impossível deixar de associar seu silêncio, entrecortado por músicas da MPB, com o espaço de agitação e encontros culturais de um passado recente. Talvez por ter contornos tão inspiradores, o passado se faz tão presente.
Policromático, as nuances de Gil Vicente Tavares não são perceptíveis ao primeiro olhar. Despertam sentimentos contraditórios, que passam distantes da indiferença. A convincente certeza do homem, interage com a fragilidade do menino, que resiste às armadilhas do tempo. Concordamos com o que ele diz, para na próxima vírgula discordar. Mas nenhuma contradição anula a importância das certezas. São vias que ele utiliza para sair de si mesmo e tentar habitar o outro, mesmo que seja através do gérmen da provocação.
Pode-se usar muitos adjetivos para procurar defini-lo: ácido, verborrágico, inquieto, sagaz, pessimista, inventivo, irônico, mas ele não se aprisiona a nenhum rótulo e não ambiciona agradar a todos. Por falar muito e abertamente sobre tudo, coleciona admiradores e também quem não preza sua eloquência. Apesar de ser aguerrido e combativo, e adorar o vermelho de Xangô, seu segundo santo, ele possui todas as cores pacificadoras que o branco de Oxalufan, seu santo de cabeça, comporta. Se define como um ser duplo, o social e o da intimidade, âmbito em que revela sua delicadeza. Que às vezes, de maneira sorrateira, transborda, como no show intimista de Gal Costa, na Concha Acústica, em que chorou copiosamente, enquanto a maioria dos presentes, entre goles de cerveja, flashes e gritos, estavam ocupados em nascer e morrer.
Bicho solto, dá vazão às palavras, com a consciência que não dão conta do indizível da vida, mas na esperança de deslocar, alimentar questionamentos, que tirem o outro do estado de letargia e inanição mental. A influência paternal é tão forte, que ainda se refere ao pai no presente, mesmo após três anos de sua morte. Considera Ildásio Tavares um gênio, mas o vê de forma humana, sem idolatrias, onde se espelha no que gostaria e não gostaria de ser.
Combativo, ainda tem um quê do jovem que achava que ia mudar o mundo e fazer mais através da arte, quando ganhou o prêmio COPENE, atual Braskem, como diretor revelação com o Quarteto/Heiner Muller, sua peça de formatura em direção teatral. Seus olhos e marcas de expressão revelam por vezes uma desilusão, a que a alma não se entrega. Mostram que o caminho de quem busca viver de arte na Bahia é sujeito a todo tipo de intemperes, mas que ele preferiu não “assistir a tudo em cima do muro”. Se intitula o pessimista mais otimista, na medida que enxerga uma realidade e perspectiva cinzenta para cultura no Estado, mas não deixa de acreditar, e usa a arte para tentar sensibilizar. Escreve seus artigos no site do Teatro Nu, grupo que criou em 2006, com Jussilene Santana, como se estivesse em um divã coletivo, na ânsia de deslocar o leitor da sua protegida zona invisível, e através de reflexões sobre a cidade, pensar sobre o indivíduo na sua coletividade. Tece uma escrita em camadas, onde cabe ao leitor decidir a profundidade da imersão. Usa palavras com acepções ambíguas, para fazer ir além do comum e testar a capacidade muitas vezes rasa e desfocada de percepção.
Um dos momentos em que mais se desnuda, e as pausas se sobrepõem às palavras, é quando revela o descontentamento de em 15 anos de profissão, ironicamente, nunca ter sido indicado ao prêmio Braskem como dramaturgo. Apesar de possuir obras como Os Javalis, Alugo Minha Língua, Vixe Maria!, seu nome sempre foi esquecido. O silêncio desse instante dá a amplitude do vazio provocado pela falta de reconhecimento.
Ele brinca tristemente, ao fazer o trocadilho que seus heróis não morreram de overdose, e infelizmente estão no poder. Que os sonhos foram vendidos muito baratos e os caminhos para a arte, através dessas pessoas, caíram por terra. Apesar de aparentar desânimo e o cansaço de correr na direção contrária, tem paciência e a lucidez de perceber, que a dança dos dados pode ser lenta, como a cadência rítmica de Igbin, em louvor a Oxalá, mas não se rende, e persevera, porque a ânsia criativa o impulsiona.
Destinatário Desconhecido, seu mais recente trabalho como dramaturgo, com direção de Zeca Abreu, volta em cartaz na segunda quinzena de março, no Festival Bahia em Cena. Baseado na novela homônima de Kathrine Kressmann Taylor, a peça usa a ascensão de Hitler, para mostrar como uma ideologia pode destruir um homem. E a forma como as relações humanas podem ser corroídas pelo que vem de fora e como a incomunicabilidade nos torna estrangeiros em relação ao outro.
Definitivamente ser resumidíssimo não é uma das características de Gil. Como Gilberto, seu xará, ele não economiza palavras, elas brotam e percorrem estranhos meandros, mas sempre desaguam em algum ponto, mesmo que seja uma reticências. Concedeu essa entrevista para o Mais Teatro, com uma voracidade e preparo de quem faz a travessia Salvador-Mar Grande, só parou para repor as energias com uma sopa de bacalhau. Depois de três horas, chegou quase sem fôlego ao final da empreitada. Consumimos quase seu estoque de palavras, mas ele ainda teve disposição para uma reunião que seria realizada depois.

Em 2009, você deu uma entrevista em que falava que a Bahia tem passado por um sério problema de histeria com questões de negritude, regionalismo, cultura popular, e tem fechado seu teatro para o diálogo. Procura raízes, identidades, quando a verdadeira busca seria se conectar com a nova ordem mundial. Você considera que uma busca anula a outra? A nova ordem mundial não pode ser perversa justamente por anular as identidades?
Sobre essa questão da identidade, um dos filmes mais bonitos que eu vi foi Morango e Chocolate, um filme cubano, que trata da questão homossexual e do regime político cubano de uma forma muito sensível e bonita. Mas em momento algum esse filme se vendeu como um filme de estética gay, um filme gay. Não, ele se vendeu como um filme cubano que falava não só da repressão política, como da repressão sexual. Da relação de um rapaz mais velho com um rapaz mais jovem e tudo que isso implica dentro do sistema cubano.
O próprio Bertolt Brecht, que talvez seja uma vitória do teatro político, em suas grandes obras não levantava mais bandeiras. Lê-se muito mal Brecht, aqui. Acham que colocar elementos contemporâneos, projeções e citações atuais e locais é algo brechtiano. E não é. Brecht fazia justamente o contrário, ele transpunha o problema de agora para algum lugar no passado, para que identificássemos em outro momento nossos problemas de agora. Então, eu acredito muito no papel da arte como o lugar onde se provoca, questiona, se leva uma reflexão, abre possibilidades. Eu, como artista, não acredito na arte que levanta bandeiras, que defende ideias de uma forma muito ideológica, muito panfletária.
Vivemos numa sociedade racista ainda, é óbvio. Salvador tem um certo cinismo ainda com relação à questão da negritude. A gente não conseguiu ainda dar o salto na questão da escravidão, a natural consequência desse apartheid que temos de ver brancos na Graça e pretos na periferia, ainda é em decorrência dessa escravidão, desse abismo econômico e social. E é uma chaga que ainda não foi fechada na sociedade, isso é claro, mas eu não acredito que vá surtir efeito quando você faz seu manifesto, sua arte panfletária, a partir do seu gueto, defendendo aquilo como se estivesse com um manifesto na mão. O mesmo pode-se dizer das questões LGBTTI. Salvador é, por um lado, uma cidade gay, e por outro uma cidade homofóbica e com índices alarmantes de assassinatos ligados à homofobia. Contudo, não acho que levantar bandeiras e fazer denúncias no palco mudem muita coisa. A perspectiva é sempre do gueto, nenhum assassino, nem preconceituoso será transformado pela denúncia e panfleto do palco. Acabamos por fazer uma arte endógena e autofágica. Quando não descambamos pro folclore e traduzimos no palco uma arte “popular”, “regional”, que não é mais do que uma leitura pasteurizada da nossa própria cultura filtrada pelas lentes das telas; é o que chamam de sertão imaginário. Um dos grandes trunfos do cinema argentino sobre o nosso, por exemplo, é que eles falam de gente como eles, em seus filmes. Aqui, ainda insistimos em glamurizar o “outro”, em discutir o problema do “outro”. Precisamos dar o salto – e algumas produções recentes apontam pra isso – para começar a discutir nós mesmos nas telas e palcos.
Quando fiz parte da comissão de um edital de circulação da Funceb, achei, junto com a comissão, que o espetáculo Caso Sério, de Claudio Simões, teria um valor imenso se circulasse pelo interior, tratando das questões afetivas de um gay e de uma solteirona, muito mais que uma peça com essa estética nordestina, trazendo mais do mesmo para o interior. Nesse ponto, através do sensível, e não do panfleto, a arte cumpre seu papel, e Entre Nós, espetáculo de João Sanches, é muito feliz nesse sentido. Um espetáculo que trata a descoberta homossexual de forma fluida, divertida e sem palavras de ordem e doutrinações. Há que registrar o trabalho do grupo Ateliê Voador, que pesquisa a sexualidade em seus espetáculos sem que pareça doutrinação, reivindicação e mera denúncia. A arte deve falar por si só. Namíbia, Não, de Aldri D’Anunciação, tem sua importância, também, por tratar a questão do racismo sob outra perspectiva que não a que vemos em manchetes de jornais, discussões acadêmicas e fóruns e palestras Brasil afora. Tratar questões como o racismo e a homofobia com as mesmas ferramentas e discurso de um trabalho acadêmico, de uma reportagem jornalística ou de um discurso político enfraquece a arte, desloca-a de sua função e a meu ver, torna-a ingênua e óbvia.
Penso que a nova ordem mundial não é perversa por anular as identidades, mas sim por oprimi-las em guetos, fazendo-as crer que estão contempladas, protegidas e fortalecidas.

Ao enquadrar uma peça em determinado tema, você acredita que está limitando o diálogo?
O grande problema não é se tratar de certos temas, quando eu falo dessas histerias, é porque eu acho que a arte deve estar deslocada dessa realidade pra poder falar sobre ela. Tem um livro Olhos de Madeira de Carlo Ginzburg, onde ele deu esse nome ao livro em cima de uma citação de Pinóquio, porque ele diz que o papel do intelectual e do historiador é ter o olhar de fora, como o Pinóquio que olha o mundo com os olhos de madeira. Por isso que ele consegue ver o homem de uma forma diferenciada. Nunca temos uma visão real do que somos, então cabe ao artista tentar estar deslocado da realidade, para poder ter esse olhar em relação à sociedade. Há duas alternativas. Ou põe-se uma lente de aumento, ou afasta-se para olhar de uma perspectiva distanciada. Olhar o mundo na dimensão vulgar retira da arte sua dimensão de fantasia, poesia e transubstanciação do real; metamorfose e ressignificação do cotidiano.
Quanto mais leitura sua obra tiver, mostra o quanto você está abraçando vários aspectos da sociedade, quanto você está aberto. A arte é uma obra aberta. O que me incomoda é que exista essa guetização excessiva; aí se cria editais para esses guetos. O que acontece é que as pessoas continuam em seus nichos produzindo para si mesmas, ficam felizes porque ganharam aquela grana, vão continuar produzindo por um tempo, mas aquilo talvez não tenha continuidade ou consistência. Eu não acho que eu mereço nem mais nem menos por pertencer a tal sexualidade ou cor. Acho que o artista tem o compromisso de fazer um trabalho de qualidade, com equipe capacitada, porque o dinheiro público de editais não é uma bolsa-cultura para necessitados, é um fomento à produção artística; então a arte deve ser o foco; e a grande arte toca, perturba, modifica, incomoda.
Acho, sinceramente, que Brecht é uma lição. Montar uma peça sobre o nazismo, sobre a perseguição às bruxas, sobre a castração imposta pela sociedade em relação a Casanova podem traduzir, em forma de arte, problemas do nosso cotidiano, e acho que a arte deva ser um lugar de abertura dos sentidos e sensações para que o homem perceba, na história ou na fantasia, questões e problemas de seu cotidiano. Simplesmente jogar na cara da plateia o problema que a circunda é repetir – geralmente de forma mais ingênua e boba – o que certos discursos e espaços de pensamento na sociedade fazem com muito mais propriedade.

A autofagia da cultura local voltada para uma excessiva baianidade nagô impede que propostas mais universais sejam montadas? O olhar para o próprio umbigo não reforça uma visão estereotipada da Bahia que o governo quer vender?
Ao mesmo tempo que se quer vender uma Bahia folclórica por um lado, se quer calar uma Bahia folclórica por outro. Há um contraste nisso aí que é curioso. Há um problema da percepção que é muito angustiante às vezes, quando você faz certas provocações e as pessoas não entendem. O baiano é muito narcisista, ele gosta de rir de si mesmo no que ele se identifica, mas não do que lhe incomoda. Eu acho que a gente não pode dar ao público o que o público quer. Eu lembro de um artigo que eu fiz, A pobreza cultural de Salvador, onde alguns me chamaram de racista e preconceituoso (a repercussão positiva foi muito boa, vale notar), porque eu criticava uma certa cultura hegemônica na cidade: queriam vender a cidade como aquilo só. A terra da baiana, do acarajé, do capoeirista, candomblé… E isso é muito pobre, porque a gente tem que se abrir a outras culturas. O bacana é trazer tudo pra essa antropofagia nossa. Imagine você visitar o Tirol e lá só ter dança tirolesa, pessoas vestidas de tirolesas, comida tirolesa? Isso é nefasto para a própria raiz da cultura, pois a pasteuriza e oprime com a impossibilidade de abertura para outras formas e jeitos.
A nossa cultura de origem africana é magnífica, genial, pulsante, é o que dá todo nosso diferencial, toda a nossa potência. Ao mesmo tempo que a gente tem essa força e que sabe trabalhar com ela, não podemos dizer que é só isso, pois a grande riqueza da Bahia é, desde sempre, a mistura. Acho que a gente tem sempre que se abrir mais ao resto do mundo, sem esquecer nossa raiz, claro.

Como funciona a política de editais na Bahia?
Pensei até em escrever um artigo sobre o financiamento através do Estado, pois se perdeu uma coisa que sempre foi fundamental na história da arte, que é o caráter da encomenda. Você fazia por algum motivo, você queria agradar ao público, ao rei. Hoje você recebe a verba pública e não está preocupado com nada, você não tem a quem se dirigir com aquela obra, você não tem obrigação de prestar contas do sucesso da empreitada. Você não precisa ter o aval do público nem do Estado, então você se esconde, você se protege no espaço “ah, é porque as pessoas não compreendem”, “ah, porque a elite não gosta, tem preconceito”. Você sempre vai ter uma desculpa para o fracasso do seu trabalho. Você só não vai conseguir provar que seu trabalho é bom, porque se seu trabalho fracassou, algum problema ele teve, porque ele precisa atingir alguém na sociedade. Ele tem que ter algum retorno, seja ele qual for: sucesso de público, seleções para festivais, prêmios, resenhas críticas favoráveis, convites para temporadas e viagens, seja o que for, há como medir-se o êxito de um projeto de diversas formas, só não dá pra jogar dinheiro público fora realizando a “viagem” particular de cada um, sem que essa viagem possa ser viajada por outros, também.
Além disso, a lógica do edital é muito cruel, aquele cara que ganhou o edital em um ano, e perdeu no ano seguinte, se desestabiliza inteiramente dentro daquela estrutura que criou. Pode ficar mais três, cinco anos sem ganhar. A grana não é tanta, ninguém fica rico por causa disso, não vou então dizer que alguns são aproveitadores do dinheiro público, porque não são. O problema é que muitos realizaram o seu trabalho dentro de um aspecto pequeno, o projeto não “acontece”, e fica tudo por isso mesmo, visto que não há satisfação a dar pra ninguém.
Há uma política que termina no financiamento do artista. Não se pensa que o governo fomenta uma obra artística para que ela tenha projeção e relevância na sociedade. Possibilitar a criação de boas obras de arte que sejam usufruídas pela sociedade é papel do estado; está aí sua democracia. E não na pulverização da verba dando grana pra quem não sabe fazer ou provou não saber. Há uma questão meritocrática que é ignorada e as comissões acabam, sempre, por estabelecer critérios – muitos que não existiam no próprio edital – que negligenciam o mérito e valor artístico. Então, a quantidade de oficinas, o “dar oportunidade”, a “aposta”, a temática (nada mais nefasto que aprovar uma obra de arte pela sua temática) são critérios deturpados de um edital. Ouvi, certa vez, que um projeto meu foi bem avaliado e não passou por causa do valor, que era alto. Ora, o projeto respeitava o teto do edital. Então, foi-se criado um critério novo, que é julgar o valor do projeto a despeito de ele respeitar o teto do edital. Já recebi pareceres questionando a relevância de se montar um autor espanhol – no caso, Juan Mayorga, ainda inédito no país, na época – na Bahia, em Salvador.
Costumo sempre dizer que prefiro ser avaliado por gerente de marketing do que pelas comissões que os governos criam. Aliado a esses e outros problemas dos editais, penso que grupos, artistas e coletivos que comprovam por determinado tempo um profissionalismo, seriedade, qualidade, deveriam ser contemplados com algo que pudesse dar continuidade, por um tempo, ao seu trabalho. A lógica dos editais é perversa, equivocada, e mistura num mesmo balaio todo mundo: de consagrado a amador, de oficina de voz a montagem de ópera. O Setorial de Teatro, criado na atual gestão da cultura, é uma desgraça completa para as artes na Bahia. Basta ver a quantas anda a produção teatral baiana para perceber-se o desastre das políticas adotadas pelo governo estadual.

Existem articulações isoladas por parte dos profissionais de teatro na Bahia, mas não ocorre um ponto de interseção ou diálogo entre elas. Você considera que falta atitude política à classe artística, que contribuiria para a consolidação do teatro baiano?
Não vai haver uma atitude política da classe artística. O problema é uma mistura de muita coisa. A gente ainda sofre de uma questão grave em Salvador, somos uma província com forte caráter coronelista.  Já ouvi gente, do alto escalão da gestão pública, mandar recado dizendo “Gil está falando demais, está criticando muito. Ele precisa ter cuidado, porque vai acabar não passando em nada, não vai conseguir mais recurso nenhum”. Ainda existe essa mentalidade entranhada, e mesmo quando as gestões se pretendem democráticas, a pessoa tem medo.
Eu sinto que há esse movimento geral. As pessoas ficam caladas e se incomodam com quem fala. A crítica, que ajuda a gente a melhorar nosso trabalho, é vista aqui como ofensa, suicídio social. Então, as pessoas calam e pensam assim: entrou um cara que eu conheço no instituto tal, na secretaria tal, na fundação tal, eu não vou criticar ele, porque ele pode conseguir uma bocada pra mim. Fulano pode fazer tal favor pra mim, beltrano pode estar em tal comissão. Então não posso criticar o trabalho dele, porque quando ele estiver em uma comissão e vir que é um trabalho meu, ele vai ter raiva de mim e querer me reprovar. Existe toda uma dinâmica que está entranhada, que é nefasta, e que eu não vejo uma possibilidade de cura pelos próximos 50 anos para isso em Salvador. Isso é muito desesperador. 
Não existe honestidade intelectual em Salvador. As pessoas correm disso, fogem disso. Há uma desonestidade intelectual na cidade muito grande, isso é triste, mas as pessoas ficam caladas porque querem se dar bem. São putas do sistema. As pessoas não vão se unir, tem pessoas que sentam comigo e demonstram uma integridade absoluta, discutem, concordam com tudo que eu falo, criticam tudo que eu critico e quando assumem um papel de comissão, de gestão, de qualquer poder, fazem um bocado de merda. E quando eu vou perguntar, elas se defendem dirimindo-se da culpa; o inferno sendo os outros. Não tem nem a honestidade de falar: “Ô Gil, mudei minha ideia”. Não, sempre dizem que foram os outros do governo, da comissão, da gestão que se equivocaram.
Acontece, também, de muita gente que critica até conseguir uma bocada. É muito curioso, pra não dizer ridículo, pessoas que criticavam tal instituição, tal governo, tal edital ou financiamento, e, depois que conseguem ser contempladas mudam o discurso, calam-se ou até defendem o que antes atacavam.  Acabamos sendo como ratos, catando migalhas e levando pra nosso buraco, escondidos.

Mas você já sentiu isso na prática? De ter um projeto e não conseguir ser aprovado por posturas políticas?
Não vou dizer que aconteceu, porque não quero me colocar no papel de vítima, nem tampouco me julgar imbatível e merecedor de recursos e aprovações mais que todos. Mas é muito estranho que eu já tenha passado por algumas coisas em Salvador, em termos de premiações, editais… Porque eu sei que sou uma pessoa um pouco intragável para muita gente da classe. Porque sou uma pessoa que abro a boca mesmo, enfio o dedo na ferida, digo o que penso publicamente: o que é um crime inafiançável. Pode-se falar as coisas mais baixas sobre o outro numa mesa de bar, e todos ouvem tranquilamente. Agora, falar algo concreto e embasado publicamente é ofensivo, arrogante e desagradável. Mentalidade província que talvez nunca acabe, e continue acabando com a inteligência e pensamento da cidade. É aquela imagem da Caverna de Platão, sabe aquela pessoa que sai em busca de luz e todo mundo puxa ela para a sombra de novo?
No ano que estava com o espetáculo Os Javalis em cartaz, a comissão era composta por sete pessoas, dessas sete, cinco teceram elogios ao espetáculo, falaram maravilhas da direção, do texto, dos atores… O espetáculo não só não foi indicado – tudo bem, até então, acharam quatro indicados melhores que os atores, a iluminação, a direção da peça –, como na categoria texto, que eram quatro vagas, só botaram três textos para serem indicados, deixando uma vaga vazia. Quer dizer, não se deram ao trabalho nem de fazer 4 indicações para dizer: você não entrou porque tinham 4 melhores. O recado pareceu ser: você não entrou porque não tinha nem qualidade para preencher uma quarta vaga. Isso pra mim é de uma canalhice, um mau-caratismo imenso. Isso só vai corroendo o teatro, aqui. Vão botando pra escanteio pessoas sérias e que perseveram em seu ofício.
Aí você vai favorecendo um amigo, ou o que está na moda, ou o que é mais “muderno”, mais oportuno. Se está na moda uma estética tal, então vamos aprovar projetos nesse caminho, e eu, comissão, vou ficar bem na fita com a sociedade, a sociedade vai me aceitar. O artista que sempre teve o papel de crítico da sociedade, que sempre teve o papel de dizer que o rei está nu, hoje em dia, ele não se coloca mais nesse lugar. Ele está mancomunado com a sociedade. Defende os valores que a sociedade já defende. Ao invés de estar à frente do seu tempo, desbravando valores, questões, ele vai na esteira dos acontecimentos, sendo reflexo pálido da vida vulgar.
Eu não posso montar Sade na Bahia. Por que montar Sade na Bahia? Por que pagar bem a grandes atores da Bahia para se montar Sade, se eu posso dar um trocadinho para várias pessoas fazerem as suas peças? Peças que, em sua maioria, ninguém vai ver, que vão morrer no local onde foram apresentadas, mas essas pessoas vão ficar muito mais felizes. É melhor você pegar dez fracassados felizes, dez escondidos felizes, dez invisíveis ao público felizes, do que agradar artistas que buscam continuidade, profissionalismo, público, visibilidade, mas que não farão volume.

Você é diretor, dramaturgo, roteirista, compositor, mas que atuação te desperta mais prazer?
Eu tenho um tesão muito grande por criar. E se ano que vem eu não tivesse perspectiva nenhuma e de repente 15 cantoras me encomendassem, me pagassem para eu compor 3 canções para cada uma e não tivesse tempo para fazer teatro, eu seria a pessoa mais feliz do mundo. Mas, se também chegassem e falassem: Gil você vai passar o ano que vem só escrevendo para teatro, não vai ter tempo de dirigir, nem compor, e eu ganhar uma grana por isso, eu também seria o homem mais feliz do mundo. Se dissessem você vai passar um ano só dirigindo peças de teatro, você não vai ter tempo nem de escrever, nem de compor, seria também o homem mais feliz do mundo.
Eu não tenho nenhuma predileção na criação, eu sou apaixonado por criar. O que me angustia às vezes é não poder criar, não ter a possibilidade de criar.

Você já declarou que poucas vezes teve alegria com o que escreve. Por que fazer teatro se o caminho é tão tortuoso, se é uma arte em permanente crise e que muitas vezes não tem o apoio do governo ou desperta o interesse do público?
Luiz Carlos Maciel tem uma frase que é genial: a condição sine qua non para se fazer teatro no Brasil é você ser masoquista. Talvez eu trabalhe com teatro, com música, com dramaturgia porque eu não tenho talento pra mais nada na vida. Adoraria ter talento para outras coisas, mas eu não gosto de estudar, nunca gostei de estudar, que é diferente de gostar de ler, de se informar, de se aprofundar. Sou muito relapso, nunca fiz dever de casa, minha mãe sempre brigou comigo, sempre fui pra recuperação das exatas. Sempre tive uma coisa de criação muito forte, de gostar de criar desde pequeno. De certa forma a gente sofre, sofre, sofre, toma na cara, mas em algum momento a coisa acaba acontecendo, se é perseverante no que faz.
Sargento Getúlio é um exemplo disso, desde 2000 que eu tento montar, perdi uns 20, 30 editais municipais, estaduais e federais. Acabou que eu consegui o patrocínio para fazer o espetáculo através do Vivo em Cena, pelo Fazcultura, que todo mundo demoniza, e montei em 2011. Ganhamos prêmios, fomos para alguns festivais, fizemos algumas viagens e o resultado disso tudo é que em 2014, a gente vai fazer 50 cidades entre Palco Giratório, o edital da Funarte, e o da Caixa Cultural, onde fomos aprovados. Então a vida de Betão em 2014 vai ser viajar com Sargento Getúlio pelo país inteiro, porque a gente perseverou. O próprio Os Javalis foi um espetáculo em que a primeira temporada foi um fracasso absoluto, eu lembro que o público total que a gente teve em OsJavalis, em 12 apresentações, foi quase metade dos dois dias de apresentações que a gente fez em Itabuna. Foi um fracasso de público, mas a gente insistiu nesse projeto, em 2009 a gente foi para Fortaleza encerrar um festival com ele, 2010 a gente circulou pelo interior, fizemos uma temporada da peça em 2012 e, esse ano, a gente ia para o Porto Alegre em Cena, fomos selecionados, acabamos não indo por conta de cortes de verbas lá e cá, e casou com a notícia que Betão ia filmar na Globo. A peça só não teve mais continuidade porque tentamos alguns festivais locais e não fomos aprovados, a despeito do retorno individual dos componentes das comissões, que sempre diziam ter votado a favor. É engraçado porque todo mundo chega pra você dizendo que defendeu sua peça, que ela é boa, etc., e aí fica a pergunta: Então, quem reprovou? Darth Vader?
A falta de perseverança, de dedicação, investimento num projeto é o que mais eu critico. Muita gente que ganha 100, 200 mil reais, fica um mês em cartaz, não deu certo, tá beleza, vamos fazer outra coisa. Quer dizer: é um dinheiro jogado fora. Gastamos centenas de milhares de reais do dinheiro público para montar algo sem perspectivas de continuidade, carreira, festivais, temporadas. Isso, pra mim, é abusar do erário.

Você foi à Roma ver a leitura encenada de Os Javalis e Os Amantes II, existe uma diferença de recepção e leitura de sua obra aqui e no exterior?
Não, e isso me deixou muito feliz. Volto a questão inicial, do caráter universal. Aquela coisa que Tolstói diz: Canta a tua aldeia e serás universal. Eu acho que as grandes angústias, as grandes tragédias, os grandes conflitos mundiais são também os locais. As coisas sempre vão se repetir, com tons diferentes, cores diferentes, em todos os lugares do mundo. E é por isso que Brecht fazia isso de voltar lá atrás, para pegar um exemplo do passado para falar do presente. Porque a história está sempre se repetindo, você pode usar como aporte teórico o eterno retorno de Nietzsche, o “a história se repete como farsa” de Marx, seja lá quem você quiser citar como teórico.
Eu lembro que quando eu cheguei em Roma, eles fizeram uma interpretação pela realidade deles, mas a leitura que eles fizeram concatenava-se justamente com a nossa realidade. Aquelas duas peças, lidas lá, pareceram mexer com angústias romanas e italianas, mesmo eu escrevendo uma peça pensando na perspectiva de criticar a minha cidade. Eu não levantei bandeiras, não fui panfletário, não afirmei absolutamente nada e nem quis estereotipar, nem folclorizar. Curioso que conheci Letizia Russo, grande dramaturga na nova geração italiana, por email, através de Jorge Silva Melo, encenador português. Mandei uma mensagem identificando-me, dizendo que ela não sabia quem eu era, mas que Jorge, etc., etc., ao que ela me respondeu dizendo que me conhecia, que tinha lido Os Javalis e achava um texto muito humano. Quando Letizia convidou Pietro Bontempo para dirigir Os JavalisOs Amantes II, ele reagiu dizendo não ter interesse nessas temáticas brasileiras. Ainda bem que ele leu as peças e não identificou isso. O máximo que você pode identificar de baiano é o dendê que eu falo, em duas ou três frases de Os Javalis. Quando eu escrevi Os Javalis e Os Amantes II, eu queria falar de Salvador, dos problemas que me angustiavam aqui. Eu toquei em pontos, que de formas diferentes, acabam sendo universais. Quando você se fecha pra uma coisa identitária, levantando bandeiras, quase fazendo um teatro jornalístico, você fica muito fechado naquilo, e defende uma coisa que, através da arte, você não vai conseguir modificar em nada. A arte é inútil, mas ela é inútil apenas enquanto realidade aparente, objetiva. Justamente ao deslocar você da realidade, ela se torna altamente útil, ela faz você fazer um caminho para voltar à realidade de outra perspectiva. Ela abre sua percepção, para quando você voltar à realidade, olhá-la com outros olhos. Mas não porque eu estou denunciando a realidade, sendo tão real quanto a vida. Como Bakhtin fala “a arte começa quando a vida acaba”.  Esse deslocamento da realidade é fundamental.

Uma das questões centrais de Destinatário Desconhecido é a relação humana, como ela pode ser frágil, destrutiva, perecível e o abismo da incomunicabilidade que a assombra. Esses temas te atraem, você acredita que somos estrangeiros no coração do outro?
Essa coisa do estrangeiro é legal, porque me marcou muito O Estrangeiro de Camus. Ao trabalhar justamente esse personagem que é estrangeiro a tudo em torno dele. O grande trunfo é que a arte é um espaço onde você pode trabalhar as relações humanas sobre outras perspectivas, e mexer com a percepção das pessoas fora do contexto onde estão inseridas. Quando você está muito perto, você não consegue visualizar muito bem as coisas. É preciso que você se afaste muito ou entre demais para entender. São duas formas que a arte tem de chegar ao ser humano, ou indo pra longe ou botando uma lente de aumento naquilo.
Você falou da incomunicabilidade e o meu doutorado foi sobre o absurdo. Tratei justamente dessa questão da incomunicabilidade, sobre como é difícil dizer ao outro alguma coisa. Mesmo nas coisas mais superficiais da vida, como redes de sociais e mensagens instantâneas, você manda uma mensagem e é difícil de você ser entendido, quanto mais lá no fundo da sua alma, você conseguir mostrar essa alma para o outro, quando às vezes você não consegue mostrar sua alma para si mesmo. É quase impossível conhecer a si mesmo. Mas se você não conhece a si mesmo, como vai conhecer o outro? O outro será sempre um estrangeiro para você. A partir do momento que você toma conhecimento disso tudo, as coisas se tornam melhores e mais complexas.
É meio esquizofrênico, mas é preciso ter conhecimento do desconhecimento para aceitar e compreender o outro. A arte é difusa e complexa, mas é o lugar onde isso se efetiva de forma brilhante. Talvez seja o papel da arte mostrar esse lado da sociedade que a gente mais teme. O interessante, na obra de arte, é que ao invés de você afirmar a diferença, valores, você problematiza tudo isso. A arte é um lugar da instabilidade e da dúvida, da pergunta, da reflexão e da amplitude de pensamento. As obrigações do cotidiano, como cagar, comer, pegar ônibus, trepar, funcionam como um rolo compressor que nos afastam dessa percepção. Aí, de repente, vem a arte e te desloca desse lugar e você passa a ter outra percepção daquilo. Por isso eu acho que a arte não pode ser mais um elemento do cotidiano, conviver com ele, ou se utilizar do discurso do cotidiano.
  
Quando você descobriu que queria ser dramaturgo? Foi uma aceitação fácil ou você lutou contra essa vocação?
Quando eu era moleque, em 1993, participei de uma oficina no Teatro Solar Boa Vista, onde minha mãe era diretora artística na época. Fiz um poema rimado em decassílabo, completamente tolo, mas meu professor Airesa resolveu montar. Mas ainda não tinha entrado o vírus da dramaturgia na minha vida. Quando ingressei na Escola de Teatro da UFBA em 1995, Fernanda Paquelet e Márcia Andrade me convidaram para escrever uma peça para o Ato de 4, nunca havia escrito uma peça antes, mas, movido pelo desafio, topei na hora.A peça se chamava Ato Único,não foi montada no Ato de 4, mas Ewald Hackler gostou muito, se interessou pelo texto, se ofereceu para fazer o cenário e indicou para ser montagem de formatura de uma aluna na escola. E isso me trouxe muito entusiasmo.
No mesmo período, eu montei Fim de Partida, na Escola de Teatro, com Geraldo Cunha e Rodrigo Selman. E dessa brincadeira, em 1998, eu escrevi três peças de teatro, Os JavalisCanto Seco e Quartos, Quatro Monólogos Sem Título Sobre Solidão, que seria para Emanuelle Araújo, Cristina Dantas, Rodrigo e Geraldo.  Quando eu vi, estava escrevendo muito para teatro, mas não queria montar minhas próprias peças, que ficavam na gaveta. Em 2001 fiz a oficina do Royal Court Theater e o resultado foi Os Amantes II, que também não foi pra canto nenhum. Até que em 2004, recebi dois convites; pra escrever Vixe Maria! Deus e o Diabo na Bahia!– junto com Claudio Simões e Cacilda Povoas – eAutorretrato aos 40, que era sobre os 40 anos do Vila Velha. Márcio Meirelles me chamou para ser um dos autores da peça comemorativa, onde cada dramaturgo escrevia duas cenas. Depois Sérgio Machado me chamou para colaborar com o roteiro de Cidade Baixa.
Quando eu menos esperei, estava me tornando um dramaturgo de sucesso, pois Vixe Maria... foi vista por mais de 200 mil pessoas. Hoje em dia, em alguns ambientes, sou mais conhecido como dramaturgo do que como diretor.

Do que é produzido hoje na dramaturgia tem algo que você goste? Qual foi o último espetáculo que você viu que tinha um diferencial?
Eu acho que a gente está com um problema gravíssimo na dramaturgia baiana, porque existe muito dramaturgo e pouca peça consistente, que merece ser montada. É um problema geral que não tem culpado, é culpa dos dramaturgos, dos diretores, dos atores, dos editais, do sistema político, da burrice… Hoje em dia tem muita gente que diz que é dramaturgo, você pede uma peça e ele não tem uma peça para te apresentar. Qual foi a peça sua que foi montada? A pessoa não sabe dizer. É muito cacique pra pouco índio. Há quem diga que faltam autores que saibam dizer coisas, e diretores que saibam como traduzir essas coisas. A gente precisa se repensar muito como artista também, o artista tem muita culpa em boa parte das crises que o teatro está passando. Os rótulos viram trincheiras e o artista está sempre se blindando com rótulos, panfletos, estéticas, em guetos. Mas o esmero, o estudo, a pesquisa, a técnica muitas vezes são abolidas em prol do “gênio criativo”, essa balela romântica que alguns ainda acreditam.
Mas sempre tem coisa boa acontecendo por aí. Eu gosto da maneira despretensiosa que João Sanches conduz Entre NósNamíbia, Não, como eu já havia citado, não teve a repercussão que teve à toa. A despeito de ser o primeiro texto de Aldri, há algo ali que merece destaque. Temos bons dramaturgos, mas são pouco montados e requisitados, e até mesmo provocados, e a culpa é desde as perspectivas de produção até a autossuficiência de muitos que fazem um trabalho frágil, mas acham-se satisfeitos com seus resultados cênicos. Sem estímulo, o artista fenece.

No seu processo de criação, você é onisciente de tudo o que vai acontecer ou é arrebatado e os personagens ganham vida própria?
Eu resisto e resistirei até a morte a dizer que sou possuído por uma coisa que escreve por mim, os personagens mandam em mim, ouço vozes, é algo que vem de não sei aonde. Contudo, a obra só nasce a partir do momento que você começa a criar, e jamais o que você planeja é o que você escreve. E eu tenho um caso bem curioso. Quando eu estava escrevendo Sade, eu cheguei pra minha orientadora na época do mestrado, Evelina Hoisel, e disse “esse é meu arcabouço teórico, eu vou querer ler esses caras aqui, construir a peça assim, falar de tal coisa assado”, e ela falou pra mim que estava preocupada com a criação da obra, poderia ficar uma coisa muito engessada, muito intelectualizada, sem alma. Mas a sistematização, o arcabouço teórico e a estruturação da obra são apenas a munição, são só o tempero que eu estou separando; agora o prato que eu vou fazer é outra coisa. Mesmo que você faça com os mesmos ingredientes, você vai ter um resultado diferente a cada vez, e essa é justamente a magia do teatro. Você nunca tem o comando da situação. A personagem começa a mandar em você, não por algo divino, mas é porque quando você escreve, você não escreve exatamente o que está pensando. Aí você pensa “esse cara falou isso?”. Você mesmo começa a se questionar das coisas que está criando.

Quando falam do seu talento, intelecto, verborragia, sempre comparam ao legado do seu pai. Em algum momento essa analogia incomodou você?
De jeito nenhum. Para mim é inclusive um orgulho muito grande. Porque primeiro, eu acho que jamais serei o intelectual que ele é, mesmo porque eu não me considero intelectual, porque eu não teria a capacidade de ler metade do que ele leu, com a percepção que ele tinha. Meu pai é um cara que lê uma página de um livro e sabe mais do livro do que o próprio autor. Meu pai é uma das poucas pessoas que eu posso chamar de gênio, para mim ele era um gênio e já ouvi isso de outras pessoas também. Ser comparado a ele é uma grande alegria. Eu agradeço muito, porque além de ter aprendido muita coisa, sem jamais alcançar certos níveis de excelência dele, eu pude alcançar outros níveis de qualidade identificados por ele. Por exemplo, na trilha da dramaturgia eu me dediquei mais do que ele. Mas eu jamais serei o poeta que ele é. Talvez se eu chegar aos 70 anos compondo, eu seja muito mais compositor do que ele. Se chegar aos 70 anos escrevendo, eu seja mais dramaturgo do que ele. Porque eu fui por outros caminhos. Talvez inconscientemente ou no meu subconsciente, fugindo pra não ficar sendo um subpoeta imitando o pai, ou ficar na sombra dele. Não sei se foi uma defesa, nunca pensei nisso, sinceramente. O teatro e a música sempre me encantaram muito mais do que a poesia, que é o terreno dele. Por outro lado, eu discordava muito da postura do meu pai. Ele era desbocado demais. Eu passei por situações altamente constrangedoras, porque ele falava mesmo, não tinha censura. Havia um desequilíbrio, uma impetuosidade e uma passionalidade excessiva que prejudicavam ele, mas que também eram o molho especial de sua personalidade tão especial e complexa.
Eu aprendi com ele muito, eu tenho um germenzinho plantado de ser crítico, de falar mesmo, de falar muito e de escrever textos ácidos. Mas uma coisa eu consegui, eu jamais me indispus com ninguém publicamente.  As pessoas podem falar mal pra caralho de mim pelas costas, pelos cantos, mas eu jamais criei uma inimizade pública com ninguém por conta do que eu falo, do que eu escrevo. Porque eu aprendi que isso eu não posso fazer. Eu sempre serei esse cara combativo, e que acho necessário, ainda mais numa cidade morna como Salvador, onde todo mundo acaba se prostituindo, abaixando a cabeça e aceitando ficar na mediocrização, pra ver se ganha o seu aqui e acolá. Esse meu papel, pude aprender com ele. Meu pai ficaria muito feliz de ouvir que estou sendo comparado a ele, porque ele era um cara necessário para essa cidade. Se me chamarem o resto da vida do filho de Ildásio Tavares, não tem problema nenhum, é um orgulho.
  
A extrema objetivação, de uma época onde as pessoas estão tão conectadas e desconectadas de si mesmo e do outro, prejudica a comunicação de quem utiliza a subjetividade como ingrediente criativo?
Prejudica não, simplesmente inviabiliza quase que por completo. Saindo um pouco do reino da arte, teve um colunista da Folha de São Paulo, Antônio Prata, que escreveu recentemente um artigo ironizando “agora sou de direita, estou cansado desses crioulos, dessas bichinhas”. É mais que óbvio que é um texto irônico. Ele estava provocando, mas você via os comentários embaixo de pessoas dizendo “é isso mesmo, tem que voltar a ditadura”. Uma vez fiz uma provocação em um artigo sobre Chico Buarque, dizendo que suas letras eram medíocres no sentido do entendimento. Chico não faz na letra o que Jorge Luis Borges faz nos contos dele. Ele é muito claro, mas essa poesia dele, que é prosaica, que é simples, as pessoas não conseguem captar, porque tudo tem que ser muito direto, óbvio, baixo, e um Chico torna-se algo “cabeção”, complexo, inacessível. O problema não está nele, está na ignorância dos outros; é a derrota do pensamento que tão bem fala Finkielkraut.
É por isso que eu falo que a arte tem que tentar provocar esse outro espaço. Se a gente continua repetindo a fórmula da objetividade, do cotidiano, do natural, não vamos para canto nenhum, vai ser sempre prejudicial para o lugar da arte. Sinceramente eu prefiro arriscar. O papel do artista é questionar o porquê de fazer. As pessoas, infelizmente, querem mais do mesmo, elas querem ir ao show para cantar as músicas com os artistas.  Eu brinco que o baiano não gosta de música, gosta de celebridade, porque vai ouvir uma música inédita de João Bosco no show e vai achar um saco, ninguém quer prestar atenção naquela música. Tem a famosa coisa da Concha Acústica, que é metade de mal-educados que ficam em pé, e metade dos mal-educados gritando senta. Não sei o que é pior quem está em pé ou gritando. O show de Gal começou com uma música super intimista “Eu venho de um recanto escuro...” e o povo gritando “Sentaaaaaa!”, aí eu pensei “ai que vergonha alheia!”. Estamos em um momento de muita brutalidade. É um trabalho árduo a gente conseguir mudar esse panorama que está aí.

Como a linguagem teatral pode se renovar, sem perder a essência da presença e atrair uma geração seduzida pela televivência?
Estamos vivendo uma geração androide, o jovem de hoje é muito Robocop, porque ele vê através da lente. Estamos vivendo o superficial e o irreal. Ao ver através da lente, você acaba por absorver o que a lente está mostrando. O que ela diz passa a ser verdade e sempre tem um intermediário no seu raciocínio, na sua sensibilização. E você jamais busca. A internet é um veículo fantástico, mas pessimamente utilizado. Na internet você pode ouvir a nova música de João Bosco e a de Luan Santana, mas veja quantas visualizações tem Luan Santana. Você tem a liberdade de escolher, mas não tem a liberdade de escolher. Porque você vai ver na capa da Veja, no Jornal Nacional a nova música de Luan Santana, não vai se falar se João Bosco. Então, a gente é guiado através da mídia. Todo mundo fala que a Rede Globo é uma merda, é uma ditadura, mas todo mundo assiste à Rede Globo. Eu não assisto The Voice, não assisto novela, não porque eu sou um intelectual, eu posso estar vendo vídeo de putaria na hora. Não é que eu esteja lendo Dante no original ou traduzindo Marx, mas é porque é um veículo que não me interessa. Eu me dou ao direito de nem poder falar mal por não conhecer. A regra do Facebook, por exemplo, é falar mal de Claudia Leitte.  Todo mundo curte, comenta e vira um micro formador de opinião altamente pobre e superficial.  Mas se sente importante por aquilo. As pessoas não sabem o motivo, mas repetem um padrão. Reclamam da Globo, mas estão todos assistindo a seus programas para criticá-los. As notícias só ganham fôlego se passar no jornal da noite ou estiver na capa da revista. Ainda damos audiência para as grandes mídias e somos ainda teleguiados.
  
Você escreveu um texto sagaz e divertido no Teatro NU, na primeira pessoa, do ponto de vista de um buraco. A educação e a cultura também são buracos profundos, tapados de forma paliativa. Possuem uma origem tão remota, que nos acostumamos a essa cicatriz social, como se fizesse parte do Brasil. Você acredita que tem salvação para esses buracos?
Sempre. Eu costumo dizer que eu sou o pessimista mais otimista que existe. O problema é que pra resolver Salvador, você tem que ser impopular. Quando Guilherme Bellintani foi escolhido secretário de Desenvolvimento, Cultura e Turismo de Salvador, falei pra ele: “pra você fazer o que Salvador precisa, vai ter que tomar atitudes antipopulares e vai se desgastar muito. E não vai gerar voto nenhum”. Mas ele não vai tomar essas atitudes, ele fez um festival de samba no Santo Antônio e trouxe gente de fora, vai gastar bem mais com eventos pontuais do que com editais. Vai fazer eventos calendarizados, gratuitos, quando o que precisamos é fortalecer a cena local e botar as pessoas pra pagarem e terem prazer de pagar pra ver nossa arte, de forma continuada e cotidiana. Claro que ver Elza Soares e Paulinho da Viola de graça é um presente dos céus, mas isso é política pública? Uma prefeitura que quer que o produtor com 30 mil (mais descontos) faça seu projeto, gastou quanto no cachê desses artistas? Mas esse não é um erro dele, é todo um sistema corrompido pela indústria do voto, da manutenção do poder. João Henrique foi reeleito tendo como um de seus cabos eleitorais a reforma da Avenida Centenário. Talvez, se ele tivesse consertado todas as calçadas da cidade, não houvesse repercussão alguma. É mais vistosa uma via expressa que um trabalho de formiguinha para resolver o transporte público. Construir belas escolas – mesmo que inúteis e subaproveitadas – é muito mais chamativo que criar um sistema educacional de base. Isso demora, não gera votos e não se resolve em quatro anos. Os problemas do país são todos de base; na cultura, na educação, na urbanização, na saúde. Só que mexer nisso requer tempo, dedicação e só dará visibilidade em 10, 20 anos. E os políticos só têm 4. Eles todos vivem de um projeto pessoal e partidário, e não de um projeto de país. É triste.
Por que em vários lugares do mundo a cultura virou uma coisa digna e aqui não pode ser? Porque você vai ter que meter o dedo na ferida. Vai ter que desmontar um sistema pernicioso, eleitoreiro, populista. Em algum momento você vai ter que deixar de distribuir verba para um bocado de gente que não tem talento, que não tem caráter, vai deixar de favorecer grupos políticos, máfias, empresas. A demagogia e o populismo, por um lado, coadunam-se com o coronelismo e o favorecimento pernicioso, do outro, e, acima de tudo, uma ditadura da mediocridade imperando. Não há política cultural que exista, insista e resista.
Fala-se tanto em sustentabilidade, mas isso não é considerado quando aprovam-se projetos que morrem na praia. Nós, mesmos, afastamos o público, e botamos as culpas em diversos setores: desde a burrice e ignorância do público, até a má gestão dos governos e má vontade da imprensa e das empresas. Mas deveríamos parar pra pensar se a arte que vimos fazendo realmente tem um poder de atrair empresários e público pagante, tem o poder de despertar curiosidade das mídias e sensibilizar gestores, mecenas (ainda existem?), investidores.
Existem milhões de medidas que são impopulares e que podem consertar. Não estou dizendo que eu sou a solução, que tenho essas ideias, porque não sou. Mas tem gente que ganha pra isso, que assume cargo com essa tarefa: pensar e solucionar problemas de nossa política cultural. Agora vai ter que mexer com pessoas que são favorecidas, com grupos familiares, políticos, empresas, conchavos, empreguismos, gente que se arma em cima do dinheiro público, oportunistas, desvio de verba, captadores de recursos mafiosos. Você pega a câmara de vereadores de Salvador e a assembleia legislativa da Bahia e a grande parte é medíocre. É ignorante, não entende nada de cultura. Não conhece, não vai e não assimila cinema, teatro, dança, música. Não sabe quem são os agentes culturais importantes dessa cidade. Muitos se envolvem em movimentos sociais, ONGs, minorias, porque sabem que isso vai dar voto. Que esperança extrair desse quadro?

No site do Teatro NU você escreve críticas ferozes à cidade, à cultura, à política e a falta de consciência crítica da população. Além de um espaço de reflexão sobre a cidade e a sociedade, o espaço é um palco virtual onde exorciza seus demônios?
Uma vez uma amiga minha disse que eu não precisava ir para o psicólogo, analista, porque eu escrevia, a despeito da minha escrita ser muito mais abrangente que problemas e questões existenciais particulares. Sempre a arte me trouxe essa possibilidade de olhar as coisas à distância. Mas óbvio que é um divã, é um lugar onde eu exorcizo meus monstros, mas não é a coisa do desabafo. É meu incômodo em relação à cidade, em relação ao outro; que acaba sendo eu. Sempre tem um diálogo presente na minha crítica e tento me incluir nelas. Gosto muito de falar na gente, em nós, pois não sou um poço de perfeição e não gosto de textos que falam do “outro”, do “diferente”. Eu falo pra gente como eu. Acho que assim funciona mais.

Você usa frequentemente palavras com várias acepções, que em outro contexto pode adquirir um significado completamente diferente e isso provoca reações contrárias de quem não lê as entrelinhas. Você se considera um provocador? Faz isso para gerar burburinho, fazer o outro sair do estado de inércia mental?
Eu faço pra provocar mesmo, pra tirar a pessoa da zona de conforto. No caso de Chico Buarque, algumas pessoas não entenderam, quando me referi a ele em um artigo como um compositor medíocre, porque o médio se transformou em algo ruim. E medíocre se tornou uma palavra pejorativa. Todos correm atrás da mediocridade, mas ninguém se considera medíocre. Todos querem estar na média, todos querem ser iguais, todos querem ser medíocres, mas não se admitem medíocres. Mas no caso de Chico foi uma provocação, como disse acima.
Uso palavras, às vezes, um pouco violentas e agressivas para a pessoa se incomodar e achar que peguei pesado. Sempre tento buscar o caminho que não é usual para incomodar o outro. No artigo sobre a tragédia de Ondina, por exemplo, eu peguei aquele caso não pra falar dos irmãos, da médica, da justiça brasileira, mas para falar das pessoas que estavam falando daquilo e não se percebem. Eu tento deslocar, 
me interessa falar sobre as coisas numa perspectiva diferenciada, deslocada no senso comum que se repete ad nauseum nas redes sociais. Não que eu seja original e fale coisas que ninguém no mundo fala, mas eu fico sempre atento em ir por um viés que não é usual.
Eu me inspiro muito no poema de João Cabral de Melo Neto, que fala de catar feijão, que tem a ver com tudo que a gente conversou e com tudo que eu faço na escrita. Ele fala que quando você tem que catar o feijão, você tem que catar todas as pedrinhas, pra que não gere nenhum incômodo e você possa comer tranquilamente. Ele fala “certo não, quando ao catar palavras”, e defende que sempre tem que ter uma pedrinha quando você vai catar as palavras. Essa pedra é o momento de quando você está na fluidez e sente uma dor, um incômodo. Porque é uma coisa diferente na mastigação e te tira do seu estado de conforto, para você pensar sobre o que está acontecendo.

Nos seus artigos, você tece críticas à passividade cotidiana das pessoas, em situações que mereciam atitudes mais enérgicas, e ao mesmo tempo como somos bárbaros e violentos com as pequenas coisas. Como é o Gil Vicente Tavares cidadão, como você se porta quando se depara com situações em que se sente violado?
Primeiro é aquela frase “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”. Normalmente 90% das críticas que eu faço de alguma forma me atingem também. Porque eu me vejo nessa situação. Por isso, eu escrevo os textos falando a gente e não vocês. Eu nunca falo do outro, eu sempre falo da gente. Eu tento ser o cara mais honesto, mais sensato, mais tudo possível. E posso te falar isso porque muita gente tenta me agredir, tem raiva de mim e sempre tenta me bater pelas questões pessoais, outra coisa normal na província. Aí diz que eu sou um diretor ditador, que sou arrogante, que sou vaidoso, metido… Agora ninguém abre a boca pra dizer que eu sou desonesto, que tomei uma atitude errada, que fui violento com fulano de tal. Eu já errei, não sou São Francisco de Assis, e erro até hoje, às vezes falo “por que merda fiz isso?”. Me arrependo de várias coisas que fiz na minha vida, já fiz muita merda. Hoje eu já devo ter feito uma merda com certeza… Coisas erradas que eu falo para o outro, da forma como eu me coloco, coisas que não precisavam ser ditas, falta de cuidado com o outro… Mas de uma forma geral na minha vida, tento ser sempre correto, odeio desonestidade. Eu sou de Oxalufã, que é o Oxalá velho, muitas pessoas quando me conhecem acham estranho eu ser de Oxalá, porque eu tenho um Xangô perto de mim, que nessas horas toma minha frente de uma forma louca. Numa entrevista como essa, Oxalá jamais poderia baixar aqui, a sabedoria de Oxalá, de ficar calado e ver as coisas passarem, meu Xangô não me deixa ser assim. Sempre tive uma relação muito forte com Xangô, teve uma época da minha vida que eu só queria usar vermelho. Gilberto Gil fala uma coisa linda, no prefácio que ele faz para o livro de meu pai sobre esse orixá: Xangô é a minha naturalidade. Na minha naturalidade eu sou um Oxalazão total, sou aquele cara que fico sentado lendo, falo pouco, sou lacônico. Porque isso que eu estou aqui não é minha naturalidade. É o personagem Gil revoltado com as coisas e que emite opiniões. E quando eu assumo um personagem social é Xangô que toma a frente, dificilmente é Oxalá. Eu transformo as coisas em fogo, como essa hora que eu estou puro fogo dando essa entrevista, mas quando eu vejo o fogo de lá, o meu Oxalá toma a frente, tenta me fazer recuar, contrabalanceia esse “personagem”. Eu tenho esse conflito interno e preciso desse freio, por um lado, e da chama, por outro.

Você se auto intitula o pessimista mais otimista que existe. Existe essa dualidade em você? Qual a dimensão de um e outro na sua vida?
Eu sou pessimista, porque eu acho que as coisas e as pessoas estão totalmente corrompidas. Mas eu sou otimista, porque se eu não fosse otimista, não escrevia para tentar mudar isso, não fazia minha arte para tentar sensibilizar, chamar a atenção, pra tentar tirar as pessoas desse estado de letargia. O meu discurso tem sempre muita negatividade, ao falar da cidade, da sociedade, mas o ato de expor e pontuar esses problemas é porque no fundo eu quero que provoque de alguma forma e as pessoas passem a pensar do outro lado. Schiller falava “não se preocupe em agradar muitos com sua arte, agrade a poucos. Agradar a muitos é perigoso”. Eu acredito piamente nisso.

Quando você quer fugir de tudo, inclusive de si mesmo, onde você se refugia?
Eu ainda espero pelo dia que eu queira fugir de tudo. Minha vida, como sou um artista independente, não tenho emprego fixo, é sempre batalhar pra conseguir fazer alguma coisa. Quando eu faço alguma coisa nova, fico feliz da vida. Eu nunca consegui criar um ritmo de trabalho, de vida, que eu chegasse ao ponto “ah eu quero ficar um mês sem dirigir, sem compor…”. Eu tenho uma grande solução, que é um grande problema, uma das coisas que mais me distraem na vida é a arte. O meu refúgio de descanso é a arte, só que quando eu estou na arte, eu estou sempre trabalhando, porque eu não descanso. Eu tenho essa dualidade dentro de mim, o descanso se torna meu trabalho. Porque tudo que eu vejo na minha vida se transforma em trabalho. Estou sempre refletindo, dialogando com aquilo, vendo o que pode me acrescentar, me inspirar.
Eu gosto também de coisas simples como ver futebol, adoro com todas as forças o refúgio do sexo, gosto de jogos de estratégia de computador, um bom vinho/cerveja com amigos. Adoro a putaria, é um descanso ótimo. Agora, eu gosto muito de praia, gosto do mar. Eu nasci e fui criado no mar. O mar sempre me traz coisas boas. De dez canções minhas, quinze falam sobre ele. Tem vezes que eu estou na praia olhando o mar e não me vem nada artístico na cabeça, eu gosto desse momento. Ele me traz uma tranquilidade que é boa. Mas com certeza existem ondas por dentro me fazendo remar pra uma nova ideia, imagem ou metáfora.

Qual a diferença da sua visão sobre o teatro hoje, comparada com a que você tinha quando ganhou o prêmio COPENE de diretor revelação com Quarteto/Heiner Muller, peça de formatura na escola de teatro da UFBA?  Ganhar o prêmio na sua estreia como diretor te fez pensar que o caminho seria mais fácil? O que existia naquele jovem que a maturidade não preservou?
Eu acho sinceramente, que eu melhorei muito daquele jovem que eu era. Eu me formei com 21 anos e fui muito atropelado por coisas grandiosas. Formei-me com Harildo Déda, Joana Schnitman. Fui indicado, ganhei o prêmio. Logo depois eu sou chamado para dirigir os quarenta anos de Yumara Rodrigues. Então, os dois primeiros trabalhos da minha vida profissional foram com os dois mais renomados atores da Bahia. Eu tinha um sonho, hiper, mega ingênuo, que rapidamente eu perdi, de achar que eu poderia montar certos espetáculos em Salvador e o público poderia se interessar por aquilo naturalmente. E com o tempo eu percebi, e acho que positivamente, que tudo que a gente faz na vida tem que ter um propósito direcionado. Por que que eu vou montar tal peça na atual conjuntura de Salvador? O que eu quero com isso, o que tem naquele texto que quero discutir nesse momento?
Eu hoje estava pensando numa frase: “meus heróis não morreram de overdose e infelizmente estão no poder”. Eu começo a ver que aquele jovem tinha pessoas que admirava, que existiam caminhos para a arte através dessas pessoas e uma por uma foram todas caindo por terra. Hoje eu conto nos dedos, talvez de uma mão só, as pessoas que eu respeito e admiro. Eu tinha uma certa ilusão, uma certa esperança, olhava para aquelas pessoas e achava que podiam fazer parte de um grande movimento, no sentido de empurrar as coisas pra frente.  Eu tinha esperança de conseguir realizar meus anseios artísticos; e você não consegue (e talvez seja isso que nos impulsione a continuar criando).
Para crescer precisamos passar por certas experiências, que Salvador não viabiliza. E as coisas vão sendo retardadas e isso é desesperador, atravancam seu processo estético. Eu quero montar Shakespeare, quero montar outras coisas, mas fico preso a Sade, que estou tentando desde 2007, porque acho importante montar a peça, pois pode causar impacto, tem espaço na sociedade. A gente fica o tempo todo se sentindo amarrado, e eu não achava isso quando me formei.

Com esse cenário de desesperança, não te dá vontade de sair daqui?
Tenho 15 anos de profissão e nunca fui indicado como dramaturgo ao Braskem. Os JavalisAlugo Minha LínguaVixe MariaOs Amantes II, diversos estilos de texto, vários experimentos, formas, parcerias, e nunca se deram ao trabalho de sequer me indicar. Isso é muito triste. Aí me dizem “ah Gil, você não tem que dar atenção a prêmio”. Mas se vem um filho da puta da Áustria ou da Nigéria, fazer pós-doutorado em Salvador, e toma como horizonte teórico o teatro na Bahia através do Braskem, eu não existo. Isso é muito triste. Sempre uso essa frase: Não sou melhor do que ninguém, mas também não sou pior do que todo mundo. Sou um dramaturgo em constante atividade, seja acadêmica ou profissional, e, no entanto sou alijado noutras situações; dá um desânimo, mas ainda bem que não tenho nenhum componente depressivo. Talvez por isso, eu não vá para o analista, não é só porque eu escrevo. Eu passo por umas aqui em Salvador que são sacanagens inacreditáveis.Infelizmente, isso não é “mérito” só meu. A história do Braskem é também uma história de maldades e sacanagens, injustiças e equívocos que traduzem exatamente o funcionamento de Salvador. Essa premiação é uma trágica metonímia da nossa província.
Tem um poema de Antônio Brasileiro que diz “não há o que temer nem aplaudir. O que somos é só esse fremir. Parte de mim é bela, parte é aquela vontade de fugir”. Vira e mexe dá essa vontade de fugir, eu olho pra um lado, olho pra o outro e me pergunto: o que estou fazendo aqui?  Essa cidade é muito cruel às vezes. As pessoas não admitem que ninguém cresça, porque incomoda, aí fica todo mundo com a cabeça dentro da lama. Se alguém olha uma flor e vai pegá-la, falam logo: “não vai não! Deixa a flor lá!”. Aí a flor pode morrer, murchar, mas não se pega a flor, é preferível que ela morra, murche; é preferível isso a que somente alguns cheguem lá. As pessoas parecem não querer que existam flores, porque é ótimo estar na lama. Tá todo mundo escondido ali, fica um passando a mão na bunda do outro, todos enlameados se parecendo na sujeira, sem que ninguém veja quem foi e sem que ninguém seja quem é.

Livony Borja e Ana Fideles

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